sexta-feira, 23 de maio de 2014

Praia do Futuro


Liberdade Sofrida

Em seu quinto longa-metragem Praia do Futuro, que foi muito bem recebido no Festival de Berlim, uma coprodução com a Alemanha, o cineasta Karim Aïnouz lança um olhar com maturidade ao tema da relação homoafetiva, ao abordar com sensibilidade e sutileza o vínculo amoroso estabelecido entre o salva-vidas Donato (Wagner Moura- mais uma vez está ótimo num papel difícil) com o turista alemão Konrad (Clemens Schick- de 007 Cassino Royale). O drama tem uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um resultado digno inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder, como o próprio diretor assume ser um admirador de suas obras.

A trama é dividida em três atos distintos que se entrecruzam. Começa em Fortaleza numa competição internacional de motovelocidade e terminará em Berlim com a chegada do irmão caçula, Ayrton (Jesuíta Barbosa- revelação no longa Tatuagem). O mote é a morte do companheiro de Konrad no mar, embora todo o esforço do profissional em tirá-lo vivo das águas, o rapaz desaparece nas profundezas perigosas. Numa exposição de fragilidades, surge a aproximação entre o sobrevivente resgatado com o brasileiro que vive nas areias da capital cearense salvando pessoas afogadas. Os dois tentam encontrar o desaparecido a qualquer custo, fazem vigília com uma procura inglória.

Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as perdas, o abandono e os encontros inusitados, como visto no bom e dinâmico Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006) alcança seu apogeu e brilha com o drama familiar inerente à classe pobre brasileira, onde a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro suficiente e comprar passagens de ônibus, ir para bem longe de seu domicílio para iniciar uma nova vida com seu filho menor; e em codireção com Marcelo Gomes realizou o controvertido Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), surge a saudade da família deixada para trás e a falta da esposa; em O Abismo Prateado (2011) há a criatura abandonada e sua epopeia para encontrar o caminho de volta para a lucidez. Ou seja, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo inexplicável com o rompimento do vínculo do amor.

Em A Praia do Futuro, o emocional está voltado para o casal gay e a intromissão do irmão que vai ao encontro deles na bela e fria Berlim, sem saber da relação, num primeiro momento revolta-se e o clima não é nada pacífico, pois sempre viu Donato como seu herói na infância. Agora na fase adulta com o reencontro, fará o diretor instigar um resgate da liberdade alcançada pelo protagonista bem longe, distante do meio conservador e repressor da origem. Há uma coragem colocada em xeque para, finalmente, assumir a preferência sexual, como forma de libertar-se das amarras do passado, ainda que corra riscos na sua trajetória de esquecimento e de abandono familiar, com a morte da mãe recebida em silêncio dolorido, surge a perda existente no prólogo, um tema recorrente na filmografia do cineasta.

O filme vai direcionar as alternativas que o mundo pode oferecer, inclusive o choque civilizatório entre dois países completamente diferentes, como se vê nas primeiras cenas do imaginativo epílogo no nevoeiro, que nos remete para o fabuloso drama holandês Em Silêncio, dirigido pela promissora estreante Ricky Rijneke, ainda inédito no circuito comercial, tendo passado na Mostra de Cinema de São Paulo do ano passado. Neste havia a primeira separação dos irmãos num posto de gasolina, na beira de uma estrada deserta, reduto de caminhões gigantescos e despersonalizados, como uma premonição da história. Em ambos os filmes, os personagens são revestidos de grande humanismo como elementos essenciais, apresentando suas dores, medos e ansiedades. No longa holandês, o furto do colar com o peixinho retrata metaforicamente o desenlace da trama na última cena como uma perda irreparável simbolizada, como se verá pelo nevoeiro que se aproxima e se distancia pelo enquadramento da câmera, tal qual acontece com os três personagens andando de moto pela rodovia em A Praia do Futuro, numa marcante imagem de uma tomada estupenda e reveladora. O prólogo está se decifrando no final e a solidão mesclada com a busca da liberdade presente somam-se às perdas doloridas que ficaram para trás.

