segunda-feira, 21 de abril de 2014

Festival Varilux Cinema Francês (O Passado)
















O Passado

Outro aguardado filme que não decepcionou no Festival Varilux de Cinema Francês foi o drama O Passado, dirigido impecavelmente por Asghar Farhadi, que tem na sua filmografia o ótimo À Procura de Elly (2009), no qual abocanhou o prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim daquele ano. Com A Separação (2010) ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2012, Globo de Ouro e Urso de Ouro em Berlim, demonstrando muita simplicidade, reflexão religiosa, filosófica, cultural e política nesta extraordinária metáfora do regime ditatorial, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente pelo marido bancário, através do olhar desencantado pelas lentes deste incrível cineasta iraniano.

Farhadi novamente mostra em seu sexto longa-metragem, que é um diretor voltado essencialmente paras as coisas do cotidiano de seu país, embora tenha filmado na França, bem distante de seu povo, não se afasta das relações intrincadas e apresentadas com a tradicional naturalidade. Em A Separação tinha a câmara na mão e muito barulho, nada de silêncio e reflexões demoradas, típicas do dia a dia de Teerã. Não faz parte dos conterrâneos do cinema que tinham como cenário o interior do Irã, predominando o chão batido de terras poeirentas, onde se consagraram: Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e ainda O Vento nos Levará (1999); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000).

Neste filme a dramaticidade decorrente de uma crise conjugal volta a ser explorada com muito talento e sensibilidade. Outra vez a ruína da relação entre o marido iraniano Ahmad (Ali Mosaffa) e sua esposa francesa Marie (Bérénice Bejo- ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes 2013), o que o leva a retornar à Paris quatro depois de separados para assinar o divórcio. Ao voltar depara-se com a mulher em um novo relacionamento, Samir (Tahar Rahi- protagonista de O Profeta) é um homem parecido com ele em quase tudo, até na paciência para lidar com as situações críticas apresentadas pela destrambelhada Marie, embora tenha um confronto direto com a filha dela Luci (Pauline Burlet).

A tensão estabelecida entre a filha com a mãe está ligada diretamente ao novo romance desta pela reprovação da relação. O conflito instalado trará muitas revelações do passado e feridas abertas sem cicatrização serão removidas com crueza e uma sucessão de mal-entendidos serão colocados em xeque para os personagens conviverem e discutirem as nuances marcadas pelo tempo. A chegada de Ahmad irá aflorar alguns segredos guardados e jogados para baixo do tapete, diante da maneira controvertida da mãe em conduzir os fatos inusitados que vêm à tona. Há um grande imbróglio e trocas de acusações, principalmente pela falta iminente de paternidade para as duas filhas de pais diferentes daquela mulher perdida em seus sentimentos de poucos escrúpulos e com um vazio existencial latente.

Há um olhar de interrogação e dúvida do esposo em vias de separação sobre o futuro e as dificuldades que o levaram para romper o vínculo matrimonial e voltar para seu país, bem ao contrário no cenário encontrado na obra anterior, quando a esposa queria fugir do Irã, um lugar de liberdade limitada ao extremo, em que as mulheres não passam de meras coadjuvantes e de restritos direitos, porém de enormes obrigações, mas que a vontade maior era levar para o exterior a filha adolescente. Nos dois filmes há uma grande semelhança conceitual com a figura do marido que quer permanecer no Irã. A observação é pela visão feminina, pois há entre os homens o sentimento arraigado de permanecer em seu país para defender o sistema, enquanto isto as mulheres querem ficar bem longe na busca da liberdade como forma de independência.

O drama retrata um presente muito atual com verdades irrecuperáveis para uma reflexão sobre a culpa que está registrada em cada personagem, bem como o que não foi e poderia ser realizado com dignidade, diante da interação estabelecida com o espectador. O diretor lança as dúvidas e não radicaliza com nenhum personagem. É proposital quando ele muda o foco de Ahmad para Marie, desta para Luci, repassando para Samir, depois para a empregada. A emoção é bem contida com um tom derivando de uma situação peculiar como o divórcio para a complexidade do enredo e dos personagens que se alinham em conflitos insolúveis aparentemente.

