terça-feira, 26 de junho de 2018

O Amante Duplo



A Bela e os Gêmeos

O prolífero cineasta francês François Ozon, nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza nos últimos anos, está de volta com O Amante Duplo, uma adaptação do livro Lives of the Twins, de Joyce Carol Oates. Um dos filmes mais badalados no último Festival Varilux, com sucesso de público e visto com algum entusiasmo pela crítica internacional. Eis um suspense psicológico com boas pretensões estilísticas com o ingrediente eficiente de uma narrativa voltada para causar um certo desconforto na plateia. É provocativo na câmera que viaja pelo interior da vagina da personagem central no prólogo, com a elipse certeira que remete para os olhos, o corte radical dos longos cabelos, para só depois ir revelando sua vida na terapia, utilizando espelhos com imagens para focar a ideia principal do duplo na trajetória da vida da paciente.

Depois dos longas O Refúgio (2009), Potiche-Esposa Troféu (2010), Dentro de Casa (2012), Jovem e Bela (2013) e o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a bela Paula Beer. Agora o diretor constrói um painel psicológico para contar a amarga história de Chloé (Marina Vacht- a estonteante atriz que também foi a protagonista em Jovem e Bela), uma mulher reprimida sexualmente, que oscila entre a esterilidade até a histeria, e constantemente sente dores na altura do ventre. Irá buscar ajuda para resolver seu problema em sessões com o psicoterapeuta Paul (Jérémie Renier), um psicólogo especialista nas questões que lhe afligem. Ao contar seus dilemas, transfere suas angústias na ânsia de soluções, mas a perturbada moça acaba por se envolver emocionalmente com o profissional, logo se apaixonam e vão morar juntos.

Diante da inusitada situação, é encerrada a terapia e Paul indica uma colega para dar continuidade ao tratamento, mas a companheira decide ir a outro de sua livre escolha, quando descobre alguns segredos do namorado, sendo que um deles é a existência de um irmão gêmeo, também terapeuta, de nome Louis, com quem passa a ter um caso. O realizador conduz o enredo com distanciamento ao mergulhar nas intrincadas relações familiares, apresenta os irmãos com personalidades visceralmente distintas. O companheiro é um homem pacato, ético, carinhoso, compreensivo, adora leituras e se mantém como um personagem clássico e pouco inventivo na intimidade. Já o outro irmão é complexo, antiético, liberal nas relações sexuais, diametralmente oposto no trato e na profissão, de poucos escrúpulos, tem na rotina de momentos prazerosos pontilhados pela libido sem fronteiras. São situações criadas com razoável esmero pelo diretor na sua versatilidade temática e o ingresso em questões conflitantes numa trama urdida sobre as reminiscências que pairam da loucura originária dos conflitos interpessoais.

Ozon se utiliza de recursos para elaborar um cenário convincente, simbolizado no olhar atônito da protagonista e seu medo na viagem em busca da verdade e das revelações que lhe aguardam, bem como as causas e efeitos que proliferam para os limites da ficção imaginária com a realidade que a acompanha na irracionalidade. Um filme construído pelo olhar do diretor que surpreende em seu desenlace diante dos traumas decorrentes na perversão da sexualidade e suas alternâncias com a dignidade questionada como um fardo insustentável e pesado que tomam grandes dimensões dos relacionamentos anteriores, com o gosto implícito das distorções pela representação pouco realista dos fatos. O vazio e a alusão de uma desorientação sexual estão soltas e sem uma atmosfera consistente, pela falta de uma melhor construção psicológica de Chloé. Embora haja algumas comparações, apenas lembra o cultuado e melhor inspirado suspense do gênero Gêmeos- Mórbida Semelhança (1988), de David Crobemberg, este sim, bem mais profundo.