A reflexão passa também pelas culturas opostas e o destemor dos personagens com a clarividência do propósito no futuro como ingredientes de subsídios para uma magnífica e dura realidade, após os transtornos dos percalços oferecidos pelo destino. As mortes são reflexos de um contexto de diferenças e obra do acaso, mas que vão se encaixar e tornar uma relação madura e consistente, já com a presença do irmão como símbolo do passado da ausência transformadora da rotina, dando causas e contrastes por extensão, após o baque pessoal de uma estabilidade falsa arrebentada pelo desaparecimento. Assim como em O Abismo Prateado, o mar está de volta e as águas lambem a areia docemente, após as longas caminhadas lançarão os três noutro universo, agora de asfalto e uma outra realidade, com a sugestão da emoção motivadora da existência, diante da sensação de vazio e isolamento, numa abordagem pungente e intensa com uma atmosfera singular.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Alabama Monroe


Canções Doloridas

Quando se fala em cinema da Bélgica, logo se pensa nos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, pelos notáveis filmes O Filho (2002), A Criança (2006), Lorna (2008) e O Garoto de Bicicleta (2011). Para mudar um pouco o cenário, surge agora o promissor cineasta Felix Van Groeningen, de apenas 35 anos, como sombra para os consagrados compatriotas, ao escrever o roteiro e dirigir este belíssimo Alabama Monroe, vencedor do prêmio do júri popular no Festival de Berlim; melhor atriz e roteiro no Festival de Tribeca; indicado ao Oscar como melhor filme estrangeiro e vencedor do César na França pela mesma categoria.

O drama familiar é contado sem cronologia dentro de uma contexto esfacelante, com idas e vindas em sucessivos flashbacks realizados com muita inspiração, inovando na forma de filmar um roteiro de muitas arapucas para o espectador mergulhar numa história rica de um amor improvável e estranho. A trama não linear tem no casal de protagonistas as diferenças abundantes e com grande chance de não encaixar uma avassaladora paixão. Ledo engano, apesar das diferenças, o relacionamento dá certo. O músico romântico Didier (Johan Heldenbergh) adora os Estados Unidos, toca banjo numa banda de músicas bluegrass, que não é exatamente um blues, mas um country de raiz, como explica o diretor. O cantor por onde passa espalha alegria e começa um grande romance com Elise (Veerle Baetens), uma mulher realista, embora passional, dona de um estúdio de tatuagem, seu corpo se revela com indicativos de transformações por situações desenroladas pela vida que são mostradas de forma explícita.

A paixão à primeira vista é o mote do longa que é embasado na peça teatral do ator protagonista Heldenbergh, mas a situação começa a mudar com a gravidez da mulher, diante da recepção fria pelo companheiro. Mas há a superação com o nascimento da graciosa Maybelle (Nell Cattrysse). Tudo ia bem até a descoberta da leucemia na filha de seis anos, causando uma desestabilização na família, com as dificuldades inerentes da grave doença e a recuperação cada vez mais difícil. Van Groeningen aborda com sensibilidade, sem se deixar levar pelo pieguismo, o drama que o golpe causou no casal, com a mãe já integrando a banda e de boa participação nos shows. As canções magnetizam como um libelo de indignação, principalmente o hino gospel em forma de prece Will the Circle be Unbroken.

A desestruturação do microcosmo familiar é enfatizada com a peça que o destino aplica nos pais, embora a mãe acredite ainda num mundo espiritual pela tendência religiosa. As convicções distintas entram em choque frontal com o marido ateu. Há acusações frequentes minando a ruptura de um vínculo forte entre os dois. Didier faz um verdadeiro discurso numa apresentação musical, em uma das cenas mais eletrizantes pelo impacto na plateia de fãs. Sobra para todo mundo ao xingar Jeová, execrar o velho testamento e demonstrar sua decepção com a terra prometida e amada, os EUA, diante do veto de George W. Bush às pesquisas da células-tronco para tratamentos específicos, que poderia vir salvar pessoas cancerígenas, entre elas sua filha.

A película é recheada de grandes momentos, comove pela dramaticidade e pela alta voltagem, como a do pássaro que morre nas mãos da garotinha, numa metáfora do voo cego e o fim pelo acidente de percurso inusitado e não previsto da trajetória da vida. Elise tentará reverter a situação colocando símbolos estilizados nas vidraças para evitar novas tragédias. A lua de mel do casal sucumbe com a fenda aberta entre eles, decorrentes dos conflitos gerados pela doença. São momentos de puro enfrentamento pós-desgraça, com a ira paterna contrastando com a doçura materna de resignação, em meio a um manancial de acusações.

