Liberdade Cerceada
O cinema iraniano está de volta com todo seu vigor, simplicidade, discussões sobre a censura e suas restrições em mais uma notável reflexão da política neste perturbador docudrama Sem Ursos. Interpretado e dirigido magnificamente por Jafar Panahi, que através de um notebook com uma precária internet, consegue driblar a ordem superior impeditiva de circular no território, afrontando líderes políticos e religiosos. Ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza de 2022, onde não pôde comparecer para a premiação. Ex-assistente e discípulo do mestre conterrâneo Abbas Kiarostami, dos magistrais Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999), o diretor só deixou o país em abril deste ano, indo residir na França com a filha que lá já morava, depois de pagar uma fiança para adquirir sua liberdade, após cumprir uma pena autoritária de 14 anos de prisão domiciliar e a proibição de realizar filmes dentro do seu país.
O cineasta tem na sua filmografia os ótimos O Balão Branco (1995), O Espelho (1997), O Círculo (2000), ganhador do Leão de Ouro e o Prêmio Fipresci no Festival de Veneza daquele ano, no qual já demonstrava segurança de elenco, enredo forte e uma grande dose de dramaticidade, sem se deixar amedrontar pela tirania. Depois vieram outras admiráveis obras como Táxi Teerã (2015), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2015, em que pouco demonstra ser o realizador um prisioneiro, mas ele filma clandestinamente, limitado no espaço de um carro-cárcere com janelas e espelhos retrovisores para acompanhar os personagens nas suas intimidades devassadas. Como se fosse um jogo de espelhos das personagens comuns com as atrizes convidadas, segue esta linha de forma marcante, também apontado por alguns críticos como inspiração em Kiarostami no filme Dez (2002). Três Faces (2018), seu penúltimo filme, aborda uma atriz famosa que recebe um vídeo intrigante de uma garota implorando por ajuda para escapar de sua família conservadora. Ela então pede a seu amigo, Jafar Panahi, para descobrir se é real ou uma manipulação. Seguem o caminho para a aldeia da menina nas remotas montanhas do norte, onde as tradições ancestrais continuam a ditar a vida local.
Na trama de Sem Ursos, o espectador é contemplado com duas histórias de amor distintas contadas paralelamente, com as frustrações dos parceiros causadas por obstáculos ocultos e, por vezes, até mesmo inevitáveis. A narrativa alude a força das crenças supersticiosas e os mecanismos de poder em um relacionamento conturbado pela agonia da fuga do martírio de um sistema conservador. Panahi dirige um casal que quer imigrar ilegalmente para a Europa, num criativo exercício de matalinguagem, que irá retratar ele mesmo e sua saga perseverante e audaciosa luta devidamente documentada. O realizador entra em rota de colisão circunstancialmente com os moradores ao fotografar um casal apaixonado, na qual a jovem está prometida para um casamento num vilarejo de uma comunidade paupérrima, que irá trazer transtornos e várias situações de ameaças e censuras oriundas de um governo teocrático num regime ditatorial. Toma contornos inverossímeis como uma torrente de situações absurdas do cotidiano kafkiano que recai sobre o protagonista com repletas adversidades pela intolerância que impregnam suas relações e sua continuidade no lugarejo.
Habilmente o cineasta mostra essencialmente as coisas de um cotidiano simples e a relação de seu xerife no regime instalado pelo governo e suas ligações com o tráfico na fronteira com a Turquia, que exerce uma pressão sem limites para que a foto seja devolvida, com passagens coercitivas do protagonista pelo templo religioso, sendo submetido a juramentos onde não pode mentir e ainda tem que provar sua inocência. Uma mescla de corrupção subreptícia de vários setores do sistema vigente predominado pelo fanatismo fundamentalista. Filma com alguma naturalidade esta mistura de documentário simulado com drama em que não falta uma relativa dose de humor através de uma boa montagem. Instala suas câmeras fixas e começa a dirigir suas duas realizações fundidas em uma só com o objetivo de mostrar os costumes locais presentes nos personagens que vão surgindo de um universo rico de situações caóticas e improváveis. Impressiona a falta de liberdade de expressão, na qual não pode haver críticas ao regime que cerceia temas relacionados à atualidade, bem inserido no prólogo com a palavra clássica de “corta!’. O personagem central do segundo filme está perfeito no papel, uma espécie de alter ego de Panahi para buscar sua fuga a qualquer preço, até mesmo com um passaporte falso.
Depois de realizar dois filmes em forma de manifesto como libelo pela liberdade, soando como um brado dolorido pela prisão domiciliar decorrente da expressa ordem de não poder filmar: Isto Não é Um Filme (2011) e Cortinas Fechadas (2013), o diretor que obteve o benefício da fiança para abandonar o Irã ao ser condenado por apoiar a oposição na eleição presidencial de 2009, mostra ousadia e coragem para retratar a própria situação caótica que se encontrava. No prólogo há o indício de um documentário, com a câmera dentro do modesto quarto, enquanto isto alguns personagens do povo circulam em volta até chegar ao casamento prometido, falam de suas aflições, desejos, insatisfações, recheadas de medo pelas complexidades inerentes, com um ritmo calmo, diante de um roteiro enxuto criado para se adaptar às restrições impostas presentes que tentam impedir esta sensível trajetória humana de movimento pela busca da liberdade.
Eis um grito contra a opressão pela beleza do cinema que está inserida nestes detalhes da simplicidade realizada com inteligência, o que torna um drama com o estilo documental, passa pela ação, transita pelo suspense, na qual o epílogo registra com um poder de cena magistral sobre o direito inexistente do cidadão em se expressar numa nação de uma cultura religiosa xiita extremada, de um sistema ultrapassado e sem um mínimo de liberdade, mas que mesmo assim não consegue inibir a criatividade que não tem limites para o cinema inovador e empolgante de um marginalizado cineasta de oposição. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder metafórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas no país, usando sutilezas para mostrar as raízes da arrogância estatal autoritária contrapondo com a força singular do personagem-ator- diretor em seu conteúdo de oprimido contestador para um relato eloquente pelo direito de se manifestar. Panahi faz mais uma desassombrada declaração de insubordinação contra o despotismo, em uma de suas melhores obras, se não for seu melhor filme.