O Passado é decorrência de A Separação e há muitos personagens em comum. Não visa mostrar inocentes neste painel de erros, culpas e arrependimentos, onde todos estão interligados nesta babel de confrontos e acusações. Todavia, nem mesmo o que há como elementos fortes de ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como consequência de um regime totalitário implantado como forma de subtrair ideias e manifestações livres e com as angústias que os acompanham. A temática é consistente aos planos intimistas do cineasta que se detém mais na abordagem moral e ética familiar do que cultural neste confronto de questões. Assim, como também no filme anterior que desenvolvia um argumento que dava importância às palavras nos diálogos numa forma bem estruturada, neste repete-se o olhar realista para um mundo em ruínas, inexistindo atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo, através de uma segura direção com um elenco impecável que dá brilho nesta obra significativa no conteúdo e magnífica no contexto.

domingo, 20 de abril de 2014

Festival Varilux Cinema Francês (Antes do Inverno)


Antes do Inverno

Mais uma surpresa positiva, talvez o melhor filme do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano, num misto de drama familiar com suspense psicológico originou o instigante Antes do Inverno, dirigido e roteirizado pelo promissor cineasta Philippe Claudel, que tem em sua filmografia dois longas anteriores: Silêncio do Amor (2010) e o cult badaladíssimo Há Tanto Tempo Que Te Amo (2008). Há um olhar amargo e ao mesmo tempo transparece uma certa doçura sobre o microcosmo familiar, sem deixar de alfinetar com boa clareza e sem subterfúgios as hipocrisias decorrentes das relações deterioradas pelo tempo, caindo as máscaras sem muito rodeio, dentro de um clima criado de dúvidas e uma acidez típica do cinema francês comprometido em mostrar uma realidade falsa de uma sociedade que vive num terreno minado.

A trama aborda Paul (Daniel Auteuil- de ótima atuação), um neurocirurgião de sessenta anos, casado com Lucie (Kristin Scott Thomas- de Há Tanto Tempo Que Te Amo, O Paciente Inglês e Quatro Casamentos e um Funeral- está maravilhosamente impecável), com quem sempre teve uma vida feliz e plena, apesar do estranho e sombrio triângulo amoroso deles com o amigo e colega psicólogo Gérard (Richard Berry). Até que num belo dia começam a chegar na casa do casal e no hospital lindos buquês de rosas, deixados anonimamente. Neste mesmo momento Lou (Leila Bekhti), uma moça de vinte anos, começa a cruzar os caminhos do médico e, aos poucos, a suposta paciente na infância torna-se uma implacável perseguidora, mantendo-o escravo e vítima de um imbróglio neste outono, a estação em que se passa a história está bem presente no seu coração e na relação com a mulher.

Como se fosse um jogo de xadrez, surgem os simulacros e logo começam a ser despidas as imagens pseudofortalecidas dos personagens que parecem embebidos por circunstâncias do passado. O diretor questiona com maturidade sobre o que eles são realmente. E a grande indagação flui sobre o que pretendem realizar nesta fase de suas vidas: manter as aparências ou cortar o vínculo da hipocrisia disfarçada de vaidades movediças? A vida do casal parecia um mar de rosas diante da alegoria das flores remetida para eles como forma de observação pelo estremecimento da relação cambaleante que se apresenta. O cineasta sinaliza para a realidade equivocada de uma ideia sonhada e em choque com a civilização e suas normas rígidas de embrutecimento, diante da iminência da inexorável velhice que se aproxima, ou do inverno, dos três representantes da farsa. Não há certeza sobre o momento adequado para revelar os segredos entre eles, mas o tempo passa e as circunstâncias se avizinham com dureza e a amizade está cada vez mais enfraquecida. Ainda haveria tempo para ousar e revelar os segredos, propõe Claudel com o seu cinismo e a ironia de um talentoso artesão.