Para o diretor a dicotomia é fundamental, pois embora não seja profundamente questionada a religião na sua essência, há uma crítica às bases na moral judaico-cristã que impedem avanços científicos, deixa transparecer que as pessoas precisam alimentar-se dela, no momento em que a culpa é colocada em pauta e os estilhaços são percebidos pela dor e pela tristeza de ambos numa relação que passa a ser tumultuada e ardente na sua intensidade dramática. Arrepia e faz o espectador se envolver na engenhosa elaboração de um roteiro, ao brincar sério com a plateia, traz imagens e diálogos do início da relação, pula para o clímax melancólico na fase mais crítica e avança para um epílogo inusitado sobre o destino daquela família arruinada e destruída pelas curvas da vida ali presentes.

A construção de personagens sólidos e com fragilidades psicológicas latentes estão presentes neste extraordinário Alabama Monroe repleto de emoção, com uma contundência fabulosa na inventiva forma oriunda da escola belga sempre atraente e preocupada com o contexto da linguagem cinematográfica, traz uma acentuada reflexão sobre a ciência e os avanços que poderiam salvar vidas, mas travados por dogmas religiosos. Um filme que tem o intuito de mexer e perturbar através de uma melancolia sutil que grassa suavemente, sem perder a dignidade pelo vigor das emoções existenciais que refutam a derrota. Credencia-se a ser um dos dez melhores de 2014.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Getúlio





















Fim de Uma Era

João Jardim estreia na ficção filmando o drama político Getúlio, depois de fazer sucesso com os documentários Janela da Alma (2002), codirigido com Walter Carvalho; Pro Dia Nascer Feliz (2005); o premiado Lixo Extraordinário (2010), codirigiu com Lucy Walker e Karen Harley; Amor? (2011). Aborda com certo didatismo os últimos 19 dias conturbados no Palácio do Catete do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), criador do salário mínimo, da Justiça do Trabalho, dos sindicatos, entre outras conquistas populares e necessárias para a época, num sistema de poder pela sedução das massas com o intuito da coletividade.

O longa tem um reconstituição de cenário da época perfeita pela bela fotografia de Walter Carvalho, com um bom enquadramento de câmera, com tomadas de baixo para cima, aproximando os rostos tensos e os olhares indecisos em closes, captando as aflições e angústias dos personagens do enredo, especialmente o protagonista isolado e silencioso, que coube a Tony Ramos a tarefa difícil de encarná-lo, numa atuação burocrática e acariocada, distante do mito gaúcho sem nenhum sotaque, mas de boa semelhança física, embora pudesse ter construído o personagem com mais autenticidade; já Drica Moraes está excelente como a filha Alzira (1914-1992), a fiel escudeira e amiga do velho pai para todas as horas de dificuldades, mergulhado na solidão palaciana.

A trajetória de um dos maiores mitos da política na América do Sul, o presidente mais polêmico do Brasil em toda sua história, é entrecortada pelos jogos de poder com toda sua emblemática relação com o povo mais empobrecido, em meio a uma onda gigantesca de denúncias de corrupção lideradas pelo jornalista Carlos Lacerda- “O Corvo”- (Alexandre Borges- num personagem típico e perfeito), também candidato a deputado federal, eis os principais ingredientes do roteiro que enfoca a trama contada com o desfecho do trágico suicídio. A intimidade do velho e polêmico caudilho é ambientada de 05 a 24 de gosto de 1954, sendo pressionado por uma crise política sem precedentes, em decorrência das acusações de que teria ordenado o atentado contra Lacerda, em que vai aos poucos dando mostras e indicativos dos riscos existentes até tomar a decisão premeditada.