O Amante Duplo é um thiller psicológico que tem no formato a simbiose de situações para confundir o espectador. Este é o intuito do roteiro complexo para ludibriar sobre a inexistência de locais frequentados pela personagem e a negativa do namorado sobre a existência de um irmão gêmeo. São colocadas variantes sobre quem está mentindo para que as alucinações sejam expostas como a descoberta do enigma na construção do enredo, como nas cenas que envolvem um gato de estimação que desaparece na casa de uma vizinha, o presente com o coração de um felino e uma suposta moça em estado vegetativo numa cama. Até onde é real ou entra a fantasia numa atmosfera de pesadelos, bem como quem é o manipulador do relacionamento da união, são questionamentos lançados. As sugestões visuais são bem elaboradas, mas as conclusões sobre placenta e os cromossomos que fertilizam os gêmeos são cansativas e desnecessárias, quando a trama é direcionada para as explicações didáticas e rasas, como se fosse uma aula de genética numa premissa falsa e redundante.

Os delírios e conflitos estão distribuídos num clímax de ambiguidades do estado mental da jovem. A galeria de arte é o espaço em que o realizador se utiliza para representar os quadros com cópias e falsificações, numa alegoria da vida levada pela paciente e sua insanidade. Tudo é duplo, nada é único. Apesar de irregular o longa, o mérito maior está em não deixar a plateia indiferente, embora a realidade seja controversa, ao apresentar as neuroses constantes. Em outro suspense similar, Carnívoras (2018), dos cineastas belgas Jérémie e Yannick Renier, há uma retrato bem mais convincente sobre os efeitos traumáticos pretéritos que são conduzidos com melhor desenvoltura num desfecho pouco convencional, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em um tom da falsa justificativa dentro de um mosaico pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa o consciente de uma mulher obsessiva e frustrada, na farsa do carinho que nutre pela irmã bem-sucedida. O Amante Duplo traz uma reflexão menor sobre a condição humana e fantasmas existenciais da rivalidade fraterna que desemboca em soluções mais pragmáticas sobre gêmeos, repletas de duplicidade e exageros na pretensão de uma obra mais profunda.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Festival Varilux Cinema Francês (Marvin)



Homofobia Intolerante

Outro aguardado lançamento neste Festival Varilux de Cinema Francês foi Marvin, com direção da francesa Anne Fontaine. A cineasta, que depois de atuar em algumas comédias, dirigiu seu primeiro filme, Les Histoires d´amour finissent mal…en general (1993), ganhador do Prêmio Jean Vigo, sendo dela também o elogiado Lavagem a Seco (1997), premiado na Mostra de Veneza; o drama psicológico Nathalie X (2003); A Garota de Mônaco (2008); o festejado Coco Antes de Chanel (2009), Meu Pior Pesadelo (2011); Amor Sem Pecado (2013) e Gemma Bovery (2014). Retorna agora com o lançamento deste multifacetado drama familiar, abordando bullying, homofobia, xenofobia, racismo, preconceito e problemas de imigração. Talvez aí esteja seu grande pecado, ao retratar vários temas, acaba não se aprofundando especificamente em nenhum.

A trama tem como protagonista Marvin Bijou (Jules Porier como o pré-adolescente e Finnegan Oldfield quando jovem) que está fugindo de tudo, ou seja, da aldeia de Vosges, próximo de Nancy, onde mora; depois da família, da tirania do pai (Grégory Gadebois), da renúncia da indiferente mãe e por último da intolerância, rejeição e humilhações as quais era exposto por tudo que faziam dele uma pessoa diferente aos padrões comportamentais moralistas daquele vilarejo, exceto a bondosa diretora (Catherine Mouchet). A infância e adolescência do personagem central é sofrida e triste, não só por ser filho de uma família operária pobre, mas principalmente por ser gay e sofrer constantes ultrajes no colégio, com o frequente bullying dos colegas de aula, naquele lugar infestado pela homofobia intolerante pelo conservadorismo presente nos gestos e atitudes de incompreensão hostil para quem ousar bater de frente ou contrastar as ideias ali encravadas e pouco solidárias com o politicamente correto estabelecido por um expressivo contingente de uma sociedade deformada pelo preconceito da realidade sombria para o desenvolvimento de mudança de usos e costumes.

