sexta-feira, 27 de julho de 2012

A Velha dos Fundos
















Gerações Solitárias

Vem da Argentina em coprodução com o Brasil, o drama contemporâneo A Velha dos Fundos, escrito e dirigido por Pablo José Meza, com uma temática sobre a solidão na cosmopolita Buenos Aires, que abocanhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Huelva de 2010; melhor roteiro e ator no Festival de Gramado de 2010; seleção oficial nos festivais de Mar del Prata, Cairo e São Paulo, inserindo-se como um promissor cineasta, após deixar boa impressão na estreia atrás das câmeras com Buenos Aires 100 km (2004).

A trama retrata o isolamento vivenciado em duas gerações distintas: uma é a de Marcelo (Martín Piroyansky), um jovem estudante de medicina, sem dinheiro para pagar o aluguel, pois recebe míseros trocados entregando panfletos na rua, não tem amigos, oriundo de La Pampa no interior da Argentina, de pais pobres que trabalham nas terras de uma pessoa importante, como relata o rapaz. Tem como musa uma garota enigmática que trabalha com a mãe como secretária num escritório de advocacia. Na outra ponta está a vizinha Rosa (Adriana Aizemberg), uma senhora de 81 anos que mora sozinha, ranzinza, mal-humorada, nunca abre as cortinas do apartamento para não ser vista por ninguém da rua e sobrevive de uma pequena pensão. Após ter viuvado, apenas nutre um amor platônico pelo vendedor de flores, admirando-o por muitas horas.

O cenário é uma Buenos Aires cosmopolita e decadente, já tendo perdido muito de seu charme pela crise econômica que assola o país, onde dois vizinhos do mesmo andar de um prédio antigo se encontram por acaso no obsoleto e barulhento elevador, com seus crônicos problemas de manutenção. Os personagens são muito parecidos com os do longa Medianeras (2011), de Gustavo Taretto, onde também duas criaturas desconhecidas que moram no mesmo edifício e são sós, numa profunda abordagem do vazio existencial de dois jovens.

O rapaz ao se dispor morar com a idosa não tem outra saída para seus problemas financeiros. Nada lhe é pedido em troca, exceto que converse todos os dias antes de dormir. A anciã não tem parentes e sequer amizades. Se antes não trocavam nenhuma palavra nos encontros fortuitos, agora terá que dar uma atenção especial para a velhinha, como recompensa pelo alojamento e assim suprir sua solidão, com assuntos que nem lhe interessa muito, mas tendo na companhia do estudante uma maneira de afastar-lhe do tédio, dando-lhe novo alento para quem tinha apenas um pássaro estressado na gaiola dentro do humilde apartamento.

Um filme que aborda o intimismo de duas pessoas opostas de gerações, mas próximas e universais no aspecto de melancolia que os assola. Num contexto de vidas aparentemente diferentes na essência, tanto pelos gostos, usos e costumes que converge dois seres excluídos e à beira da ruína. Marcelo não quer voltar para o interior sem realizar as provas finais na faculdade e a generosa Rosa precisa da presença humana daquele que simboliza a juventude e a esperança. O braço engessado é uma alegoria dos enigmas da vida e serve como uma alusão à situação caótica que ambos passam, quando liberta-se das amarras, numa sugestão de que a vida segue. A solidão também é muito bem abordada no comovente filme portenho Chuva (2008), de Paula Hernández; bem como no fascinante Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, retratando dois personagens sozinhos o tempo todo, sofrendo com o fuso horário em Tóquio. Porém, nada se compara com o inesquecível episódio Shaking Tokio, dentro do longa Tóquio (2008), dirigido pelo coreano Bong Joon-ho, num dos mais melancólicos e devastadores relatos de isolamento humano no cinema.