Embora a película não aprofunde o governo getulista, sem inovar ou revelar algo novo, manteve a fidelidade dos fatos históricos registrados em livros, mencionando algumas maracutaias engendradas nos bastidores, como venda de uma fazenda e alguns benefícios para pessoas próximas e ligadas diretamente ao governo. Um dos favorecidos poderia ser o chefe da guarda, Gregório Fortunato- “o anjo negro do presidente”- (Thiago Justino), que teria mandado liquidar Lacerda, contratado por via indireta um atirador, que matou o homem errado, justamente o major da aeronáutica Rubem Vaz. Depois de um longo interrogatório, recai a culpa sobre um dos filhos de Getulio, que nega veementemente. O atentado da Rua Tonelero, em Copacabana, é o estopim para o inimigo público número um, Lacerda, desancar uma ferrenha crítica com acusações injuriosas e caluniosas ao seu alvo preferido, o presidente da República. Embora houvesse algumas evidências de que a oposição estaria por trás do crime, o diretor pouco contribui e nada esclarece sobre os indícios de culpa ou culpados, deixando em aberto e à deriva este fato marcante: se houve ou não um grande complô.

Jardim retrata a biografia da vida do ditador, que já rasgara duas constituições anteriormente, mas que agora não quer repetir os desatinos que lhe são sugeridos, principalmente pelo ministro Tancredo Neves (Michel Bercovitch). Preferiu sair do governo pela forma inusitada e entrar para a eternidade pela maneira que previu como heroica, num mundo em que conhecia muito bem os meandros e as falcatruas, mesmo com os mistérios e as obscuridades dos bastidores que afirmava não ter conhecimento, uma celebridade pelo seu sucesso absoluto pessoal e político, para em seguida deparar-se com a morte, vira o “Pai dos Trabalhadores” num processo de catarse coletiva, em 24 de agosto de 1954.

Faltou um olhar mais crítico no filme, onde havia um regime ancorado no caudilhismo paternal que fraquejava nas grandes decisões e tinha um apoio parcial do exército, tendo a marinha unida com a aeronáutica como oposição e contrárias à sua permanência. Porém havia ao lado um esteio que era a filha, tomando literalmente o lugar da mãe, Darcy (Clarisse Abujamra), discutindo com os generais e ministros as decisões do governo corrompido e cambaleante que sustentava-se pela demagogia. O drama mostra com precisão o vice-presidente, Café Filho (Jackson Antunes) flertando com a oposição e louco para assumir o cargo como um predador ao redor da presa debilitada.

Getúlio conta uma boa história dentro de uma dramaticidade contida e adequada, sem estardalhaços de pirotecnia sobre um ícone brasileiro com seus acertos e erros, virtudes e defeitos, inerentes de um ditador controvertido. Numa breve trajetória de uma longa vida que o levou a entrar na história ao sair da vida, como ele mesmo escreveu na Carta-Testamento. Um drama significativo e de boa contribuição, mas sem trazer novidades por fatos novos procurou não causar polêmica. Agrada mas não é definitivo, mais denso e pouco contundente. Induz para uma reflexão de um homem bom e voltado para as dificuldades de seu povo, sem arranhar a imagem construída.

Pelo Malo


Desemprego e Conservadorismo

A diretora estreante Mariana Rondón é filha de um ex-integrante de um grupo guerrilheiro venezuelano, que viria dirigir o drama Postales de Leningrado (2007). Ela obteve vários prêmios internacionais com Pelo Malo, entre eles o de melhor longa no Concha de Ouro do Festival de San Sebastian, na Espanha; também esteve presente e com imenso sucesso de público na Mostra de Cinema de São Paulo do ano passado. Não é bem-vista pelos chavistas, mas venerada pela oposição, por ter a ousadia de desafiar o regime situacionista com esta poderosa denúncia social contra seu país de origem.

Eis um drama familiar que surpreende pelo ingrediente político embutido numa Venezuela envolta numa crise imensurável sócio-econômica. A trama gira em torno do garoto de nove anos Junior (Samuel Lange Zambrano- de atuação espetacular), que sonha em alisar o cabelo encaracolado que diz ser ruim, para ficar mais parecido com a imagem do grande cantor cabeludo e ídolo pop Henry Stephen. Tem na mãe Marta (Samantha Castillo- de interpretação irrepreensível) que luta para sustentá-lo com o irmão bebê, após a morte do marido em circunstâncias trágicas, um gigantesco entrave, tendo em vista que ela quer evitar este seu jeito diferente, visto como uma vaidade gay.

