Liberdade Sofrida
Em seu quinto longa-metragem Praia do Futuro, que foi muito bem recebido no Festival de Berlim, uma
coprodução com a Alemanha, o cineasta Karim Aïnouz lança um olhar com
maturidade ao tema da relação homoafetiva, ao abordar com sensibilidade e
sutileza o vínculo amoroso estabelecido entre o salva-vidas Donato (Wagner
Moura- mais uma vez está ótimo num papel difícil) com o turista alemão Konrad
(Clemens Schick- de 007 Cassino Royale).
O drama tem uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de
lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um resultado digno inspirado no
cinema de Rainer Werner Fassbinder, como o próprio diretor assume ser um admirador
de suas obras.
A trama é dividida em três atos distintos que se
entrecruzam. Começa em Fortaleza numa competição internacional de motovelocidade
e terminará em Berlim com a chegada do irmão caçula, Ayrton (Jesuíta Barbosa-
revelação no longa Tatuagem). O mote
é a morte do companheiro de Konrad no mar, embora todo o esforço do
profissional em tirá-lo vivo das águas, o rapaz desaparece nas profundezas
perigosas. Numa exposição de fragilidades, surge a aproximação entre o
sobrevivente resgatado com o brasileiro que vive nas areias da capital cearense
salvando pessoas afogadas. Os dois tentam encontrar o desaparecido a qualquer
custo, fazem vigília com uma procura inglória.
Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as
perdas, o abandono e os encontros inusitados, como visto no bom e dinâmico Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006) alcança seu apogeu
e brilha com o drama familiar inerente à classe pobre brasileira, onde a
protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro suficiente e
comprar passagens de ônibus, ir para bem longe de seu domicílio para iniciar uma
nova vida com seu filho menor; e em codireção com Marcelo Gomes realizou o
controvertido Viajo Porque Preciso, Volto
Porque Te Amo (2009), surge a saudade da família deixada para trás e a
falta da esposa; em O Abismo Prateado (2011)
há a criatura abandonada e sua epopeia para encontrar o caminho de volta para a
lucidez. Ou seja, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo
inexplicável com o rompimento do vínculo do amor.
O filme vai direcionar as alternativas que o mundo pode
oferecer, inclusive o choque civilizatório entre dois países completamente
diferentes, como se vê nas primeiras cenas do imaginativo epílogo no nevoeiro,
que nos remete para o fabuloso drama holandês Em Silêncio, dirigido pela promissora estreante Ricky Rijneke,
ainda inédito no circuito comercial, tendo passado na Mostra de Cinema de São
Paulo do ano passado. Neste havia a primeira separação dos irmãos num posto de
gasolina, na beira de uma estrada deserta, reduto de caminhões gigantescos e
despersonalizados, como uma premonição da história. Em ambos os filmes, os
personagens são revestidos de grande humanismo como elementos essenciais,
apresentando suas dores, medos e ansiedades. No longa holandês, o furto do colar
com o peixinho retrata metaforicamente o desenlace da trama na última cena como
uma perda irreparável simbolizada, como se verá pelo nevoeiro que se aproxima e
se distancia pelo enquadramento da câmera, tal qual acontece com os três
personagens andando de moto pela rodovia em A Praia do Futuro, numa marcante imagem de uma
tomada estupenda e reveladora. O prólogo está se decifrando no final e a solidão
mesclada com a busca da liberdade presente somam-se às perdas doloridas que
ficaram para trás.
A reflexão passa também pelas culturas opostas e o destemor
dos personagens com a clarividência do propósito no futuro como ingredientes de
subsídios para uma magnífica e dura realidade, após os transtornos dos
percalços oferecidos pelo destino. As mortes são reflexos de um contexto de
diferenças e obra do acaso, mas que vão se encaixar e tornar uma relação madura
e consistente, já com a presença do irmão como símbolo do passado da ausência transformadora
da rotina, dando causas e contrastes por extensão, após o baque pessoal de uma
estabilidade falsa arrebentada pelo desaparecimento. Assim como em O Abismo Prateado , o mar está de volta e as águas
lambem a areia docemente, após as longas caminhadas lançarão os três noutro
universo, agora de asfalto e uma outra realidade, com a sugestão da emoção
motivadora da existência, diante da sensação de vazio e isolamento, numa abordagem
pungente e intensa com uma atmosfera singular.