terça-feira, 31 de agosto de 2021

Jogo do Poder

 

Armações Inescrupulosas

O cineasta grego naturalizado francês Constantin Costa-Gavras está de volta ao cinema com Jogo do Poder, demonstrando grande e calibrado poder de fogo, afiado e em boa forma no alto de seus 88 anos de idade. Mestre do cinema de denúncia política, entre os quais estão os extraordinários Z (1968), A Confissão (1970), Estado de Sítio (1972), O Quarto Poder (1997), Desaparecido- Um Grande Mistério (1982), e dos ótimos Amém (2002), O Corte (2005) e O Capital (2012). A estreia de seu último longa foi no Festival de Veneza de 2019, com inspiração no livro Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment, escrito pelo ex-ministro grego de finanças Yanis Varoufakisb, numa abordagem contundente, nua e crua, dos bastidores da terrível crise econômica da Grécia em 2015. O diretor escreveu o enxuto roteiro em parceria com o próprio Varoufakis e revelou ao site francês L’Artvues: "O filme é uma espécie de tragicomédia que os gregos viveram e ainda vivem por dez anos e na qual a Europa parece não estar muito interessada.”

O realizador faz uma abordagem transparente sobre a perversa agenda oculta da Europa que expõe o que realmente aconteceu em seus corredores dominados pelos poderosos ao apontar as razões que assolou impiedosamente a derrocada na Grécia. O drama político com viés sócio-econômico faz um relato sincero e imparcial travado em uma das mais espetaculares e controversas batalhas na história política internacional. Uma exposição com tintas fortes da insanidade e do cinismo sobre a realidade totalmente desconhecida do grande público, tendo em vista que as peculiaridades retratadas são protagonizadas principalmente porque grande parte dos negócios da União Europeia (UE) são desdobradas num submundo de portas fechadas. As razões verdadeiras que levam à crise um país poderoso como a Grécia são enfaticamente jogadas na cara da plateia para uma compreensão das artimanhas inescrupulosas de um jogo nefasto de poder com roupagem de desumanidade, tais como uma espécie de guerra fria comandada principalmente pela Alemanha, além da França, Inglaterra e outros países europeus mencionados no longa-metragem.

Através de uma fascinante trilha sonora assinada por Alexandre Desplat, no tom certo das cenas para dar fluidez à narrativa e um elenco coeso sem derrapadas, com sequências de grandes salões, jantares e reuniões, em uma estética magnífica, a trama centraliza seu foco no ex-ministro de finanças Yanis (Christos Loulis- impecável atuação). Ele narra com eficiência na primeira pessoa, ao fazer os relatos instigantes sobre os movimentos políticos na União Europeia com a participação da representante do FMI e os jogos de poder que beiram a inverossimilhança, mas que são reais e cruéis para o povo grego que votou contra no plebiscito para adesão ao contrato devastador imposto por estes órgãos. São armações políticas abjetas e nefastas. O ex-ministro é um homem talentoso e braço forte do demagogo e indeciso primeiro-ministro eleito com promessas de reformas profundas. O método de trabalho de Yanis é pela conciliação e recusa das propostas inviáveis apresentadas. Demonstra fibra e ardor na defesa de seu país que vivia um ciclo de destruição, no qual geraria apenas mais arrocho e uma queda insustentável do PIB. Não se conforma e mostra insatisfação com os métodos impostos pelas grandes nações europeias. Chega a ser constrangedor o modo como é afastado das negociações, tendo que ir embora daquelas reuniões que humilham e debocham de seus compatriotas.