O enredo mostra a avó paterna Carmen (Nelly Ramos) que não quer o mesmo fim precoce para o neto, como foi de seu filho, por isto pretende a guarda dele, que é um obstinado pelo alisamento das madeixas de qualquer maneira. Vê na figura materna um obstáculo intransponível, embora seja de um falso moralismo repressor simbolizando o modelo político vigente tutelado por Hugo Chávez. Encarna o conservadorismo e o modo emblemático autoritário daquele país latino-americano no cenário atual. Ela mesma sofre com o desemprego, custa para empregar-se e não para em lugar nenhum.

É um retrato típico do medo de uma mãe que não suporta a ideia de ver seu filho homossexual, porém discute de maneira estéril as circunstâncias que se apresentam como indicativas da situação que se desenha aos seus olhos e a cegueira que a domina. Não enxerga que falta carinho, atenção e amor para o menino que busca referência masculina no amigo próximo e sonha também em ser um atleta como os jogadores vizinhos no cortiço onde mora. A obsessão de Marta é tão grande que premedita uma grande surpresa heterossexual, para dar o exemplo ao filho se espelhar, sem prever os efeitos colaterais e o choque que criará numa criança ainda sem o entendimento correto de um coito, que se sente desamada e com profunda revolta.

O filme tem um componente político forte e é realizado com muita sensibilidade pela eficiência, domínio de elenco para uma neófita diretora, que mantém uma consistência e coesão, com uma performance acima da média na criação de personagens sólidos e psicologicamente bem construídos. É o caso de Junior e o comovente ensaio musical com a avó em Meu limão, Meu Limoeiro, composição de José Carlos Burle, em 1937, e consagrada pelo maldito e hostilizado Wilson Simonal, com uma melodia adaptada para o espanhol de maneira sedutora. Também da garotinha que pretende ser miss, fica claro a ironia sobre o tema dos concursos de beleza quase sempre já com resultados pré-definidos e com atitudes preconceituosas sobre a gordura.

Há um abordagem fiel num ambiente familiar degradado pela falta de opção de trabalho, visto com muita sutileza e reflexão sobre um momento delicado que vive os venezuelanos, assim como no recente e ótimo suspense 7 Caixas (2012), da dupla desbravadora Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, que colocam o Paraguai em evidência, embora seja um mercado sem qualquer tradição. Vem provar que existe cinema de grande qualidade também na Venezuela e não apenas Argentina, Brasil, Uruguai e Chile são polos industriais do cinema na América Latina.

Pelo Malo entra para a história de seu país como um instigante drama que retrata com dignidade a pobreza e busca no humanismo de seus personagens os fatores preponderantes como um manifesto da indignação de um sistema envelhecido pelo caudilhismo ultrapassado, pela amostragem fiel de uma classe que sofre pelo desemprego e de um país sem perspectiva de condições básicas sociais numa realidade injusta com seu povo, diante de uma instabilidade anômala, diante da estupenda visão deste longa bem elaborado e com vigor sobre os vínculos afetivos corroídos.

Cães Errantes


Miséria Angustiante

O filme Cães Errantes do malaio radicado na China Tsai Ming-Liang é daqueles que já no prólogo demonstra a intenção do cineasta: cenas em quadro estático, planos longos, escassos diálogos, como se vê na mãe ao se pentear que observa o casal de filhos dormindo languidamente. Também no epílogo a cena demora intermináveis 13 minutos na contemplação do desagregado casal para o mural em fundo branco com indicações de pedras sobrepostas. Os rostos estão contraídos e eles praticamente não se mexem, mas há um sentimento de dor, tristeza, arrependimento e tentativa de reconstrução com raiva e nojo misturado nos sentimentos e no corpo masculino de respiração arfante e de extrema angústia e desilusão com o mundo.

O diretor faz o recurso brusco das elipses ao trocar o cenário e conduzir o espectador para o plano seguinte, com a trama se desenvolvendo numa família que rompe, os estilhaços se espalham com o pai cuidando das duas crianças, onde o filho mais velho é o responsável pelos cuidados da irmã menor e administra o dinheiro do genitor que trabalha de biscates que recebe para ser aquele calado e solitário homem-placa na calçada (Lee Kang Sheng- de interpretação memorável), sob as intempéries do tempo, com chuva e vento, fica estático, canta o hino da desolação de seu país. Confessa estar com raiva, chora, fuma, bebe, explode sua ira na contrariedade das vidas errantes como se fossem animais vira-latas pulguentos que levam e os aniquilam psicologicamente. A fuga de barco com o casal de filhos e a aparição da esposa ausente que trabalha num supermercado conduz a trama para uma tentativa da reconciliação com a dignidade que se afastou há muito tempo.