O filme é uma adaptação do romance autobiográfico En finir avec Eddy Bellegueule, escrito por Edward Louis, no qual a obra original narra a infância e adolescência do escritor, como filho de uma família muito pobre na Picardia, teve rejeição e humilhação num local tomado pela homofobia. O roteiro escrito pela diretora e Pierre Trividic para o cinema faz um painel das vítimas neste contexto de violência numa região do interior fortemente marcada com tintas remanescentes de um racismo, xenofobia e aversão à diversidade sexual repugnantes e persistentes. As intolerâncias não são somente quanto à distinção de raças, mas também pela discriminação sexual aos homossexuais e o rancor destilado aos imigrantes. Há um tangenciamento da pouca generosidade com toques de raro humor e a ira latente do pai, dos colegas e moradores dali.

Fora daquele lugar preconceituoso, o rapaz descobre em Paris o teatro e pessoas aliadas que, finalmente, vão permitir que sua história seja contada por ele mesmo, onde a realidade vira ficção, recebendo o apoio de Isabelle Huppert, que interpreta ela mesma, e de um amigo rico (Charles Berling), que o ajuda financeiramente, bem como do gentil e intelectual gay, Alex (Vincent Macaigne), que é uma espécie de mentor e orientador para todos os momentos. É um retrato fragmentado que comove e consegue ir além do espelho para uma busca de um futuro promissor. São representados alegoricamente os insultos homofóbicos nos corredores da escola, as surras dos colegas, as cuspidas no rosto e o sexo oral, as agressões do pai, a fragilidade com a indiferença da mãe e os irmãos num contexto de revolta numa situação de miserabilidade e pouca esperança para um sofrimento intenso. São agressões diluídas em uma vida marcada pelo constrangimento real à sexualidade, que trazem um peso forte da escolha da representação extremada da violência que transforma o protagonista num sofredor daquele calvário, mas com estereótipos redundantes das pessoas ao seu redor na narrativa pulverizada sobre a família perversa.

Marvin é uma busca para encontrar os elementos de um mundo complexo e desprovido de carinho, onde prevalece as ideias homofóbicas da tradição e da religião com o constante medo de um olhar afetivo, que irá sugerir o rancor, ao invés de boas maneiras civilizadas de lidar com os problemas inerentes dos que pensam diferente e tem suas opções fora daquele contexto. São expostas as cicatrizes emocionais que deixaram o rapaz que rebatizou seu nome, possivelmente para se livrar dos fantasmas do passado. Fontaine conduz para uma reflexão de que o tempo dará os arranjos de forma natural, numa clara contradição do mecanismo incrustado da homofobia e da redenção patriarcal no desfecho, ao insinuar de que também o pai é um enrustido homossexual. O drama vira uma espécie de torre de babel de pouca eficiência e aprofundamento em questões lançadas como subtemas da imigração, do preconceito racial e da xenofobia. Desnecessárias estas pinceladas afoitas no roteiro estéril por ser multitemático, que acabam tirando o foco da homofobia e do bullying, dando um valor menor da transformação na vida do protagonista para as artes e sua realização no teatro, ao dialogar com os acontecimentos do passado, repassando ao público uma realidade que ficou para trás de costumes e do moralismo abordados com rasa profundidade.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Festival Varilux Cinema Francês (Carnívoras)



As Irmãs

Um dos aguardados lançamentos neste Festival Varilux de Cinema Francês era o drama familiar com requintadas pitadas de suspense psicológico Carnívoras, dirigido com sobriedade e sutileza pelos competentes atores belgas Jérémie e Yannick Renier, no primeiro longa-metragem como diretores, também responsáveis pelo roteiro. O filme tem traços autobiográficos dos irmãos cineastas que remetem para uma história instigante de duas irmãs atrizes. É construído um universo perverso advindo do tempo que passa, mas não deixa cair no melodrama fácil, deixando a sensibilidade das situações intrincadas ingressarem como um amargor decorrente de uma acidez voluntária de duas vidas que se intercalam lentamente, com a exposição visceral da ambição e da inveja como elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado pelos realizadores neófitos, porém deixam suas marca como promissores na carreira.