O filme é um mergulho no mundo voraz de um capitalismo selvagem e desenfreado, quando bate à porta da União Europeia e do FMI para tentar solucionar a saúde financeira debilitada de uma nação, diante da grave enfermidade que assola a economia em crise ocorrida em 2015, decorrente da ciranda de negócios mal realizados num cenário nebuloso de um débito impagável, sendo que a única solução proposta por governos anteriores era fazer novos empréstimos. Costa-Gavras enfatiza o protagonista como um político malvisto por ser de esquerda e sofrer ofensas em seus valores éticos e morais, ao entrar em choque direto numa rota de colisão com a cúpula dominante. Há retaliações e ameaças no corte iminente de recursos aos bancos gregos que levariam à falência inevitável com consequências inimagináveis, causam visões alucinantes no próprio primeiro-ministro e sua indecisão diante das graves dificuldades de sobrevivência que se confundem com uma realidade quase sem saída, onde já foram cortadas na carne parte das pensões dos aposentados. É um panorama do que acontece não só num país endividado, mas que também pode ser estendido a outras nações na mesma situação de miséria em outros continentes, bem como uma abordagem sobre a concorrência desleal, onde executivos e políticos são treinados para dirigir de maneira fria, impessoal e insensível num mundo que se esboroa, com embates árduos entre os poderosos e os desmilinguidos sem a força da barganha.

Jogo do Poder é um filme conduzido com sarcasmo arrebatador, com tintas de lesão grave ao humanismo e suas perdas, sem deixar de abordar e enfocar com energia o comportamento dúbio de quem tem o poder na mão na escala de países ricos do primeiro mundo numa época em que a UE não queria mais aceitar o rolamento de dívidas com os bancos do continente. Também dá um bom enfoque nas promessas populistas de campanha de políticos aventureiros e antiéticos. Há impagáveis cenas com requintes perversos dentro de uma denúncia devastadora, como do ministro francês que joga a situação para o representante da Alemanha deslindar. Mas é fulminante e vai ao cerne da questão, no desfecho providencial na elipse da cena, em que a dança é repetida várias vezes até deixar tonto e sem lucidez o fragilizado personagem demagogo no fatídico dia da adesão ao leonino contrato unilateral. Ali se desenha um futuro como resultado de uma catástrofe na metafórica teatralização do circo político. De forma magistral, o genial Costa-Gavras marca seu retorno retumbante pelo consagrado formalismo típico com domínio narrativo ao ensinar todos a dançarem o jogo político como poucos conseguiriam esta façanha, em um epílogo inesquecível nesta obra singular.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Piedade

A Resistência

Cláudio Assis é um cineasta pernambucano que não se submete a dogmas e paradigmas daqueles filmes bem feitinhos e ajustadinhos que indiquem alguma propaganda ou louvação de um gênero. Sua cinematografia é contundente e provocativa, com reflexos marcantes sobre o comportamento humano na abordagem de temas sociais, com passagens pela violência física e psicológica. Mesmo que sua obra seja regional através da típica linguagem nordestina, a universalidade do cinema está acima e se sobrepõe peremptoriamente. Não pertence a uma casta de diretores politicamente corretos, como bem enfatiza tanto em seu discurso no cinema pelos atos do poeta anarquista no perturbador longa Febre do Rato (2011), bem como em entrevistas à imprensa. Segue uma linha dos realizadores malditos ou marginais, tais como: Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Ozualdo Candeias. Lançou-se ao cinema com dois bons filmes Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006), posteriormente realizou Big Jato (2016). Mostra novamente sua versatilidade e competência com esta nova provocação instigante, no seu quinto longa-metragem, Piedade.

Eis um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a temática do cotidiano invadido e da especulação desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. A narrativa traz no bojo um realismo da exacerbação pela intransigência através de métodos absurdos de coação de uma empresa que visa somente seus lucros e está de olho no espaço para ter melhor acesso aos recursos naturais que irá transformar aquela comunidade de uma praia fictícia da Grande Recife num verdadeiro caos aos nativos. Segue a linha do conterrâneo Kleber Mendonça Filho que lançou luzes para bons debates sobre a desenfreada especulação imobiliária no badalado O Som ao Redor (2013), e no polêmico Aquarius (2016), sobre uma empreiteira que amedronta uma jornalista aposentada, escritora, viúva e mãe de três filhos adultos, que recém saiu de um câncer de mama, o qual venceu com galhardia e determinação a moléstia, para lutar agora contra outro obstáculo da vida, sua permanência ameaçada no último edifício antigo da Av. Beira-Mar, da bela praia da cidade de Recife.