Um filme com elenco consistente, destacando-se a atriz Adriana Aizemberg, numa atuação impecável e comovedora, faz jus à sua fama de estrela no teatro da Argentina por 40 anos. Teve outros grandes papéis como em O Abraço Partido (2004) e As Leis de Família (2006), ambos e Daniel Burman. Meza tem o domínio exato e certeiro da elipses, dando um clímax correto e profundo nas cenas que se sucedem, com uma perfeita visão de estrutura, deixa fluir seus longas num roteiro enxuto, o que torna-os bem distante da mesmice e de cenas chatas ou prolongadas que caem no vazio, como visto recentemente em Na Estrada (2012), de Walter Salles. Um diretor com estilo próprio e que espera-se outras obras no mesmo nível.

A Velha dos Fundos é uma película sem muitos diálogos, prevalecendo o silêncio sintomático dos desesperançados à procura de um foco de vida. O cineasta lança um olhar universal para as situações dos indivíduos solitários. Filma o contraponto do urbanismo com a intimidade de seus personagens individuais, dentro de seus movimentos e suas dificuldades no coletivo, onde pessoas atônitas e excluídas de uma instigante relevância social ficam à mercê de um convívio salutar, deixando o pessimismo tomar corpo e erguer-se como uma espada na cabeça neste sensível e belo drama.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Violeta Foi para o Céu















A Mulher e o Mito

Andrés Wood é um diretor bem conceituado no Chile. Seus filmes mais recentes no Brasil são A Febre do Louco (2001) e o cultuado Machuca (2004), com o qual obteve sucesso internacional. Com Violeta Foi para o Céu, uma coprodução entre Chile, Argentina e o Brasil, teve indicação para o Oscar deste ano pelo Chile; venceu o Festival de Sundance, nos EUA, com os prêmios do público e do júri internacional; melhor atriz em Guadalajara, prêmio do júri em Miami; e ainda um dos finalistas do prêmio Goya, na categoria de produção ibero-americana. Foi sucesso total e campeão de público chileno em 2011, sendo assistido por mais de 400.000 pessoas.

Wood conta a trajetória da vida de Violeta Parra, baseado no livro homônimo escrito por um de seus filhos, Ángel Parra. O longa começa com a infância humilde na Província de Nuble, na região das Cordilheiras dos Andes, acompanhava o pai tocando pelos bares e passa pelo interior de seu país. A narrativa foge do linear e vai traçando um painel diversificado da protagonista, intercalando-se com trechos de uma entrevista concedida para um canal de televisão nos anos 60. O que lembra como mote Chico Xavier- O Filme (2010), de Daniel Filho. Com uma fotografia primorosa do rústico cenário, sendo complementado por uma trilha sonora soberba, mas tendo no ponto mais alto a antológica interpretação da atriz Francisca Gavilán na pele de Parra, canta e não dubla as canções, dando uma dimensão natural e singular.

A cinebiografia é recheada de cenas marcantes e com uma dramaticidade em alto estilo, sem ser piegas ou cometer excessos ou devaneios inconsequentes. Há o relacionamento conturbado com o suíço Gilbert Favre e os percalços de relacionamentos, como o primeiro marido, de quem quer esquecer e jamais lembrar, pela suposta omissão na morte do filho ainda bebê, quando estava em turnê e atinge a consagração na Europa (Polônia e França). Violeta Parra foi uma artista completa, pois além de cantora, era compositora, folclorista, poetisa, pintora, escultora, ceramista e uma grande guardiã das tradições de seu país. Continua sendo um ícone da cultura no Chile, grande amiga de Pablo Neruda, ambos eram comunistas. Esteve sempre muito próxima da outra notável cancioneira argentina Mercedes Sosa (La Negra), que lhe prestou tributo após sua morte, gravando suas canções, como Gracias a la Vida-paradoxalmente acaba com a vida em 1967, ao se suicidar-, Volver a los diecisiete, também com a companhia nas homenagens de Milton Nascimento. Já Victor Jara celebrizou a canção Arriba Quemando el Sol, no movimento contra o truculento Pinochet, que lhe custou a própria vida por fuzilamento no Estádio Nacional. Estas composições viraram verdadeiros hinos da música latino-america.

