quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Mostra de Cinema São Paulo (Em Silêncio)















Em Silêncio

Vem da Holanda em coprodução com a Hungria para arrasar na 37ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o fabuloso drama Em Silêncio, com direção da jovem promissora estreante em longas Ricky Rijneke. Retrata a trajetória de partida de dois irmãos do Leste europeu para conhecer um mundo desconhecido, numa viagem sem destino. Não há um roteiro definido, mas a busca por uma condição de vida melhor para os dois, deixando o lugar de origem de poucas opções de trabalho para descobrir e desbravar novos horizontes. Uma viagem cega, às escuras, com sonhos a serem realizados, principalmente conhecer o mar inatingível. Uma ida sem volta, custe o que for necessário para cumprir a promessa.

Eis um drama sensitivo na sua estética, com força de construção de personagens, ao abordar a culpa, perda e solidão. Não há arrependimento da jornada construída, mas um sentimento arrasador de culpa da irmã, Csilla (Orsolva Tóth- de atuação impecável) pelo trágico acidente que se envolveu juntamente com o irmão mais novo Isti (Fatih Dervisoglu), onde desperta dentro de um carro tombado num local ermo e sem ninguém. A figura maternal está presente e investida claramente quando se responsabiliza pelo fato doloroso que antecipa e abrevia um sonho do garoto em chegar ao ambicionado litoral.

Há um claro questionamento pela interrupção brusca da viagem e seu objetivo, se foi por uma obra do acaso ou de uma desatenção negligenciada que corrói, rasga e dilacera a alma da protagonista. Mexe no cérebro e com o equilíbrio do espectador na sua plenitude, para uma reflexão até o fim da existência, sem ter a pretensão de chegar a algum ponto de vista definitivo, dá luz para um olhar frustrado que aflora desordenadamente, embora haja o impacto sensorial num presente e passado de névoa intensa para decifrar os enigmas da vida.

Um filme que vai do prólogo para o epílogo, com um retorno lento para dar uma suposta solução na densidade dramática espetacular num contexto de cenas que se tornam duras, com a frequente pergunta: “Isti, cadê você?” É uma realidade dolorosa pela presença rítmica bem elaborada de planos-sequência como uma essência do cinema. Há pouco diálogo na busca do indivíduo aterrado pela culpa e sua insignificância na vida. É inevitável não deixar de refletir sobre os fantasmas de um passado nem tão distante, bem mais próximo do que se imagina.

São personagens de grande humanismo que funcionam como elementos essenciais e são despidos com sensibilidade, apresentando suas dores, medos e ansiedades. O furto do colar com o peixinho é comovente e retrata metaforicamente o desenlace da trama na última cena como uma perda irreparável simbolizada, como se verá pelo nevoeiro que se aproxima e se distancia pelo enquadramento da câmera, no dia fatídico com a ida da vítima para um lugar imaginário no infinito, numa marcante imagem de uma tomada estupenda e reveladora. É o prólogo que está se decifrando no final e a solidão presente soma-se às perdas que ficaram pelos caminhos da vida.

A primeira separação dos irmãos se dá num posto de gasolina, na beira de uma estrada deserta, reduto de caminhões gigantescos e despersonalizados, nos remete como uma premonição da história. A antecipação como metáfora é o mundo imenso e rude com a solidão estampada de forma contundente, como retrata a cineasta no navio cargueiro que navega de um porto a outro sem se estabelecer ou criar vínculos. Pelo contrário, há uma brutalidade explícita como do chefe da embarcação (Roland Rába) que dá emprego à moça, mas cobra um preço alto para seu trabalho de auxiliar de serviços gerais.

Em Silêncio é um drama reflexivo e silencioso, como prometera o título, numa viagem beirando ao transcendentalismo, com soluções sugeridas por alegorias que comovem pela sutileza e as delicadezas apresentadas na trama, diante de um roteiro simples transformado num petardo estético de qualidade superior. A dança dos irmãos ao reencontrarem-se na lanchonete, após a primeira separação traumática, é um lirismo magnífico de doçura e amor, realizada com densidade, fluindo numa fotografia esplendorosa que fecha em algumas tomadas e abre em outras, bem secundada pela fascinante trilha sonora compatível ao clímax.

Um drama melancólico numa abordagem de culpa, perdas na vida e a solidão num mosaico surpreendente para uma diretora neófita, mas que chega a um resultado cinematográfico inesquecível com imagens e diálogos fluindo. Há um olhar de entendimento ao ser humano confuso e com a lucidez abalada, através de uma narrativa em flashbacks com equilíbrio técnico, num filme pungente e intenso com atmosfera de dor e revolta angustiante.

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