Piedade foi filmado no Porto Suape e na Reserva do Paiva, em Pernambuco, alterna alguma leveza ao mostrar um povoado com uma praia paradisíaca, cujo nome dá título do filme, com uma imensurável pressão de grupos econômicos poderosos que lançam cizânia nos nativos para uma disputa ferrenha por terras. Naquele lugar aconchegante, a trama retrata uma matriarca viúva (Fernanda Montenegro), que mora com o indignado filho, Omar (Irandhir Santos), uma espécie de resistência aos desmandos especulativos, mas percebe a dificuldade quando o dinheiro entra no jogo, e seu neto Ramsés (Francisco Assis), filho da caçula Fátima (Mariana Ruggiero), que trabalha nas cercanias de Recife. O bar mantido pela família é vítima das distorções ambientais diante da construção de um porto nas proximidades, berçário de tubarões que interferiu no habitat, e por consequência passam a atacar, acabando por afugentar os turistas que migram para outras praias menos perigosas, escasseando a clientela. Uma significativa metáfora para o duplo sentido da agressão dos tubarões, tanto o peixe como o do poder econômico.

O enxuto roteiro assinado por Hilton Lacerda e Anna Carolinna Francisco, conta uma história aparentemente simples, porém surgem na trajetória da trama situações complexas encontradas no dia a dia de qualquer mortal. Assis faz interessantes comentários sociais pelos quais é recorrente, mas sua obra traz para a telona uma reflexão mais madura e menos panfletária, embora ainda haja alguns excessos sexuais descartáveis no contexto, para melhor ser absorvida sobre a rotina dos moradores abalada pela chegada da potente empresa petrolífera Petrogreen, que decide expulsar todos de suas casas para instalar ali empreendimentos para ter melhor acesso ao local escolhido. O realizador faz referências pontuais aos problemas, como o paradoxo da corporação interessada em destruir as reservas naturais, com o pomposo nome que resume em petróleo e o verde (green), numa clara e manifesta distopia com o meio ambiente. A inverossimilhança está centrada na extração de óleos e similares se contrapondo com a preservação responsável da ecologia ao prejudicar a biodiversidade.

O diretor registra com tintas fortes o inescrupuloso representante da petrolífera, Aurélio (Mateus Nachtergaele), que negocia a compra de terrenos do vilarejo para um futuro empreendimento. Ele investiga o núcleo da família, e alguns segredos, entre eles um filho perdido, Sandro (Cauã Reymond), dono de um cinema pornô, que virão à tona, com chantagens que minam a harmonia de todos, principalmente da conciliadora mãe e sua energia diante das revelações e o constrangimento do adultério. Outra importante construção no enredo é o personagem infantil que sonha em entrar no mar, mas contenta-se com um óculos, presente do famigerado executivo, para dar vazão às suas fantasias por uma realidade virtual, o que, segundo o presenteador: “é melhor que mar de verdade”. O filme retrata com sensibilidade as hipocrisias e os cinismos do preposto do empreendimento. Assis retrata com delicadeza o lado familiar e carinhoso dos personagens na defesa de seus direitos sendo descartados por dinheiro em nome do progresso e do futuro incerto nos planos de compra. A modernização ditada como regra de soluções pragmáticas fica evidente no desfecho sombrio estampado na visão do jovem realocado, embora toda a luta da preservação como forma de manter viva a alma como essência contrária à ganância especulativa invasiva. A imposição da força dominadora do progresso no contexto é apontada no poder de fogo pela pressão psicológica. Um painel dos contrastes de uma realidade brasileira de anomalias e distanciamentos dos sonhos, sem cair na obviedade, através de elementos caracterizadores e envolventes que marcam com qualidade esta admirável obra sobre a injustiça social no cenário nacional.