O filme emociona na cena do avô negando-se em nunca mais cantar, após a perda do neto, mas que abre uma exceção para Parra, ao saber da dor daquela mãe que perde seu filho precocemente. Outra cena simbólica é a do pai tendo um surto e quebra o violão, após perder seu patrimônio em jogos de azar, deixa como legado para a filha ainda criança, um outro violão sinalizando com as composições que falam de pássaros. Com este gesto está alavancando a carreira da extraordinária intérprete de voz clara e poderosa, que sufoca as mágoas e as tristezas pelos caminhos tortuosos da vida defendendo a arte, como deixa transparecer num desabafo e assevera que sua vida é marcada em 40 anos por lutas sustentadas por uma grande fibra, mas que aos 50 anos sucumbe, ao pôr fim na sua trajetória.

O longa omite alguns momentos históricos da passagem da artista, como seu envolvimento com a política, sem comprometer mas fluindo os relatos ao mostrar uma mulher que deixa para trás os filhos na ânsia de buscar a carreira, mas logo os reencontra, mostrando-se uma mãe amorosa. Sua exposição de algumas obras de arte no Museu de Louvre, em Paris, é apresentada como uma meta atingida, pois consegue algo que parecia impossível. Nunca se dá por vencida, por ter um temperamento sanguíneo e quase temperamental dentro de uma aparência desleixada quando lhe convém, mas é vaidosa quando está amando. Tem uma vida marcada pela solidão com os desprazeres amorosos. É pouco reconhecida em Santiago, ao montar uma espécie de galpão cultural, vê fracassar sua iniciativa pela falta de público.

Violeta Foi para o Céu retrata o crepúsculo de uma artista e de uma mulher fascinante, de bom gosto musical, senso crítico apurado, determinada e que nunca se submete aos caprichos dos que pretendem lhe tirar alguma vantagem. É o símbolo da cancioneira latino-americana que cantou as dores e as tristezas dos amores equivocados. Magnífica a cena da alegoria do gavião e da galinha, simbolizando a luta do capitalismo embrutecido contra o trabalhador inferiorizado. Perturba por ser contundente nas recordações retratadas neste fabuloso filme sobre os desdobramentos da vida, seus ensinamentos reflexivos, as emoções existenciais de uma mulher à frente de seu tempo, que despreza as convenções sociais para ser ela mesma.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Na Estrada

















Geração Perdida

O best-seller de Jack Kerouac On The Road, de 1957, é levado pela primeira vez às telas do cinema pelo festejado diretor brasileiro Walter Salles, numa produção dos EUA, França e Grã-Bretanha, através do cineasta e produtor Francis Ford Copolla, que em 1979, adquiriu os direitos legais para realizar a adaptação. Salles recriou de forma elegante a saga da contracultura dos jovens perdidos no mundo do pós-guerra, deixando nítidos os reflexos violentos do período da Grande Depressão americana de 1929.

O manifesto de Kerouac escrito de 1947 a 1951, tomou forma e acabou por ser publicado em 1957, sobre a trajetória vivida pelo autor com seus amigos Neal Cassady, Allen Ginsberg e William S. Burroughs, conhecidos posteriormente como figuras exponenciais e inventores do movimento literário beat. Suas experiências foram levadas para a literatura e transformadas em livro que virou um clássico da juventude, principalmente dos jovens à procura de seus destinos e de um sentido para a vida, ainda que, como enfocado pelo cineasta, redunda num processo de desintegração pelo excesso de álcool, droga e fumo. Deixa-os completamente hipnotizados pela amargura e pelo desejo de liberdade, através de uma rebeldia que beira quase aos sem causa. Os relatos são bem mais profundos e complexos nos seus modus operandis intrínsecos de vidas perdidas e sem nexos existenciais.

Na Estrada tem presenças marcantes como de Marylou (Kristen Stewart), surpreende ao aparecer nua e participa de um ménage à trois, bem oposta de sua personagem em Crepúsculo (2008); mas para contracenar com a musa do filme, apresentam-se os viajantes Dean Moriarty- o ex-marido- (Garret Hedlund) e Sal Paradise- alter ego do autor do livro- (Sam Riley) que dão consistência e embasamento para o drama e o desenvolvimento sobre as angústias e os dissabores da vida, como do protagonista que procura seu pai junto aos mendigos de rua. Logo se vê os reflexos em sua personalidade, ao largar mulher e filhos para uma vida sem objetivos e completamente vazia para um adulto, largando o pé pelo mundo à procura de aventuras bissexuais.