O drama reflete o conflitado relacionamento por um interesse de Paul por Lou e revela aspectos de delírios dentro da tênue personalidade da jovem, com sua complicada e malograda infância. O suposto uso de flores e alguns sinais de uma presença constante são elementos que corroboram para uma característica doentia e vingativa, mas que em outras situações se passa por coitadinha e como mais uma vítima do sistema. Jamais negou ou confirmou a autoria dos eventos e das dissimulações ocorridas na trajetória do longa. De outra forma há a perspectiva do esquecimento e da passagem do presente na memória de Paul, indicando num futuro bem próximo a chegada da morte. A falta de solidez do casamento parece se esboroar e o que era certo cambaleia com a presença de Lou e o conflito com Lucie, reforçado pela suposição da perda inadmitida para o amigo e pretendente confesso.

Antes do Inverno busca com sensibilidade e alguma sutileza retratar a fase da maturidade sob um ângulo paradoxal do triângulo de um relacionamento de pessoas próximas que não pretendem romper um vínculo existente por décadas. Porém, com a proximidade da finitude, as fachadas de aparências vão perdendo a forma e desabando, diante da indigesta falsidade que enraizou. Há um profundo mergulho na realidade dissimulada de uma tendência para o enigma e a reflexão no epílogo como um trunfo na conclusão da trama, com os elementos imaginários de um simbolismo que substitui com sugestões e imaginações diversas o óbvio constante em filmes menores que inundam os cinemas.

Cada espectador faz seu final e exercita o fascínio das colocações e do desenlace dúbio e para memorizar e carregar as imagens e os diálogos, diante da bela canção que está presente no epílogo do drama. Tudo são sugestões sem definições, mas que instigam e perturbam os acomodados com filmes estruturados convencionalmente. O filme flui por uma dramaticidade autêntica e demolidora de conceitos equivocados nas complexas relações familiares.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Festival Varilux Cinema Francês (Uma Relação Delicada)


Uma Relação Delicada

Uma das surpresas positivas do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano é Uma Relação Delicada (título original Abus de Faiblesse), vencedor de melhor filme do Festival de Londres, dirigido pela veterana cineasta francesa Catherine Breillat, uma das mais importantes da França atualmente. Tem em sua filmografia 15 longas-metragens, numa carreira de quase 40 anos, entre os quais Sexo é Uma Comédia (2001), A Última Amante (2007), Barba Azul (2009) e o mais famoso é Romance (1999), ao celebrar a moda de incluir cenas de sexo explícito picantes em filmes de arte, utiliza inclusive um ator pornô para contracenar. Faz algo semelhante agora com o cantor de rap Kool Shen para contracenar com Isabelle Huppert.

Neste seu último longa, em que também assina o roteiro, de certa forma é um filme autobiográfico, diante da trama esquematizada, pois Huppert interpreta Maud, uma cineasta que sofre AVC e fica comprometida em seus movimentos físicos corporais. Tem uma atuação antológica por encarnar com humanismo e garra uma protagonista sequelada e retorcida nas mãos, pés e boca. Caminha com extrema dificuldade e está completamente desglamourizada, reforçada por uma construção dramática invejável ao passar para o espectador um realismo cênico admirável e singular.

O drama aborda a escolha de Maud por Vilko (Shen tem carisma e um desempenho impecável), um trapaceiro de celebridades na vida real e que conta na televisão as diversas bravatas sem arrependimento. Ela acredita cegamente que descobriu o ator ideal para seu próximo filme, já com um roteiro embrionário na cabeça. A diretora constrói uma relação inverossímil entre os dois, deixando que o empréstimo de dinheiro servisse apenas como um mote da trama. A ausência de sexo sem qualquer aproximação física representa o platonismo existente entre eles, o que remete para uma semelhança com Intocáveis (2011), de Eric Toledano e Olivier Nakache, na comovente adaptação para o cinema de uma história real de uma inesperada amizade genuína, entre um milionário tetraplégico e um ex-assaltante de uma joalheria, um imigrante do Senegal.