Ming-Liang utiliza o cenário de uma casa abandonada em franca decomposição e na iminência de desabar, como metáfora da família em rota de ruptura, como na cena da agonia no quadro imóvel, em que há a tentativa de juntar os cacos dos destroços de uma situação em que o microcosmo familiar está em franca decadência e em vias de extinção. Um filme que passa a dor dilacerante de um pai desesperado e na miséria sufocante, tanto física como existencial, transmitida para a plateia que não está muito receptiva para a proposta experimental, o que causa um desconforto e o abandono da sala por muitas pessoas. Não é uma película de fácil aceitação, é bem verdade, mas instiga na essência e provoca através de uma estética não convencional chocante e hiper-realista que mexe com o espectador na sua comodidade de assistente através de uma metalinguagem fascinante.

Há a intenção magistral deste drama sobre a dignidade esboroada pela desgraça e o sofrimento do reencontro e da recomposição passada com um ardor primoroso e sufocante com pitadas de gangrenamentos, porém sem perder o afeto ou o amor na filha que faz do repolho uma boneca simbolizando a figura materna. Cães Errantes busca um estado na falta de movimentos como a iluminação para o rompimento deliberado para o pensamento ilógico, como numa filosofia zen budista obtido pela prática de meditação sobre o vazio, ou ainda refletir a respeito dos paradoxos e a plenitude da dignidade das vidas em consonância com as atrocidades advindas pelo destino da indigência humana.

O veterano cineasta adora estes recursos de longos planos e se utiliza com uma magistral eficiência, embora pareça meio desleixado e com dificuldades de edição, mas é sua marca registrada, como já fora com o vencedor do Leão de Ouro em Veneza por Viva o Amor (1994); O Rio (1997); e O Buraco (1998); deu uma guinada e alegrou o público ao fugir da tristeza latente com O Sabor da Melancia (2005); vence o prêmio do júri no Festival de Veneza de 2013 com este extraordinário drama que vai ao encontro de um conteúdo de renovação para um cinema inovador e marcante como simbologia de uma arte que está sempre em estado de efervescência transformativa de vanguarda e experimentação pela contundência num cenário inóspito realista de Taiwan em que foi realizado este filme incompreendido por muitos, por retratar a destruição humana com extrema melancolia que busca um objetivo como reflexão para o sentido existencial sem perder a identidade. É para chocar mesmo e fazer com que aquele espectador que ficou até o fim da sessão, reflita.

domingo, 4 de maio de 2014

7 Caixas















Um Paraguaio Legítimo

Vem do Paraguai a surpreendente produção que está encantando o mundo do cinema, tanto no Brasil como no exterior: 7 Caixas, com direção autoral impecável e promissora dos estreantes em longa Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, dois desbravadores de um mercado apagado e sem qualquer tradição de uma indústria completamente inexplorada, que registra apenas 25 obras produzidas em toda sua história e somente 22 salas de cinema no país todo. O único representante do Paraguai que tinha sido exibido no Brasil anteriormente foi Hamaca Paraguaya, de Paz Encina, em 2006, na Mostra de São Paulo.

7 Caixas já faturou mais de trinta prêmios em sua carreira desde 2012, tendo inclusive conquistado como melhor filme no Festival Internacional de Brasília do ano passado. O suspense oriundo do país vizinho vem provar que não é só na Argentina, Brasil, Uruguai e Chile, principais polos da América Latina, que se produzem boas e inteligentes obras cinematográficas com conteúdo, essência, estética inovadora, pois também é capaz de conquistar espectadores com diálogos no desconhecido guarani. O Paraguai chegou lá e abriu as portas para o mundo com criatividade, bom gosto e minguados recursos financeiros, tendo muito ardor conjugado com o amor à sétima arte, bem demonstrado por estes dois cineastas precursores motivados com um ânimo comovedor e uma semelhança estética que lembra Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, como na cena filmada por baixo pelos trilhos indo ao encontro das galinhas, bem como o conteúdo com um roteiro que remete para Quem Quer Ser Milionário (2008), do indiano Danny Boyle.