O cineasta brasileiro já havia realizado um filme similar de estrada em Diários de Motocicleta (2004), sobre a vida Che Guevara, agora atinge um resultado acima do razoável, longe de uma obra maravilhosa e bem distante da obra-prima de Dennis Hopper Sem Destino (1969), marco histórico da rebeldia de dois amigos que saem em uma jornada desenfreada de sexo, drogas e liberdade pelas estradas poeirentas do Sul dos EUA; mas está próximo de Thelma & Louise (1991), de Ridley Scott; ou ainda de Antes Só do Que Mal Acompanhado (1987), de John Hughes.

O diretor busca a fidelidade nos relatos, dando autenticidade ao livro que se embasou. Desveste o clássico para uma linguagem cinematográfica, destacando-se a figura singular criada em Dean, na realidade Neal Cassidy, um irlandês órfão de mãe e pai alcoólatra que perambula pelas ruas como um excluído social. Ou na melancolia devastadora de Sal, logo após a morte do genitor, que o fez se lançar como um itinerante pelas estradas da vida de diversas cidades dos EUA e por fim no México.

Salles conduz a trama com segurança até mais da metade do filme, deixando transparecer falta de fôlego para os restantes 40 minutos, embora tivesse uma boa estrutura para o longa, peca pela pouca dramaticidade e investe mais no tecnicismo, mas evita bem os arroubos de grandes cenários, com um domínio muito bom dos planos e contraplanos de cenas. Mas o grande equívoco desta produção é a montagem precária, que acarreta sequências longas e sonolentas, especialmente na parte final, tornando extenuado para o espectador. Fica a indagação do por que não deixar mais enxuto e dinâmico, pois seria bem mais palatável a película.

O filme centraliza seus personagens numa viagem existencial improvável, de rumos irrefreados a cada parada, sem um norte, ou apenas tendo como lema a inspiração para viver bem longe de um universo incerto pelos dogmas e normas. Tudo é buscado com voracidade e sem um regramento preocupado com os ditames estabelecidos pela sociedade de consumo. Eis um satisfatório drama que aborda os prazeres de viver muito em tão pouco tempo, como se o mundo fosse acabar no outro dia, com cores de doloridas e tristes, apesar dos excessos e repetições de cenas.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Fausto

















Profundezas do Inferno

Alexander Sokurov encerra sua tetralogia com Fausto, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, baseado livremente no famoso livro filosófico do festejado Goethe, considerado símbolo cultural da modernidade e de proporções épicas que relata a tragédia do Dr. Fausto, um médico e estudioso da astrologia desiludido que faz um pacto com o demônio e recebe as endiabradas energias insufladoras da paixão. Foi levado ao cinema pela primeira vez pelo cineasta alemão F. W. Murnau, em 1926, consagrando-se como um autêntico filme do cinema mudo. Embora haja alguma resistência em vê-la como uma obra dentro do contexto, tendo em vista que os longas da trilogia, até então, eram baseadas em homens políticos de carne e osso, tais como: Hitler em Moloch(1999), Lênin em Taurus (2001) e Hirohito em O Sol (2005). São vazias as argumentações contrárias, numa visão caolha apressada, provavelmente.

O cineasta russo demonstra no filme toda sua capacidade inventiva de criação e de sedução com o cinema na melhor tradição europeia expressionista, ao abordar com desenvoltura um clássico da literatura alemã. Coloca-o dentro de uma sequência de filmes sobre os tiranos que fizeram a humanidade padecer, principalmente com as inúmeras atrocidades dentro de seus respectivos países, como na forte cena inicial da dissecação de um corpo humano para estômagos menos sensíveis. Ali, já se afasta do tom glamouroso da obra-prima Arca Russa (2002), onde havia uma simbiose de cinema, história e artes plásticas, filmado em um único plano-sequência de 97 minutos, sem cortes, atravessando as salas do museu e transformando a tela num quadro vivo por onde desfilam personagens da história da Rússia: Pedro, o Grande; Catarina, a Grande; Catarina II, Nicolau e Alexandra.