A improbabilidade da vinculação logo se caracteriza e se esboroa, através de um personagem hipnotizador, que faz a ficção tornar-se realidade. Na comédia de Toledano e Nakache há um componente otimista, o que não ocorre no drama de Breillat, diante do instinto predador de Vilko que começa a tirar dinheiro da protagonista, num típico relacionamento sadomasoquista. A afetividade não passa de uma loucura, que logo dá lugar para o descontrole emocional pela perda iminente da lucidez, tendo em vista que a razão soçobrou, ao desgovernar e descer ladeira abaixo. Há aparências torcidas com desdobramentos para vários horizontes nesta bancarrota, embora Maud sofra muito pela dor física da paralisia, mas seus sentimentos de ser humano também são alvos de abalos e choques, sem ceder à emoção barata.

Uma Relação Delicada retrata com dignidade a solidão inexorável que deixa vulnerável a protagonista presa à cama, mas determinada a levar adiante seu projeto cinematográfico de qualquer maneira. Não pode contar muito com os filhos distantes, com suas vidas já adultas e direcionadas pela independência, quando a procuram querem interná-la numa clínica de repouso para sua revolta e indignação. Era inevitável o desenlace daquele destino que traçou com aquele embusteiro de gente famosa, trocando o patrimônio por falsas e frágeis alegrias.

Eis uma narrativa que procura partir da premissa de personagens contundentes e em torno deles erguer uma história com realismo sobre lucidez e loucura, razão e emoção, sobre um processo de reconstrução pela perda. Há uma estrutura de imagens e diálogos adequados e sólidos para um quadro definitivo no final. É demonstrada com isenção a ideia de que certas alternativas nem sempre encontram guaridas pelo comportamento rotulado e inaceitável pela corrompida civilização. Há evidências de desprendimentos e a refutação de quaisquer tipos de ressentimentos, com notáveis cenas emotivas flutuando entre os espectadores, pelo olhar atento da cineasta que flerta com a sensibilidade e a compaixão, através de uma luz lançada na humanidade pelos méritos inegáveis ao mostrar uma relação paradoxal de duas pessoas, além da gratidão e superação, nesta obra magnífica que se afasta do politicamente correto para buscar a alegria de viver sem tédio.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Festival Varilux Cinema Francês (Um Amor em Paris)


Um Amor em Paris

Uma das grandes promessas do Festival Varilux deveria ser o aguardado Um Amor em Paris, do promissor diretor Marc Fitoussi, festejado pela bela comédia dramática Copacabana (2010) e do ainda inédito Pauline, A Detetive (2011). O terceiro longa que não empolga, decepciona, é uma comédia romântica sobre um casal de fazendeiros da Normandia, interior da França, desgastados no casamento, diante do cotidiano entre o gado Charolles e o dia a dia do campo. A história não tem ingrediente novo e é muito surrada entre os folhetins.

A trama gira em torno dos cinquentenários Brigitte (Isabelle Huppert) e Xavier (Jean-Pierre Darroussin), casados há anos, criam bovinos, mas há uma grande mudança de rota depois que seus filhos saem de casa. A mulher começa a sentir-se presa pela rotina cada vez mais pesada, parece esperar um novo acontecimento em sua vida, busca um algo mais e dá mostras de querer o resgate da liberdade sonhada. Num belo dia, há uma festa de jovens parisienses na casa vizinha, o que vem botar fogo e acelerar a crise iminente, ao conhecer um rapaz e seus encantos.

O diretor dá uma pequena guinada no roteiro e aproveita a doença de pele da protagonista, que está deixando seu humor e autoestima visivelmente prejudicados, para levá-la à Paris em uma consulta médica. O marido desconfia de que está sendo traído e vai ao seu encalço, como se buscasse uma saída para seus desatinos. É um elemento que o atormenta e gera uma grande desconfiança, mas não falta o conselho pueril do empregado e o alerta sobre o passado nada recomendável do patrão. Apesar de demonstrar alguma animação, não deixa de explodir sua raiva no restaurante, irresignando-se com o tipo de carne servida, entendendo como mais um blefe em sua vida circunstancialmente abalada.