thriller retrata uma polícia permanentemente atrapalhada e corrupta, que faz qualquer coisa para ter ou conquistar, por exemplo, um celular, elemento impactante e sucessivo no filme, tal qual o protagonista Victor (Celso Franco- de atuação elogiável), um garoto que carrega cargas no Mercado 4 de Assunção e passa as horas vagas imaginando uma vida de fama, admira as televisões nas lojas e os DVDs no ano das novidades, em 2005. Não e fácil sua vida e a competição é acirrada, mas para complicar ainda mais tem como oponente uma gangue perigosa que tem na rivalidade ferrenha e sanguinária seu ponto forte e inarredável, diante de uma civilização contemplativa num sistema repressor conivente e esfacelado pela corruptela ali instalada. Embora batalhe com honestidade para conseguir os seus pequenos trabalhos, carregando as compras dos clientes, num certo dia recebe uma proposta esquisita e preocupante, porque terá que levar as famigeradas caixas contendo um material completamente desconhecido, mas para isto vai ganhar inicialmente uma nota rasgada de cem dólares e o restante receberá na entrega da mercadoria, se for com sucesso, é claro.

Maneglia e Schémbori constroem um cenário aterrador, mas ao mesmo tempo não falta bom humor e sensibilidade para um elenco magnífico, com a entrada em cena da candidata à namorada de Victor, a parceira inseparável (Lali González- brilhante no papel interpretado), o filme toma ares de perseguição e muitas atrocidades pelo caminho, numa realização com parcimônia e sem excessos de grandiloquência, mantendo a coerência estratificada dos grupos em ebulição e com sutileza na condução dos personagens para uma narrativa que refoge dos padrões habituais e se encaixa numa atmosfera de criatividade com realismo cênico, sem ferir audições ou perturbar neurônios na reflexão.

O filme trata a pobreza com dignidade, sem fazer proselitismo e nem demagogia barata, colocando o lado humano desta plêiade de personagens de carne e osso, com suas fraquezas e vicissitudes afloradas num contexto minado pelos tempos. Os diretores contam a história com refinamento de um humor sutil, característico de cineastas comprometidos com um cinema de arte buscada no âmago da vida e as necessárias denúncias para desmantelar um sistema enferrujado e que dá mostras da corrosão iminente pela contaminação apodrecida. 7 Caixas é tudo isto e está ancorado num grupo de atores amadores exemplar, através da mostragem fiel de uma classe que sofre com o desemprego e as agruras para manter a dignidade e a desconstrução de vidas eivadas pela ambição e competição desregrada num retrato sombrio de um país sem perspectiva por negar condições básicas para seus filhos em derrocada diante de uma sociedade doente, traz uma contribuição empolgante e significativa para o cinema, especialmente o paraguaio em ascensão que derruba os estereótipos das falsificações.

Debate no Rio de Janeiro

O diretor paraguaio Juan Carlos Maneglia participou de um apreciável bate-papo com o público após a exibição do filme no Cine Joia, em Copacabana, que estava completamente lotado na sessão das 17h25min do feriado de 1º. de maio, inclusive com muitas pessoas vindas diretamente da praia com suas cadeiras e esteiras, enfrentaram uma fila de espera para acomodar todos. Logo de início já conquistou a plateia presente, com seu carisma e simpatia, deu respostas objetivas e claras, tais como: o Mercado 4 de Assunção, cenário do longa, é o centro da pirataria, porém houve ética dos conterrâneos ao não piratear o filme em respeito à produção paraguaia, mesmo com insistência de muitas pessoas acostumadas nesta praxe; informou que os atores são todos amadores, exceto o protagonista que faz teatro de colégio; negou qualquer inspiração estética com o brasileiro Cidade de Deus e a cena percorrendo por baixo ao encontro das galinhas é pura coincidência e falta de recurso mesmo, pois usou uma só câmera; admitiu ter muita simpatia e gostou por demais de Quem Quer Ser Milionário, o que pode ter inspirado no conteúdo; O Paraguai produziu até agora somente 25 películas e possui 22 salas de cinema e seu filme é recordista de público em seu país, embora tenha um custo final muito baixo de US$250.000; tem em mente um projeto para o próximo longa sobre a tríplice aliança contra seu país, mas num formato de comédia infantojuvenil.