A trama enfatiza o Dr. Fausto (Johannes Zeiler), uma pessoa materialista à procura de uma linda mulher, ou seja, Margarida (Isolda Dychauk) e muito dinheiro, que perde a dignidade ao vender a alma para o diabo Mefistófeles (Anton Adasinsky), um sujeito manipulador e horrendo, de corpo deformado, traiçoeiro, fedorento ao extremo, que anda num cenário da Idade Média, onde há muita fome e miséria num lugarejo alemão, por reflexos da corrupção que ali campeia solta. Ao submeter-se como um dependente físico e espiritual do mentor diabólico, o médico acaba por cometer um crime, refletindo em abalos profundos na sua existência, levando-a conhecer as profundezas e os horrores inóspitos do inferno. Num duelo entre o bem e o mal, Sokurov mostra que nada resta após a dignidade ter sido negociada de maneira irreversível com as forças satânicas do além.

Sokurov é um discípulo de seu compatriota e amigo Andrei Tarkowsky, outro genial cineasta russo, e ao concluir a tetralogia apresenta como seu tirano maior e pai de todos o Satanás, buscando inspiração no clássico de Goethe, para de forma alegórica e fulminante refletir se existe salvação ainda para o ser humano, numa colocação brilhante, não deixa pedra sobre pedra, vai embrenhando-se pelas cavernas que começam na Terra e atravessam fronteiras. Faz uma alusão a Ingmar Bergman, como no funeral e a pompa lúgubre dos que partem para o infinito, marcados pela dolorida perda entre seus próximos, lembra o drama Morangos Silvestres (1957), no temor da morte que se aproxima e nas lembranças que estão presentes ao encontrar diversas pessoas pela estrada; ou ainda nos reflexos do rosto petrificado pelas sombras e dúvidas de Margarida, como uma típica figura bergmaniana.

Há algumas cenas marcantes, como na do vinho jorrando das paredes, servindo como mote induzido para o grande blefe; ou na morte involuntária do jovem, mas que bem poderia ter sido premeditada pelo símbolo da violência e da loucura, que tem a condução e as soluções da caminhada inglória. Logo adiante há o reencontro entre os protagonistas do ato, sendo que a vítima ainda sofre e vive como uma alma penada no purgatório. O diretor russo não deixa margem para dúvidas no seu libelo contra a opressão e das lutas sem sentido patrocinadas pelos ditadores, como na cena dos soldados vindos da guerra, cruzam com Fausto e Mefistófeles, todos eles têm na morte suas lembranças maiores que ficaram para trás, num ambiente sombrio e horripilante, com um visual arrebatador e dolorido. É o indivíduo perdido na escuridão da eternidade e sua luta tenaz pela volta.

O cineasta segura firme o longa-metragem, num cenário estupendo e alicerçado por um figurino impecável de época, abordando com coragem e contundência a repressão tão contestada em seu país, para dar luzes mórbidas num clima de desespero pela volta ao estado anterior do médico, aonde os enigmas vão se desanuviando numa implícita alegoria aos expurgados dissidentes inconformados de um regime autoritário. Os caminhos são mostrados como irreversíveis neste fabuloso Fausto, um filme sobre a dignidade humana perdida dentro de um contexto formado pela tirania de falsos líderes.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Para Roma, com Amor















Tributo à Italiana

No seu 42º longa-metragem, Woody Allen, além de diretor, acumulou as funções de roteirista e ator em Para Roma, com Amor, contando quatro histórias na Capital italiana, baseadas em Decamerão de Bocaccio, porém ficou bem aquém de sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do dia a dia. Evidente que poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana na época da Grande Depressão dos EUA.

Depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, iniciando por Londres com Ponto Final- Match Point (2005), um dos melhores dos últimos anos; Scoop- O Grande Furo (2006); e O Sonho de Cassandra (2007). Seguiu como turista com sua câmera na mão e ancorou na Espanha com Vicky Cristina Barcelona (2008). Passou pelos EUA de regresso e assinou Tudo Pode Dar Certo (2009), onde escolhe com perfeição seu alter ego como Boris (Larry David), no papel do velho rabugento e neurótico. Retorna para a Inglaterra e realiza Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010); passando pela França dirige Meia-Noite em Paris (2011), possivelmente sua melhor obra nos últimos anos, tanto pela grandeza artística como pela ótima recepção de público e crítica, num filme singular e magnífico, ao transpor as barreiras da ficção pragmática, mergulha na fantasia e nos sonhos, deixa a realidade como fator secundário, não sem antes dar algumas alfinetadas nos americanos estereotipados e engajados com o consumismo e com as guerras frias.

Para Roma, com Amor  tem como ponto de referência um casal americano que vai conhecer os familiares ricos do marido Antônio (Alessandro Tiberi), que acaba de apresentar numa farsa a prostituta (Penélope Cruz) e não a mulher verdadeira (Alessandra Mastronardi- de beleza marcante e grande revelação no elenco), causando situações embaraçosas e desconcertantes. Outra figura estranha é Leopoldo (Roberto Begnini), que acorda de manhã famoso, sendo perseguido pelos paparazzis ensandecidos na procura de alguém para a fama instantânea, numa abordagem sobre a transitoriedade de pessoas do povo para a glória repentina, em prol de notícias de notoriedades fabricadas, como se vê na sequência com outro ilustre desconhecido. A película tem fatos inusitados como do arquiteto John (Alec Baldwin) sendo abordado pelo jovem Jack (Jesse Eisenberg- cada vez mais o alter ego do diretor), que se apaixona por Mônica (Ellen Page), a melhor amiga da namorada e no desenrolar da trama revive momentos tristes da trajetória de sua vida. John circula por Roma e surge como um anjo da guarda e voz presente para Jack, dando-lhe conselhos e tornando os personagens num só.

Mas as grandes tiradas se concentram em Jerry (Allen), um músico de orquestra aposentado que descobre um grande talento cantando no banheiro. Nada mais, nada menos, do que o sogro de sua filha. Sofre, entretanto, a oposição de seu genro, um comunista ferrenho, que não quer ver o pai deixar a profissão de dono de uma funerária para tentar ser tenor ao melhor estilo de Caruso. Os fatos se sucedem e a montagem da ópera do Pagliacci, de Leoncavallo, acaba por ser uma realidade magnífica numa solução encontrada para o desfecho insólito e arrebatador, dentro do contexto criativo para aproveitar-se o potencial artístico da revelação musical.

Allen se debruçara em imagens bem conhecidas no longa Meia-Noite em Paris, como a Torre Eiffel, o rio Sena com seus barcos e o Arco do Triunfo; agora já na abertura desta última produção, mostra o carrossel da Piazza del Pappolo, com um guarda se descuidando de seus afazeres provocando um acidente de trânsito. A comédia é divertida, mas contida, e o humor sarcástico está presente mesclado com um surrealismo em quase todas as cenas, como se Fellini estivesse ali com seus notáveis A Doce Vida (1960) ou em Abismo de um Sonho (1952), no episódio da mulher casada perdida na cidade; ou ainda na homenagem à ópera, como na bela cena do epílogo.

O cineasta tem fôlego e monta uma verdadeira associação de seres diferentes dentro da mesma espécie, como nas inter-relações íntimas de traições, como se fosse uma simbiose. Enfoca Roma e o painel ali existente de várias castas da sociedade, inclusive sem deixar de mostrar a evolução de uma era primitiva para os novos tempos, estando no meio das ruínas o simbólico Coliseu, como uma metáfora civilizatória para a modernidade. Aborda com relativo interesse as neuroses e os relacionamentos despudorados, bem como as traições voluntárias ou induzidas, com métodos de sedução nada convencionais para libertar e expulsar os fantasmas como numa terapia nada ortodoxa, neste filme mediano de encontros e desencontros e situações surreais de expurgos das angústias atormentadoras.