Um filme sem profundidade nas relações matrimoniais e de previsível final, assim como no irregular e tedioso Os Belos Dias (2013), de Marion Vernoux. Fitoussi também se utiliza do estratagema da viagem pós-desavença para fortalecer os vínculos amorosos ainda existentes, que não passa de um recurso velho e ultrapassado entre os cineastas menos experientes. É um clichê já manjado e démodé pouco utilizado para os mais criativos, que se afastam do politicamente correto happy end.

Falta o clímax e a construção dramática mínima para a desenvoltura do longa, mas sobra piadas sem graça e recorrentes, numa trajetória nada animadora. Mas de bom há as interpretações sóbrias e convincentes de Huppert e Daroussin, dois exponenciais astros do cinema francês, que fazem de tudo para segurar e manter um ritmo satisfatório, porém o filme sucumbe pela falta de criatividade diante de situações sem consistência, como a tentativa do flerte de Brigitte com o jovem vendedor que conheceu na festa, que não passa de um espertalhão e mau-caráter; ou a bondade com o pobre indiano que tem suas quinquilharias recolhidas pela polícia; ou ainda o encontro com o sedutor dentista dinamarquês.

Faltou cinema para Um Amor em Paris e sobrou mesmice, numa previsível comédia com a sensação de déjà vu, pouco acrescenta pelas fragilidades contextualizadas que deixa o filme entrar em compasso de desaceleração. Sobra um falso lirismo inócuo no epílogo, beirando a singeleza e sem maiores cobranças do casal, tudo muito simplório e desproporcional que não passa de um painel burocrático sobre o estremecimento do casamento e a busca da independência feminina, embalado por uma invasiva trilha sonora e uma bonita fotografia, num roteiro pouco inspirado e com um olhar feminista engajado, sem maiores pretensões para uma análise reflexiva. Não chega a ser desprezível, pois tem como objetivo a busca constante da liberdade, embora sem instigar e sequer se aprofunda no tema, deixa como resultado uma proposta rasa.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Crônica do Fim do Mundo















Vínculos Afetivos

O cinema tem na Argentina seu polo principal como o melhor da América do Sul e um dos melhores do mundo. Na sequência, possivelmente seja Brasil e Uruguai, pela ordem de importância. O Chile vem fazendo bons filmes como o magnífico Machuca (2004), de Andrés Wood; Tony Manero (2008), de Pablo Larraín; Os Mistérios de Lisboa (2010), de Raoul Ruiz. Já o Peru não tem tradição de uma boa filmografia e Claudia Llosa surpreendeu positivamente com A Teta Assustada (2008). Desde Maria Cheia de Graça (2004), de Joshua Marston, a Colômbia não revelava nada que chamasse a atenção como uma boa produtora, agora surge com este sensível e interessante Crônica do Fim do Mundo, bem dirigido pelo estreante Mauricio Cuervo, que também é o responsável pela produção e montagem, através de um orçamento baixo e com poucos dias de gravações, como manda e pode arcar o típico cinema independente. Levou o prêmio de melhor filme colombiano no Festival de Bogotá.

Cuervo constrói uma trama com pequenos acontecimentos do cotidiano e obtém um resultado apreciável de seus personagens do povo. O mote é a profecia do fim do mundo, segundo o calendário Maia, que ocorreria em dezembro de 2012. Diante da previsão apocalíptica, surgem diversas reações causadas por ela que servirão como pano de fundo para a história bem contada, ao deixar que o medo torne-se transparente e afete o convívio familiar na bela Bogotá, às vésperas da virada do ano, onde Pablo Bernal (Victor Hugo Morant- exuberante e digna interpretação), um catedrático aposentado de 70 anos, que vive enclausurado e solitário no seu apartamento desde a morte da esposa há cerca de 20 anos, segredo que será revelado no epílogo, o que lembra o recente longa Uma Estranha Amizade (2012), de Sean Baker. Raramente sai de casa e recebe apenas as visitas do filho Felipe (Jimmy Vasquez), que acaba de ter um bebê e passa por estremecimento na relação com a esposa Claudia (Claudia Aguirre- responsável também pelo roteiro enxuto), que não aceita ficar tomando conta sozinha da criança e ainda ter que dividir o marido com o amigo Ramiro (Juan Carlos Ortega), abandonado pela mulher. Os dois passam as noites bebendo nos bares, falando de suas dificuldades financeiras e o projeto para colocar em prática as filmagens de um documentário que não sai do papel.

