quinta-feira, 30 de julho de 2009
Inimigos Públicos
Um Dillinger Revisionista
O cinema americano tem um certo fascínio por filmes de gângsteres. São inúmeras as obras que dissecam tal assunto, levando à exaustão. Em muitas vezes, se atinge o ápice como a trilogia de Franscis Ford Coppola nos três filmes da série O Poderoso Chefão. Um melhor que o outro, compondo três obras-primas indiscutíveis. Tivemos filmes antológicos como Bonnie & Clyde (1967), Fúria Sanguinária (1949) e Scarface (1932). Michael Mann que realizara O Informante, Colateral, Fogo Contra Fogo e Miami Vice também arrola em seu currículo este apreciável Inimigos Públicos, abordando de forma sucinta e palatável a vida do mais famoso ladrão de bancos John Dillinger, considerado pela história americana na época da Grande Depressão, em 1929, como o inimigo público nº. 1. Ao escolher o elenco, acerta em cheio com a participação no papel do célebre bandido (o correto e em grande performance Johnny Depp), tendo como sua companheira Billie Frechette (a não menos magnífica Marion Cottilard), com seus lindos olhos azuis metálicos, vive uma perfeita mulher de marginal, resplandecendo a tela em suas aguardadas aparições, em nada lembrando a sofrida e perecível personagem de Edith Piaf.
Inimigos Públicos revisa o personagem mitológico de Dillinger, mesmo que glamourizado, cria com afeto e honestidade todo seu carisma e apresenta o lado romântico do homem fora-da-lei, oriundo de Indiana, que logo transfere seu domicílio para Chicago e se encanta com Billie, chamada de graúna- em alusão a madeira jacarandá, forte como uma fortaleza-. Sua insistência e perseverança o leva a conquistar a jovem num baile com o embalo musical de jazz que compõe a bela trilha sonora com as lindas canções de Billie Holiday e a música inspiradora do casal Bye Bye Blackbird, interpretada pela cantora Diana Krall. O longa mostra um belo cenário com closes de rostos cobertos com chapéus panamás imponentes, carrões pretos típicos da época com suas luzinhas coloridas contrastando com as deslumbrantes nevascas.
O diretor mostra como Dillinger tinha a simpatia da população, pois quando roubava os estabelecimentos bancários, mesmo que à mão armada, evitava e tinha como regra normatizada não matar reféns. Deixava sempre sua marca nos assaltos com alta perícia e inteligência com um planejamento invejável. Era uma espécie de Robin Hood, pois tirava dos banqueiros e afastava qualquer agressão aos cidadãos comuns, não levava dinheiro dos clientes e até seu casaco acaba doando, galgando assim notoriedade e cumplicidade implícita dos pobres. Dava entrevistas coletivas sempre de bom humor e reflexivas aos repórteres que faziam a festa e o tratavam como uma legítima estrela.
Outro fator preponderante e bem abordado por Michael Mann era o despreparo da polícia local para atender as ocorrências e investigá-las. Usava métodos antiquados como da força excessiva como da horrenda tortura para obter informações valiosas. Temido pelos policiais, diante da ousadia do respeitado bandido que os desafiava e os humilhava pela singular frieza nas suas malfadadas blitz, cruzando pelos chefes de operações nas saídas de bancos e até visitando uma espécie de delegacia de polícia, onde muitos deles assistiam a jogos pela TV, deixando-os tontos como verdadeiros panacas sem rumo. Mas o quadro começa a mudar com a intervenção da FBI, tendo no comando Hoover (Billy Crudup) e no encalço de Dillinger, o astuto e obsessivo agente federal Melvin Purvis (com grande atuação de Christian Bale), que usa pela primeira vez nos EUA métodos científicos. Busca na inteligência e no ardil toda sua perspicácia para cercar o gângster que foge contumazmente das prisões. Atrai para si uma cafetina famosa da cidade para lançar a isca fatal em emboscada atraente. Afasta peremptoriamente a truculência arcaica e fragilizada pela sua inoperância.
Já o final demonstra toda a ética de uma nova visão como atuação policial, quando o agente encosta o ouvido na boca do inexpugnável Dillinger e leva até Billie sua mensagem derradeira e promissora para sua graúna. Fica evidente a solidariedade humana e a visão eloquente de um cineasta que tem qualidades objetivas ao realizar com sinceridade uma vigorosa crítica a um sistema falido de autoridades arrogantes e fascistoides.
