segunda-feira, 24 de outubro de 2022

O Perdão

 

Arrependimento e Vingança

Vem do Irã em coprodução com a França o contundente drama O Perdão, que escancara o absurdo inominável da pena de morte. Um retrato digno da saga de uma mulher que luta corajosamente para exigir o reconhecimento da justiça, ainda que as autoridades se desculpem timidamente e ofereçam uma compensação financeira, pelo brutal erro cometido que levou seu marido, Babak, a ser executado. Além de dirigir e interpretar a viúva Mina, personagem central, Maryam Moghadam também assina o dinâmico roteiro ao lado de seu companheiro, Behtash Sanaeeha, e Mehrdad Kouroshniya. Abordagem contagiante da força feminina advinda da persistência para mostrar a todos que houve uma tenebrosa injustiça a um inocente, que por força das circunstâncias acabou confessando um crime que não praticou, mas que não tem volta, mesmo após ser descoberto o verdadeiro assassino. Uma obra corajosa que aponta o dedo para a questão da pena de morte e suas consequências trágicas e irreversíveis, que atingem a esposa da vítima e sua filha de oito anos, surda e muda, e seu fragilizado comportamento no colégio. Atualmente, estima-se que mais de 500 pessoas são executadas por ano.

O casal de cineasta coloca com precisão toda a tortura psicológica que sofrem as mulheres no Irã, especialmente por ter ainda que conviver com a segregação de gênero devido à condição de não ter nascido homem, bem focado no assédio sexual do inescrupuloso cunhado. Há uma boa similaridade nesta temática com o drama social egípcio O Truque da Galinha (2021), do diretor Omar El Zohairy. Por receber a visita masculina que se apresenta como um suposto amigo do marido, a protagonista é expulsa do apartamento que morava. Seu crime foi ter dividido o mesmo ambiente com uma pessoa do sexo oposto, a portas fechadas. Sofre as agruras da viuvez prematura ao tentar alugar um imóvel para residir com a filha. Um filme silencioso com um olhar feminino, de poucos diálogos, em que as imagens são reveladoras - principalmente após as manifestações recentes contra o atual regime teocrático do Irã, diante da morte da jovem Mahsa Amini, de 22 anos, presa e morta pela autoritária polícia dos costumes por não estar usando corretamente o véu na cabeça- torna o filme O Perdão atual e obrigatório a ser conferido. Foi amplamente noticiado pela imprensa os protestos em diversas ruas de Teerã e em outras cidades iranianas.

O desenrolar da trama é eloquente pela altivez da sensibilidade de focar a chaga maligna enraizada no seio de uma sociedade preconceituosa deste tema universal sobre a condição humana da mulher subserviente que busca seu espaço, e no filme, não desiste nunca de lutar pela honra enxovalhada do marido. Para isto, sobrou uma invejável força interior e uma resiliente capacidade emocional daquela mãe e esposa, que jamais se desequilibrou, mesmo que os transtornos se multiplicassem. Não se afasta do seu intuito, embora a vingança exceda os limites do bom senso diante do agente do sistema judiciário arrependido, visto como algoz, para buscar a redentora justiça, suscite uma discussão sobre o ato de perdoar contrapondo com a culpa não assumida expressamente. Polemiza a excrescência da pena de morte, figura jurídica incompatível com a possibilidade da reparação do erro. Esta realização nos remete para outra pequena obra-prima iraniana, Não Há Mal Algum (2021), vencedora do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim, do festejado diretor Mohammad Rasoulof, preso em 2010, enquanto trabalhava ao lado do conterrâneo Jafar Panahi, sendo condenado a um ano de detenção e impedido de deixar seu país desde 2017. Foi laureado pelo público na categoria de Melhor Filme de Ficção Internacional na 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo, abordou um tema pouco explorado, que é o perfil dos executores na aplicação da pena de morte ao transformar os aspectos psicológicos dos verdugos e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles, direta ou indiretamente, além das questões morais e da pena capital imposta. Uma história fragmentada e ressonante na complexidade da essência cinematográfica dos grotescos julgamentos dos não alinhados ao regime.