Assim como em A Velha dos Fundos (2011), de Pablo José Meza, que retratava o isolamento de um jovem estudante de medicina e da vizinha de 81 anos, que morava sozinha, nunca abria as cortinas do apartamento para não ser vista por ninguém da rua, Cuervo retrata com sensibilidade o vínculo e a aproximação entre o pai e o filho que torna-se a única conexão para o mundo externo. Felipe mostra em seu celular vídeos das ruas da capital colombiana para Pablo, que teima em manter uma rotina monótona na velha biblioteca, além de cultivar o horário britânico para ingerir os remédios e realizar ligações para cancelar assinatura de revista por causal banal. Embora com seu humor sarcástico diga que o fim acontecerá para algumas pessoas e não para todas, como reza os mandamentos divinos e que poderá acabar em 2020. Por que não? Numa clara ironia e desdém com as previsões que se sucedem a cada ano. Porém, aproveita-se da situação emblemática da iminência do mundo acabar mesmo, para usar o telefone e xingar seus desafetos de anos. Alguns já morreram; outros não mais o reconhecem.

O diretor se utiliza das recordações do passado para que o protagonista de verve abundante destile veneno, como se estivesse numa grande lavanderia de roupas sujas, até encontrar um psicopata, invertendo-se os papéis. Passa a ser hostilizado e ameaçado, habilmente é colocado em xeque o medo da morte pelo ser humano, não só pelo fim dos dias, mas quando se vê acuado. O temor dos personagens podem colocá-los em várias situações, sendo que uma delas é sentir-se numa selva de pedra, em que o caçador está entrincheirado e parte para o ataque, mas circunstancialmente poderá virar a paranoia da caça. O filme, ainda que tenha consistência do meio para o final, mantém um bom clímax sem perder o controle dramático, através do excelente som direto de Andrés Duret e haja cenas apanhadas em closes adequados. Afasta a câmera para personagens enigmáticos, como o rapaz que toca a campainha insistentemente, deixando pairar o suspense, como se o mundo estivesse em ruínas e prestes a desabar, numa bonita alegoria.

Crônica do Fim do Mundo é um bom filme sobre os medos inerentes do ser humano, bem como as dificuldades financeiras da classe média em geral pelo desemprego e as agruras para manter uma vida confortável como uma grande incógnita, como se vê nos amigos e a desconstrução de suas vidas e famílias. Um retrato sombrio de um país em ebulição como metáfora da extinção da humanidade e a civilização em derrocada. Um longa bem elaborado e com vigor sobre os vínculos afetivos. Mantém o fôlego até o epílogo, mesmo que não empolgue traz uma contribuição significativa para o cinema sobre a perda decorrente da morte e a preocupação avassaladora com o futuro, numa boa reflexão do vazio.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Uma Estranha Amizade


Gerações Solitárias

Sean Baker tem em sua filmografia a comédia dramática Four Letter Words (2000); com Shih-Ching Tsou codirigiu Take Out (2004), arrebatando o prêmio de melhor filme no Nasville Film Festival; o último longa foi Prince of Broadway (2008). Ao dirigir seu quarto longa-metragem Uma Estranha Amizade, que também é o produtor e o roteirista juntamente com Chis Bergoch, dá um grande salto de qualidade e mostra-se um cineasta firmado no cinema independente dos EUA, demonstrando uma rara habilidade cênica com um ótimo domínio de elenco, num filme em que a sensibilidade aflora já nas primeiras imagens, secundada por uma esplendorosa fotografia.

