sexta-feira, 28 de junho de 2024

A Sala dos Professores

 

Educação e Valores Éticos

Indicado para representar a Alemanha no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano, A Sala dos Professores tem na direção o diretor germânico, de ascendência turca, Ilker Çatak, de 40 anos, em seu terceiro longa-metragem, que também assina o roteiro em parceria Johannes Duncker. Demonstra segurança e bons conhecimentos neste drama social em que a escola é o pano de fundo para tratar de vários problemas da sociedade contemporânea. A história traz reflexões necessárias, mas de forma sutil, embora haja pouco aprofundamento na temática sobre alunos, professores e a intromissão dos pais nas diretrizes e a educação. Neste mosaico inclui o racismo, a xenofobia, o bullying, o poder da desinformação, o corporativismo entre os docentes, os cancelamentos e a censura à informação, como o jornal realizado pelos jovens. O realizador coloca em xeque uma discussão importante para a população mundial no século XXI: a educação, além de dar algumas pinceladas para refletir sobre o descaso, o preconceito de funcionários que lidam com o ensino, a segurança dos alunos e dos educadores. Está em cartaz nas plataformas Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e You Tube.

A trama gira em torno da história de Carla Nowak (Leonie Benesch, de atuação impecável, surgiu como atriz coadjuvante em A Fita Branca (2009), de Michael Haneke), a idealista professora de matemática e física, recém-chegada, que tenta manter uma relação compreensiva com seus alunos. Apesar dos contratempos inerentes da profissão de educar, a protagonista mostra controle de classe e consegue conectar-se com seus alunos de maneira satisfatória, até eclodir um clima na escola de insubordinação dos estudantes em solidariedade a um coleguinha que teve a mãe, também professora, acusada de furto e ser filmada clandestinamente. Já, antes, uma outra docente fora vista surrupiando moedas de dentro de um cofrinho. Diante dos frequentes desaparecimentos de dinheiro no recinto, os rumos da discórdia se alastram e Carla fica numa situação antagônica e desconfortável. Tudo começa quando um de seus alunos é suspeito do crime e inquirido pela direção de maneira drástica, sem defesa ampla. Lembra em muito o belo drama Monster (2023), do cultuado cineasta japonês Hirokasu Kore-eda, em que na singeleza de uma aparente serenidade escolar há uma busca de construção dos vínculos afetivos com ternura em meio a um julgamento precipitado pelas normas morais vigentes. As imposições da sociedade que nos rege e com elementos fortes de bullying, principalmente entre os grupos de colegas do colégio onde estudam os personagens em foco. Há prática sistemática de atos de violência psicológica, intimidação e humilhação, com duras consequências pela reviravolta do roteiro, que acaba por se tornar uma amarga e cruel realidade.

A Sala dos Professores mostra com realismo a protagonista tentando investigar por conta própria, mas de forma atabalhoada, o caso com consequências inimaginadas por tomar proporções que fogem do controle, afetando o comportamento dos pais e, especialmente, dos discentes. Remete com muita astúcia para a temática também abordada no badalado filme Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, morto em abril deste ano, no qual a rotina comum de uma escola francesa entra em conflito. Ali são elencadas situações que exploram as relações interpessoais e profissionais que ocorrem dentro da sala de aula, onde os professores mais antigos orientam os mais novos sobre as normas de quem é ou não comportado. Castigos e punições entre outras situações do gênero vêm à tona. Aborda um professor de língua francesa em uma escola na periferia de Paris e seus colegas de ensino que buscam apoio mútuo na difícil tarefa de fazer com que os alunos problemáticos aprendam algo ao longo do ano letivo. Violência e tensões étnicas testam sua paciência e, mais importante, sua determinação como um educador. Já o diretor alemão mostra-se preocupado com o futuro da sala de aula, que torna-se emblematicamente um laboratório. Eis um microcosmo da educação que marcam o movimento migratório no país em que são esboçados problemas como um suspense da premissa carregada em apresentar culpados de imediato. A política de tolerância zero do colégio leva a uma investigação ferrenha que afeta alunos e professores num todo. Mesmo que os valores éticos sejam corrompidos e jogados para longe num contexto de precipitação e preservação de uma moral discutível pelas fragilidades apresentadas.

Çatak é bem mais modesto e metódico e está distante de Cantet e Kore-eda, e ainda mais afastado dos realizadores búlgaros Kristina Grozeva e Petar Valchanov que brilharam no drama social A Lição (2014), premiado no Festival San Sebastián, na Espanha. A dupla conta uma dolorosa história real inspirada em uma notícia estampada na página de um jornal ao acompanhar a saga de uma metódica professora certinha de ensino fundamental de uma escola pública, que descobre um furto de dinheiro dentro da sala de aula. Cria-se uma obsessão em descobrir quem foi o culpado. Um retrato profundo dos valores éticos destruídos num país deteriorado pela corrupção policial no Leste Europeu, como metáfora do regime arcaico comunista em vias de extinção pelas incongruências de uma burocracia emperrante de um sistema superado. A Sala dos Professores tem uma abordagem apenas parecida, mas completamente divorciada de uma análise mais eloquente e incisiva. Em A Lição, a professora é colocada no meio deste turbilhão na tentativa de solucionar o caso e seu envolvimento com uma série de situações inverossímeis que a faz questionar os limites éticos e morais, numa meditação sobre o que é certo ou errado, tendo como mote a ilicitude praticada em plena sala de aula por uma criança. O epílogo é sintomático ao ser estampado pelo olhar de cumplicidade entre mestre e aluno. No filme alemão, a cumplicidade escapa e os valores éticos são esfacelados a mancheias.