Ressalte-se que esta película trata os novos métodos científicos, condenando inexoravelmente a tortura e pautando pela ética, conduz para uma trajetória invulgar de novos tempos. Não é um longa acadêmico, sequer didático, pois explora com toda eficiência e sem maniqueísmo um tema já bem explorado na forma tradicional, mas mesmo assim sempre vigoroso como merece ser abordado os grandes filmes de época.
terça-feira, 21 de julho de 2009
Bem-Vindo
A Xenofobia
O longa-metragem Bem-Vindo, de Philippe Lioret, aborda a política das imigrações, através de um garoto curdo de 17 anos (Firat Ayverdi), refugiado da guerra do Iraque. O mote é a busca incessante da namorada na Inglaterra, tendo se estabelecido temporária e ilegalmente em Calais, na França. Logo recebe ajuda do professor de natação Simon (Vincent Lindon), que o treina secretamente e logo mantém um estreito relacionamento de amizade, embora confundido por vizinhos e pela própria polícia francesa de imigração, como um "relacionamento especial". Eleito o melhor filme europeu da Mostra de 2009 do Festival de Berlim.
Simon que está separado de sua mulher Marion- voluntária de imigrantes ilegais-, a quem ama muito, ao dar cobertura e abrigo ao jovem, busca ao mesmo tempo reconquistar seu coração, o que o faz minuciosamente lírica e sutil. O garoto está obcecado pela busca da namorada que poderá casar com um primo, por decisão do pai. Pensa em ser jogador de futebol do time do coração inglês, o Manchester Leeds Unites, sendo fã ardoroso de Cristiano Ronaldo e de Beckham. Mas sua tarefa é praticamente impossível, pois quer cruzar o mar a nado, tendo em vista suas frustradas tentativas de se esconder no interior dos caminhões. Há uma frase reveladora de Simon à Marion numa mesa de bar: "Ele quer atravessar o Canal da Mancha para ver sua namorada e eu não atravessei a rua para te buscar de volta".
Este é um filme que causou muita polêmica na França, por tratar dos desdobramentos sociais e políticos, com explícita intolerância racial, evidenciado pelo choque cultural e a iminente violência, decorrentes da questão da imigração mal resolvida por dezenas de anos. Houve declarações públicas fortes do Ministro de Imigração, Eric Besson, acusando a proposta do diretor de "inaceitáveis" e que "cruzou a linha amarela", por ter comparado os clandestinos ilegais em território francês com os judeus na ocupação nazista. Lioret respondeu com classe e elegância em carta aberta à população: "Em todas as sociedades em situação de crise, face à injustiça, cada cidadão encontra-se um dia frente às suas responsabilidades".
O longa retrata com fidelidade a dolorosa saga dos imigrantes para um novo horizonte, mesmo que refugiados de um país que vive numa carnificina total de uma guerra sem limites, como a do Iraque com os EUA. Sofrem com todo o tipo de intolerância e preconceito, não podendo sequer tomar um banho diariamente por serem ilegais. Vivem em albergues em péssimas condições humanas, como se fossem prisioneiros da pior espécie, comem e dormem muito mal, sofrendo a ojeriza de uma casta que lhes viram as costas, fruto da xenofobia racial. Há o vizinho de porta do professor que o denuncia às autoridades, acusando-o de infrator e relacionamento homossexual, por abrigar na clandestinidade pessoas não nativas, com a paradoxal frase em seu capacho de porta "Bem-Vindo". Já no filme O Visitante (Tom McCarthy), a situação da imigração e sua ilegalidade também se questionava a política xenofóbica aplicada institucionalmente nos EUA, derivando daí o ódio racial.
O professor demonstra todo seu afeto, compaixão e discernimento como pessoa superior ao "adotá-lo como filho". O resgate da polícia inglesa costeira, distante 800 metros da costa, evidenciam a transgressão por um suposto crime e o castigo dos homens mantenedores da ordem. O anel de safira com diamante levado à namorada e a devolução da joia mostra a dignidade, com clara manifestação de revolta e sinceridade, numa metáfora alusiva ao amor e à vida, em uma das cenas mais realistas e grandiosas. Outra cena comovedora é a de Simon em Londres, assistindo um gol de um dos ídolos do garoto curdo.
Restabelecido das agruras, sente a impotência dos mortais e o lampejo da derrota que faísca de seus olhos tristonhos logo o encorajam para um futuro talvez promissor e menos discriminatório. Mesmo com sonhos desfeitos numa realidade dolorosa, fica o manifesto e a crítica neste libelo contra a intransigência dos povos ditos de primeiro mundo.