O drama intimista retrata com fôlego a inusitada relação de amizade nascida entre Jane (Dree Hemingway- a promissora e formosa atriz e bisneta do escritor Ernest Hemingway), uma garota de 21 anos de idade, que também usa o nome Tess para seu trabalho em gravações artísticas. Sadie (Besedka Johnson- a atriz morreu logo apos as filmagens) é uma viúva de 85 anos de idade, rabugenta e reclusa em sua casa, que num domingo qualquer faz uma venda de garagem de pertences usados no estilo de um bricabraque. Como passatempo joga bingo para atenuar a solidão em meio à desconfiança das incertezas da vida. Na cena inicial a jovem decide comprar objetos no estabelecimento e, ao chegar em casa, descobre uma grande quantidade de dólares escondidos numa garrafa térmica para ser usada como um vaso decorativo de seu quarto do apartamento que divide com um casal de amigos Melissa (Stella Maeve) e Mikey (James Rausone).

A protagonista é uma pessoa solitária que vive endividada no Vale San Fernando, em Los Angeles e tem a mãe à distância, embora seus esforços para tê-la próxima. Tem uma rotina sem muita perspectiva, fuma maconha e joga videogames com os amigos e mantém o segredo do dinheiro encontrado por acaso. Seu grande parceiro e amigo é seu cãozinho Starlet- título original do longa-, um fiel escudeiro que foi batizado com o nome feminino, por ela gostar independente de sexo, torna-se um personagem marcante nas cenas em que aparece. É com ele que divide as atenções e o enfeita como uma criança, simbolizando o vazio da existência humana da dona na tentativa do preenchimento de um espaço em aberto.

Ao abordar as diferentes gerações e as solidões inerentes que decorrem do tempo, bem como a ocupação involuntária do papel de mãe buscado em Sadie por Jane, que lhe dá afeto e a substitui no coração da idosa a filha que deixou uma ferida aberta e o silêncio guardado como pesadelo. Baker busca elementos verossímeis e universais ainda existentes como valores agregadores do ser humano. Um filme que aborda o intimismo de duas pessoas opostas, mas próximas no aspecto da carência num contexto de vidas aparentemente distantes na essência, tanto pelos gostos, usos e costumes que converge dois seres. Embora o contraste entre juventude e terceira idade surja como empecilho inicialmente, a superação e o mote inusitado da aproximação pelo sentimento de culpa fará com que se rompa o obstáculo.

O tema solidão é inesgotável e já deu excelentes reflexões como no drama argentino A Velha dos Fundos (2011), de Pablo José Meza, com uma temática similar na cosmopolita Buenos Aires, retratando o isolamento vivenciado em duas gerações distintas: uma é a de um jovem estudante de medicina, sem dinheiro para pagar o aluguel; na outra ponta está a vizinha, uma senhora de 81 anos que mora sozinha, ranzinza, mal-humorada, nunca abre as cortinas do apartamento para não ser vista por ninguém da rua e sobrevive de uma pequena pensão. São personagens muito parecidos com os do longa Medianeras (2011), de Gustavo Taretto, onde também duas criaturas desconhecidas que moram no mesmo edifício e são sós, numa profunda abordagem do vazio existencial. Ou ainda no clássico Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, tendo dois personagens sozinhos todo o tempo em Tóquio, não conseguem dormir e se encontram por acaso no bar de um hotel de luxo.

O cineasta busca na improbabilidade em Uma Estranha Amizade o elo para estreitar os laços afetivos distantes e decorrentes da abissal lacuna das diferenças de gerações, mas que as circunstâncias deixam aflorar um vínculo na trajetória das duas mulheres, como se vê no epílogo a grande revelação mantida em segredo até ali. Lança um olhar universal para as situações dos indivíduos solitários, abordando o contraponto do urbanismo com a intimidade de seus personagens individuais, dentro de seus movimentos e suas dificuldades no coletivo, onde pessoas atônitas e excluídas socialmente ficam à mercê de uma digna convivência, como retratado neste sensível e pungente drama.