A liberdade individual tem pouco valor e não pode ser expressa como livre expressão de vontade em um regime tirânico diante das ameaças incontornáveis como verdades absolutas e inquestionáveis, deixando traumas indeléveis em seres humanos submetidos a execuções, apontou Rasoulof. Ficou marcante a frase dita com acidez e ironia: “Se o homem foi condenado à morte, ele deve ter feito algo para estar ali”, sendo repetida reiteradamente. Parte-se da premissa que a polícia e o judiciário não erram, por isto, pressupostamente, não há falha na engrenagem funcional, e sendo assim inexiste espaço para questionamentos sobre alguma perseguição política contrária ao conjunto de leis baseadas no Alcorão que fortalecem os regimes teocráticos. Já os realizadores Moghadam e Sanaeeha enfatizam a frase repetida várias vezes à exaustão: "foi a vontade de Deus" para acabar com a discussão sobre as perversidades do regime tomadas para punir sem respeitar o estado de direito democrático, totalmente ausente. Assim foi também no último filme de Asghar Farhadi, Um Herói (2021), na melancólica impressão de perplexidade diante de uma realidade às avessas de uma sociedade de valores tradicionais, com alguns flertes com a modernidade, impacta com a opção de continuar preso um anti-herói devedor a um agiota à margem da lei.

Tanto no prólogo como no desfecho deste admirável drama O Perdão, estão presentes as cenas estranhas com a leitura enigmática de uma citação vinda do Alcorão, sobre a passagem da Al-Baqara, A Sura da Vaca, onde Moisés menciona a reparação pela morte de um homem. O pedido explícito para sacrificar uma vaca estática no pátio de uma prisão, para convencer o povo e os desígnios do profeta como motivo controverso a ser salvo ou sacrificado? Seria o passaporte para matar ou executar um transgressor da lei? Os dilemas controvertidos da vida e da morte como resposta a tudo? São enigmas a serem decifrados sobre o destino do animal ou do homem condenado pouco importando. O copo de leite redentor na última cena estaria decifrando o jogo de xadrez proposto. Ficam as imagens para reflexão dentro do contexto da opressão às mulheres simbolizada metaforicamente com a surdez e a fala inexistente da garota na sua passividade como elementos de instrumentos sub-reptícios do sistema vigente dominante pelo fundamentalismo encontrado nos tribunais de inquisição contemporâneos. São as particularidades da engrenagem judicial do país que chamam a atenção pela burocracia e parciais métodos duvidosos com o alijamento da ampla defesa. Mas há uma cumplicidade com o silêncio de outros personagens, onde as mentiras são desculpadas com facilidade para esconder a barbárie da triste realidade na injusta execução. Os absurdos são mantidos por uma sociedade completamente dominada pelo fanatismo do pensamento religioso e amordaçada pela burocracia oficial.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Ennio, O Maestro

Um Gênio Reverenciado

Empolgante com emoção à flor da pele, assim é o documentário Ennio, O Maestro que conta a vida e a carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone (1928-2020). O artista se tornou um dos mais conhecidos compositores de trilhas sonoras de filmes, especialmente os faroestes clássicos, além de dramas e sagas históricas. O diretor é o conterrâneo Giuseppe Tornatore, para quem trabalhou em Cinema Paradiso (1988) e A Lenda do Pianista do Mar (1998), bem como escolheu para realizar sua cinebiografia, filmar e entrevistar o biografado, com o apoio de inúmeros cineastas e parceiros próximos, por cinco anos, até 2019, um ano antes de falecer, em decorrência de uma queda em casa, onde fraturou o fêmur. Trabalhou até o fim para a inauguração da nova ponte, em Gênova, numa peça em memória das vítimas do desabamento da antiga que desabou e matou 43 pessoas, em 2018. Uma excelente amostragem das observações feitas no cotidiano, a vida que iniciou com um presente do pai na juventude, um trompete para se tornar músico, embora pretendesse ser médico. Gostava de inovar, porém jamais traiu sua origem da música clássica, em especial Stravinsky, que aprendeu com Goffredo Petrassi, o compositor, professor e principal mentor de Morricone. Mas, aos poucos foi migrando para a música da sétima arte, buscando inspiração em Johann Sebastian Bach e Beethoven.

O diretor apresenta com elegância e seu estilo peculiar o maestro no processo criativo, autor de mais de 500 faixas de música para cinema, televisão e obras clássicas. Abocanhou por duas vezes o Oscar. O primeiro como honorário pelo conjunto da obra, e o segundo com Os Oito Odiados (2015), de Quentin Tarantino, denominado como “hiperbólico” pelo seu exagero contumaz, ao se derramar em elogios a Morricone. As entrevistas e os depoimentos com artistas renomados passam pelo já mencionado Tarantino, Sergio Leone, Quincy Jones, Bruce Springsteen, John Williams, Liliana Cavani, Sergio Corbucci, Clint Eastwood, Paul Anka, Wong Kar Wai, Marco Bellocchio, Dario Argento e Bernardo Bertolucci, entre tantos outros. Também traz outros fatos não revelados sobre o compositor e arranjador, como seu amor por xadrez, que ajudou em suas composições, seu pensamento e motivos por trás de cada faixa. Para um dos entrevistados, o maestro era "geométrico, matemático"; para outro, era "espiritual, transcendental". O personagem central assistiu duas versões, uma com 6h40min; a segunda, com mais de 4h; mas o longa foi finalizado com uma duração de 156minutos, que passam voando, com gosto de quero mais.