Eis um filme a ser assistido pelo brado de resistência, ainda que tenha na mentira do seu personagem principal a forma ilícita para salvar a pele de sua ex-mulher, protegendo-a da sanha irascível de uma política de imigração abominável que deve ser questionada à exaustão, mesmo que seus governantes maiores, como o ministro francês se oponha ameaçadoramente.
segunda-feira, 13 de julho de 2009
Stella
Contrastes da Infância
Mais um drama francês, tendo no papel principal uma simpática menina de 11 anos, faz o sucesso merecido de Stella (2008), com direção e roteiro de Sylvie Verheyde, lembra em muito A Culpa é do Fidel, dirigido com brilho por Julie Gavras, que se tornou um cult no ano passado. Léora Barbara está encantadora na personagem que dá o título deste comovente filme que se debruça sobre a precocidade adulta na infância e a ausência contumaz dos pais. Também foi explorada esta temática em dois filmes recentes da França, essencialmente sobre a adolescência e a rotina colegial, tais como: Entre os Muros da Escola e A Bela Junnie.
Stella não é mais um filme que fala sobre crianças na escola e problemas com os pais. É muito mais do que isto. Este tema que nunca se esgota trata do universo infantil atropelado pelo dos adultos. Fica evidente a queima de etapas na fase pré-adolescente desta menina que vive com os controvertidos pais na periferia de Paris em 1977, que estão em permanente estado de confronto diário. O pai (Benjamin Biolay) -filho de uma ex-prostituta- é traído pela mãe (Karole Rocher) com seu melhor amigo, bebe, fuma e joga no seu bar dançante, uma espelunca de promiscuidade, com música alta e som que impede as noites bem dormidas da filha que pela sua janela observa um corpo sangrando na sarjeta expulso do interior daquele inferno que vive ela, pai e mãe, em mais uma daquelas noitadas que não consegue sequer ter o direito de dormir com dignidade, nem tanto pelo volume musical, mas pelo barulho e gritaria ensurdecedores. Tem em seu quarto acanhado e desarrumado as fotos de ídolos contrastando com o cenário do ambiente da nova amiga com suntuosos prédios residenciais e comerciais. Ao conhecer a amiguinha da escola de classe média alta Gladys (Mélissa Rodriguez), filha de um psiquiatra judeu, que numa cena lança com sarcasmo que na Argentina tem o mesmo número de pacientes como de sua especialidade médica. Stella conhece outro universo, toma novos horizontes com rumos para o amor e a leitura. Começa a descobrir um mundo novo com a filha do intelectual que lhe questiona seus conhecimentos de autores franceses, como Cocteau e Balzac.
Temos a avó que conhece todos os frequentadores do malfadado bar, pois sua condição do passado a deixa muito próxima dos que ali pululam, como Alain (Guillaume Depardieu- filho de Gerard Depardieu) que mantém um amor platônico pela menininha doce e charmosa, a protege de situações difíceis. Há o Bubu, um pedófilo que tenta abusar sexualmente de Stella, que logo em seguida apanha uma espingarda para matar o amante de sua mãe, com a intervenção precisa do pai com o coração despedaçado pela perda do amor da mulher que ama com seu dito amigo do peito.
A passagem de férias pelo interior da França, lembra em muito o longa brasileiro O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburger na direção, ano de 2006) e o argentino Kamchatka (diretor Marcelo Piñeyro, ano de 2002). Fica evidente o conflito de civilização: interior com capital, claramente na voz forte e ressentida do pai da amiga de infância Geneviéve (Laëtitia Guerard) chamando-a de forma hostil de parisiense. Seu relacionamento com os garotinhos interioranos e a descoberta do beijo são frustrantes, diante das diferenças de conceitos e valores. As cenas do conselho de classe, com a participação da colega Gladys, lembra o outro longa francês Entre os Muros da Escola, com ríspidas discussões e conflitos entre alunos e professores, principalmente as humilhações protagonizadas na sala de aula.
A diretora apanha muito bem a cena em que Stella liga para a mãe para lhe dar a notícia que passara de ano, seu pai ao receber a notícia apenas balbucia "vamos comemorar" e segue bebendo absorto no vazio de sua existência. Já se percebe a ausência dos pais no início da filmagem, quando a garota apanha na escola e seus genitores simplesmente ignoram. Logo passa de agredida para agressora de uma outra coleguinha por uma banalidade. Em outra cena comovente desabafa que sabe tudo sobre jogo de cartas, bebidas alcoólicas e como se faz um filho, mas desconhece o resto.