Mesmo que não haja uma profundidade no tema da educação e dos subtemas que estão no fulcro do enredo, tais como racismo, xenofobia, bullying, desinformação, corporativismo, cancelamentos e censura, há razoáveis méritos nesta obra interessante. O drama que trata da pedagogia pelo viés da moralidade entra em rota de colisão entre pais, o corpo docente e discente. A confusão que se estabelece na cabeça da personagem central fica caracterizada quando aparecem várias pessoas usando a mesma blusa no corredor, onde a sintonia com a desordem se evidencia como sintoma da claustrofobia completa. Mas o realizador não deixa de explorar uma narrativa recheada de tensão, medo e humilhação como elementos significativos dos questionamentos e a exposição de cicatrizes abertas do processo investigativo dentro do colégio. Remete para uma reflexão com um desfecho inusitado do garoto sendo carregado nos ombros, em câmera lenta, como um anti-herói da estupidez pedagógica alemã vigente e os princípios da tolerância zero que apontou um filho de imigrante como surrupiador. Uma realização com uma temática universal sobre as angústias que ameaçam pela dissimulação através de uma ética que flutua por um terreno pantanoso.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Cinema Victoria Fecha Novamente

 

Já não bastavam as vidas humanas ceifadas e as astronômicas perdas materiais em maio decorrentes da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, temos outra triste notícia para os cinéfilos: fechou outra vez o charmoso Cinema Victoria de Porto Alegre. Estava ali, bem localizado no Centro Histórico, com entrada pela Av. Borges de Medeiros e pela Travessa Acilino de Carvalho (Rua 24 horas). Desaparece do cenário cinematográfico uma lenda do patrimônio da arte, um dos últimos cinemas de rua que foi empurrado nos últimos tempos para dentro de uma galeria. Restam nas calçadas somente a Cinemateca Capitólio, as salas da Casa de Cultura Mário Quintana e o CineBancários.

A trajetória começou com o cinema originalmente se chamando Vera Cruz, tendo sua primeira sessão em 04 de setembro de 1940, com a exibição do longa-metragem A Mulher Faz o Homem (1939), de Frank Capra. No início da década de 1950, fechou pela primeira vez, mas voltou a reabrir em 12 de setembro de 1953, com o nome de Victoria, exibindo A Dupla do Barulho (1953), de Carlos Manga, com Grande Otelo e Oscarito. Fechou novamente em 1998, reabriu em maio de 1999, vindo a fechar outra vez em 2018. Reabriu em julho de 2023, com o badalado filme Barbie, de Greta Gerwig, com Margot Robbie, Ryan Gosling e America Ferrera, e fechou, agora, em maio de 2024.

Assisti ali o meu primeiro filme na Capital gaúcha, o longa-metragem Um Certo Capitão Rodrigo (1971), de Anselmo Duarte, com Francisco Di Franco, Elza Prado e Pepita Rodrigues. Fui levado pela primeira vez naquele suntuoso cinema, com uma entrada principal ao estilo de um teatro, todo atapetado em vermelho para um pisar macio, dois andares de cadeiras de madeiras chiques para se apreciar as películas. Havia uma sala de espera repleta de sofás e poltronas de couro, portarias com funcionários engravatados e nas laterais bilheterias com educadas e belas moças, de cabelos presos e um sorriso carinhoso nos lábios pintados de um batom luzidio.

Existia uma bomboniere com as insuperáveis balas azedinhas e as imperdíveis balas de goma, barras de chocolate ao melhor estilo da Neugebauer. Pipoca não era recomendável, não ficava de bom tom, lembrava pessoas ruminando. Às vezes, os filmes paravam de repente para serem trocados os rolos, um bom momento para uma troca de beijos discretos e um tocar de mãos no escurinho da sala. Um aprazível local de referência para esperar a namorada e assistir em cinemascope naquele telão Tubarão (1975), de Steven Spielberg, E O Vento Levou (1939), de Victor Fleming, Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille e o badalado O Exorcista (1973), de William Friedkin.

No Cine Victoria levei meus filhos para assistir comédias, suspense, dramas e quase sempre os infantis da Walt Disney, entre os quais Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Cinderela (1950) A Bela Adormecida (1959), além de filmes de piratas, ilhas de tesouros, entre outros. Fica uma ponta de melancolia pelo fechamento e um ciclo que se encerra para um dos últimos cinemas de calçada, ou quase, pois já estava encolhido dentro de uma galeria. Agora, sobrou ali, apenas um espaço vazio que logo poderá ser locado por uma agência bancária, ou um restaurante, ou uma igreja pentecostal, ou ainda, quem sabe uma agência lotérica. Tudo ficou para trás, repleto de reminiscências das lembranças de um passado, na qual a arte e a cultura sucumbiram diante de uma economia combalida e quase sempre em crise. A dor da derrota novamente se faz presente no sombrio e desesperançado futuro do cinema. Triste, mas realista, diante da melancolia em consonância com o saudosismo.