Como um novelo que se desenrola, a dupla de diretores vai lançando as situações diárias típicas de conflitos familiares inerentes. A trama centraliza em Mona (Leïla Bekhti), a irmã mais velha de 29 anos, que tenta decolar como atriz, após terminar seu curso de artes dramáticas. O tempo vai passando e ela não consegue um papel marcante na carreira, exceto onde ela contracena num teste com um cavalo, interpretado por um figurante, ao terminar a cena a insegurança se expressa no rosto decepcionado. Com poucos recursos, vai morar com Sam (Zita Hanrot), sua irmã mais nova, também atriz, que está em meio às gravações de um filme com pretensões maiores. Ela vive com Manuel (Bastien Bouillon) e o filho menor do casal (Octave Bossuet). Mona tem um olhar sombrio sobre a vida, cobiça como prioridade o lugar da mana, seu marido, a criança, e a posição social que leva, pois lhe falta o sucesso profissional, conjugal e financeiro. Sam é despojada e tem uma visão colorida do cotidiano, embora sua realidade seja controversa, ao apresentar algumas neuroses da infância, que são bem exploradas pela irmã antiética e manipuladora ao extremo.

O thriller tem o viés da reflexão sobre o conflito com tensões arrebatadoras do relacionamento e o vínculo no microcosmo familiar causados pela disputa de espaço, a terrível baixo estima da pseudovítima do sistema, no qual aflora sem piedade e funciona como um fator agressivo e perigoso de quem tem as faculdades mentais duvidosas e distante da lucidez, aparentemente. A temática é bem estruturada sobre a inveja, o ciúme, e a ambição é bem explorada e mostrada com alguma crueldade, como elementos de uma retórica de perda e rejeição pelo sangue frio da protagonista vazia e artificial. Eis uma mulher que tem na gélida relação da adversária por ela escolhida, que chega a enganar até a própria mãe (Hiam Abbass), que a vê como a filha certinha e por isto é a queridinha numa embalagem bonita, mas sem conteúdo e com um espantoso senso de manipulação, que conduz para o desenfreado artifício maquiavélico dos fins que justificam os meios.

A dupla de diretores cria uma realização dolorosa que traz uma insustentável leveza com sutileza pela intensidade de uma narrativa pela ótica da investigação psicológica, para mesclar situações presentes com perversidade, para retornar e compreender as razões do passado deste magnífico filme, mas em que está embutida uma melancolia que fisga o espectador com a crítica situação dentro de um contexto chocante e com os malefícios inerentes que irão fluir na tela de maneira inexorável pela reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes para uma amostragem que ganha tons de uma paranoia obsessiva. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da insignificância profissional pela jornada de aventuras de conquistas a qualquer preço com uma magia peculiar. Retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Tudo contribui para a crise no processo fragmentado do esvaziamento amoroso e profissional. A essência da vida e a existência estigmatizada estão presentes, ainda que num momento de ilusória harmonia entre irmãs na busca da precária felicidade. A protagonista tenta superar as adversidades pela força da maldade e uma capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está angustiada pelos transtornos diante da iminência do rompimento e a perda.

Carnívoras tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda da família abordada pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, não é à toa que são os coprodutores do longa. Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande desenvoltura pelos realizadores que direcionam para um desfecho pouco convencional, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom da falsa justificativa dentro de um mosaico neste painel pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa o consciente de uma mulher obsessiva e frustrada, na farsa do carinho que nutre pela irmã bem-sucedida. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas existenciais da rivalidade fraterna que mergulha no sofrimento de uma inveja tresloucada, na solidão, e se escancara como resultado no desfecho desta perturbadora realização que desemboca em rupturas de insuperáveis hostilidades na catarse da tragicidade pela doentia mente subconsciente.