As Desigualdades
Em inglórios tempos de isolamento social, com o fechamento
de cinemas, teatros e museus devido à pandemia do devastador e temido coronavírus
que distancia os seres humanos, é inevitável buscar nas plataformas de streaming, a alternativa para se assistir
filmes e sair do jejum cinematográfico imposto corretamente por decretos municipais,
estaduais e federais. A Netflix lançou mundialmente o fenômeno de público O Poço, uma produção espanhola dirigida
pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia, em que o protagonista Goreng (Ivan
Massagué) é o herói de um processo de desumanização. O drama distópico sobre a
desigualdade social que tenta achar soluções e apontar as condições degradantes
dos menos favorecidos, numa metáfora escancarada e nada sutil do capitalismo
selvagem e a eterna relação com o socialismo e suas premissas utópicas de
igualdade. O cenário é um lugar sombrio e misterioso, onde uma plataforma de
333 andares é projetada como prisão voluntária para 666 pessoas, numa espécie
de redenção ou purificação das almas, com celas sem janelas, abrigando duas por
andar.
O cineasta constrói um clima de claustrofobia para que um elevador
suba e desça, uma vez por dia, por um buraco profundo, parando por poucos
minutos em cada pavimento para alimentar os hóspedes reclusos voluntários
daquele indescritível e controvertido lugar. Parte sempre da administração que
está instalada no topo, ou seja, no último andar chamado marco zero. Ali se
instala uma batalha desumana pela sobrevivência, embora os de baixo,
principalmente a partir do meio, serão os mais prejudicados pela falta de
sensatez e solidariedade dos que habitam a parte superior. O princípio do estado
imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero e
privação da realização espanhola vai ao encontro dos dias atuais do
confinamento da população mundial pelas momentâneas circunstâncias pandêmicas
decorrentes da Covid-19, que mudou a rotina de todos de uma vez só, tornando os
dias e semanas difíceis e dramáticos. Os abrigados desta realização enxergam os
andares superiores e inferiores pelo enorme buraco do poço, sendo que a
organização é atípica e gera desconforto no personagem central, um homem com
bons princípios. Ele é um abnegado leitor e seguidor fiel do clássico espanhol Dom Quixote, de Miguel de Cervantes
(1547-1616), que se insurge com as atitudes egoístas e discricionárias na forma
de divisão dos alimentos, um verdadeiro banquete com iguarias de escargot e
carnes apetitosas, vinho e sobremesa de panna cotta, porém mal distribuído, o
que irá causar uma catarse nas cenas finais.
A falta de comida que não é reposta e proibida de ser
estocada, diante da ausência de solidariedade, principalmente dos hóspedes dos níveis
de cima com os de baixo, restando migalhas para os andares inferiores, irá
levar os reclusos para uma desunião que explodirá sob o comando do herói
quixotesco Goreng. E paramos por aí. O
Poço carece de uma abordagem aprofundada sobre a ascensão social dos
excluídos. Opta por uma narrativa com recorrentes cusparadas, defecações e
urinadas nos alimentos por parte do frustrado e agressivo companheiro de cela
do protagonista. Não falta o canibalismo cruel com situações aberrantes e sem
concessões de extirpações de órgãos humanos para o sustento. Não há sugestões
de violência, todas são explícitas e o realismo impera e predomina em quase
todo o desenrolar da história. O estupro também se faz presente, derivando do
surreal para o artificialismo lançado na esteira do enredo extravagante, por
conta e risco do inexperiente e apelativo neófito realizador.
A obra sintetiza aqueles dois homens que dividem o mesmo
espaço e que estão à beira da loucura, pela perda da lucidez que irá se
esvaindo cada vez mais, temática bem abordada pelo diretor norte-americano
Robert Eggers, no admirável O Farol (2019),
e que deveria ser retratada de maneira mais lúcida e sem a exploração do
fragilizado recurso da violência pela violência com os excessos de sangue
jorrando por todos os lados de maneira incontida e pouco inteligente, sob a
ótica equivocada de Gaztelu-Urrutia. Eggers cria um clímax hostil e pouco
saudável, misturando o realismo com o imaginário, num exercício mental delirante,
claustrofóbico e tresloucado dos limites propostos da ficção para um tensionado
e abrangente suspense que deriva para a tragédia grega, em O Farol. Utiliza a natureza invadida se vingando do homem, quando
os pássaros entram em ação para comer a carne que deverá ser regenerada como na
mitologia dos gregos que ensina sobre Prometeu sendo punido ao ter seu fígado
comido pelas águias para eternizar a tortura por ter roubado o fogo dos deuses.
Já Gaztelu-Urrutia usa e abusa do canibalismo afetado, cru, promíscuo e
agressivo, com repetições de escatologias abjetas e contrárias ao cinema de
meritória qualidade.
Também não se coadunam as simplistas comparações com o
multipremiado Parasita (2019), do
renomado e talentoso cineasta Bong Joon-ho, por alguns apressados críticos de
plantão. O filme da Coreia do Sul é uma metáfora de uma civilização doente e em
vias de extinção através de uma fábula adulta com contornos trágicos na busca
do topo da pirâmide para abandonar o triste isolamento da injustiça social.
Emocionou por ser intenso e complexo, maduro e completo, instigante e
impactante, que atingiu o patamar de uma indiscutível obra-prima. Já O Poço é um frívolo arremedo sobre
discussões e controversas de contornos de pouca relevância sobre as regras e o
formato que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência
dolorosa do cotidiano distópico. Se na realização sul-coreana ninguém ficava
ileso desta convivência marcada por acontecimentos de alta tensão, humor e a
tragédia iminente com o resultado do confronto de classes distintas e
paradoxais de uma sociedade contemporânea e o questionamento lançado pelo olhar
atento do seu festejado realizador, O
Poço transita do suspense para o terror folhetinesco sem qualidade
estética, embora tenha deixado o desfecho em aberto. Com um elenco sofrível, a
fotografia é ruim, uma direção sem pulso e desprovida de uma razoável dramaturgia
para um realismo chamativo e ineficaz. Abandona os valores essenciais de uma
visão crítica apurada para um foco rasteiro, ao jogar fora um ótimo tema
recheado de boas intenções. Faltou apuro técnico e reflexivo, mas sobraram elementos desprezíveis
de um filme visivelmente comercial e descartável por ser inconvenientemente
grosseiro.