Há alguma similitude de temática com outro grande compositor no documentário Aznavour por Charles, dirigido por Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles Aznavour (1924-2018). Celebrizado pelo público e pela crítica pelas suas canções marcantes com uma carreira de 70 anos e mais de mil canções escritas com participação em dezenas de filmes, inclusive menciona agradecido e carinhosamente a amizade com o cultuado cineasta François Truffaut, ao ter a oportunidade de fazer aparições breves em algumas das realizações do mestre francês. Ennio, O Maestro também traz na sua narrativa a essência do cinema e sua fusão com a música, sendo um filme sensível, delicioso e leve sobre o sentido existencialista, seus ensinamentos e emoções com fino humor decorrente de uma vida significativa deste maestro apaixonado por música clássica e sua derivação monumental para a cinematografia colocada na tela. É admirável a forma da engrenagem que contribui sobre a arte da criação musical com reflexos diretos no cinema. Foi construído com um prólogo arrastado de uma narrativa com quase 30 minutos para as apresentações pessoais do personagem documentado. Às vezes, com alguma simplicidade; em outras, na maioria, o amor, a dedicação e a dignidade estampada sobre o emblemático artista e sua vocação que transcende da música para o cotidiano dos mortais humanos. Rege harmonicamente com ardor sua orquestra e o grupo de coralistas, que gira em torno da vida através de suas canções inesquecíveis e seu olhar atento para uma impecável apresentação.

A realização estampa e foca a maturidade de Morricone para fazer as duas coisas ao mesmo tempo. A música clássica e a de cinema, esta denominada de absoluta, termo este que utilizava para falar sobre a produção concebida como um ato livre, não condicionada a outras expressões artísticas. Criou algumas das mais marcantes trilhas sonoras do cinema, como nos faroestes de Leone, Por um Punhado de Dólares (1964), Três Homens em Conflito (1966), Era uma Vez no Oeste (1968), e a obra-prima das trilhas em Era uma Vez na América (1984); dos filmes histórico-políticos de Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel (1966), Queimada (1969) e Ogro (1979); de Dario Argento, O Pássaro das Plumas de Cristal (1970) e O Gato de Nove Caudas (1971); de Terrence Malick, Cinzas no Paraíso (1978); de Roland Joffé, A Missão (1986); de Brian De Palma, Os Intocáveis (1987); de Pasoline, Teorema (1968); de Elio Petri, Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970); de Giuliano Montaldo, Sacco e Vanzetti (1971); de Bertolucci, 1900 (1976). E tantos outros que foram mencionados com ilustrações de cenas inesquecíveis.

Ennio, O Maestro é um documentário intenso, grandiloquente, sublime e de formato espetacular, que vai muito além de enumerar os sucessos na eficiente montagem que une vários pontos de uma trajetória em que a música é o foco primordial da história contada. Admirável a menção especial ao seu grande amor, a esposa Maria Travia, união que durou 63 anos, a quem submetia as composições como consultora final antes de repassar para os cineastas. O artista fala com algum resquício de mágoa da lembrança outrora de quando houve a ocupação da Itália na Segunda Guerra Mundial, fato que nunca esqueceu diante da humilhação de tocar por um prato de comida. Também a tristeza de não ter composto para Laranja Mecânica (1971), embora consultado por Stanley Kubrick. Houve um dissimulado ruído de comunicação, pois Leone informou ao colega que não podia liberá-lo, tendo em vista que o longa Quando Explode a Vingança (1971) ainda estaria sendo realizado, numa pequena mentira do seu mais fiel parceiro. Eis um retrato pungente documentado da vida de um gênio e sua fervorosa vocação como compositor e maestro, com todo seu magnetismo e brilho quase inigualável no universo cultuado da música, em especial as trilhas sonoras para o cinema. Uma ode para os apreciadores da pura arte na companhia musical saborosa e sedutora neste tributo arrebatador.