O filme conduz com belas canções envolventes num clima frio e hostil, com a extensão de um precoce amadurecimento, ficando a infância num plano secundário, mas a descoberta do amor pelo jovem cabeludo e o incentivo moral e intelectual de Gladys a levam a superar as dificuldades e vencer a batalha árdua da admissão e o desabrochar para a vida, apesar de sua idade tenra de 11 anos. O universo infantil é um tema que nunca se esgota e o lirismo da cena final dá uma esperança de que o mundo adulto não irá tragar uma trajetória juvenil salpicada de tropeços e decepções. Eis um filme para ser visto com o coração e a alma.
terça-feira, 7 de julho de 2009
A Partida
Cerimônia da Morte
O Japão já produziu grandes cineastas, entre eles o mitológico Akira Kurosawa, ganhador da estatueta de melhor filme estrangeiro no Oscar de 1975, com o inesquecível filme Dersu Uzala, embora concorrendo pela extinta URSS. Pela primeira vez, de forma oficial, o país teve um ganhador desta categoria criada em 1957, obtendo o prêmio máximo em 2009, desta feita com A Partida, dirigido por Yojiro Takita (A Última Espada). Este filme, além de ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, também foi vencedor do Grand Prix des Amériques, no Festival de Montreal, e ainda de Melhor Filme do Júri Popular no Festival de Palm Springs. Há uma curiosidade a ser ressaltada, foi filmado em menos de 2 meses, ou seja: de 18 de abril a 10 de junho de 2007.
A Partida é um poderoso drama humano de extrema sensibilidade, que trata da relação dos mortos com quem vive dela como profissão e da transitoriedade da vida. É até certo ponto uma temática tabu no cinema ocidental, especialmente no brasileiro, mas construído todo seu envolvimento pelos orientais com muita sensibilidade e delicadeza. Entretanto, o filme não é só isso, pois carrega uma carga emocional dos familiares e amigos do falecido, bem conduzida pelo talentoso diretor, sem deixar cair no piegas, ou em lágrimas excessivas. A trilha sonora se comporta com harmonia, com uma fotografia digna dos grandes filmes, afastando qualquer morbidez que pudesse atrapalhar ou descambar para uma outra categoria.
O jovem desempregado violoncelista Daigo (Masahiro Motoki) retorna à sua cidade natal no interior do Japão, logo após a dissolução da orquestra que tocava. Encontra emprego como assistente do experiente agente funerário Ikuei (Tsutomu Yamazaki), tendo que buscar os corpos em locais mais variados, sendo a primeira tarefa um já em adiantado estado de putrefação, causando-lhe náuseas e vômitos, numa cena das mais fortes. Sua bela esposa Mika (Ryoko Hirosue) só vem descobrir seu novo emprego, por acaso. Entende como indigno e não admite que o esposo tenha lhe ocultado, abandonando-o, mas logo retorna para lhe dizer que será pai e que seu filho não irá se orgulhar. Ainda assim tenta demovê-lo do ingrato e desconfortante labor, mostrando com revolta sua rejeição pelo marido que a toca em seu corpo, estabelecendo-se o conflito no casamento. As cenas do casal demonstram que o tabu da profissão visivelmente está eivado de preconceitos.
O filme mostra o ritual da passagem da vida para a morte com o destino da eternidade, como lavar, colocar no caixão e fundamentalmente maquilar com todo requinte para deixar resplandecer a melhor beleza para os rostos, nem que seja uma única vez. Não pode haver erro, pois a cerimônia da preparação do cadáver é realizada artesanalmente para a entrega aos parentes e o rol de amizades que acompanham silenciosamente. Após o ritual, o insepulto vai para o derradeiro ato da cremação. Não é um velório ao estilo ocidental, mas evidencia-se com clarividência do contraste da beleza do corpo maquilado com a dor e a tristeza refletida dos rostos e olhares dos familiares. Há um respeito solene com os mortos. Temos cenas de conflitos familiares na hora do ritual da partida definitiva, sendo palco para acusações descabidas e busca de culpa. Há o filho ausente que queria ver a mãe mais uma vez antes da cremação, esbarrando numa relação extraconjugal com o mordomo, que lhe acompanhou até o fim. A filha hermafrodita sem uma identidade definida, causa constrangimento na hora da maquilagem.
O longa encontra nas metáforas soluções para seu desenvolvimento, como dos salmões que nadam e morrem no final de seu destino, parece querendo voltar para casa ou suas origens, tais como o ex-violoncelista. O polvo jogado ainda com vida na água pela esposa Mika, não se sustenta e morre, num prenúncio da profissão de seu marido. Uma das cenas mais belas, são as imagens à beira de um campo verdejante e Daigo toca com todo esplendor seu violoncelo, tendo como pano de fundo o belo cenário do voo dos gansos selvagens mostrando que a essência da vida está presente em seus sentimentos.
Eis um filme de extraordinária dignidade, tanto pelas suas sutilezas como pelas sua simplicidade, onde um trabalho praticamente tabu, mas digno, estabelece um conflito tenaz contra o preconceito da morte. Na cena final da pedra-carta há a revelação e a continuidade da vida, ao realizar seu relutante reencontro com o pai, após anos de ausência. Um filme tocante, pois faz o espectador refletir sobre a transição da vida para a eternidade ou não morte. Não há como deixar de ser tocado pelo instigante provocação desta obra-prima da filmografia japonesa.
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