quinta-feira, 24 de março de 2016

A Terra e a Sombra


Natureza e Progresso

A Colômbia representou a América do Sul na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro com o drama O Abraço da Serpente (2015), do diretor Ciro Guerra, retratando a busca da ancestralidade para uma descoberta do início ao fim da existência, sem ter a pretensão de ser definitivo, num choque clássico de civilizações entre o homem branco com os usos e costumes das tribos indígenas na natureza invadida. A cinematografia deste país é imensa e apresenta uma qualidade inquestionável em nosso continente, com produções poderosas e temas profundos com uma história nitidamente regional que ganha espaço no cenário internacional, como no magnífico A Terra e a Sombra, do roteirista e cineasta César Augusto Acevedo, vencedor do prêmio Caméra D’Or no Festival de Cannes do ano passado, na categoria de diretores estreantes, superando o oscarizado filme húngaro O Filho de Saul (2015), de László Nemes.

O longa foi coproduzido por mais quatro países, entre os quais o Brasil, com a presença marcante de Fátima Toledo na preparação de atores num elenco formado essencialmente por amadores como o protagonista Alfonso (Haimer Leal, era zelador num teatro em Cali) e o personagem do filho doente Gerardo (Edison Raigosa), exceto Hilda Ruiz (no papel da ex-esposa Alicia) e Marleyda Soto (interpretando a nora Esperanza). O enredo acompanha uma família humilde próxima à plantação de cana-de-açúcar na região do oeste colombiano de Valle del Cauca. Alfonso volta para casa após 17 anos de ausência para acompanhar a grave doença pulmonar do filho Gerardo, que mal consegue sair do quarto, tamanha sua fraqueza, casado com Esperanza, pai de Manuel (José Felipe Cardenas). A nora e a ex-mulher assumiram o trabalho no corte de canas para o sustento num trabalho escravo, sem mínimas condições aos empregados. Não há salário fixo, recebe pelo que produz, caso não termine a tarefa deixa de auferir ganhos e acaba despedido sem qualquer direito trabalhista. Em caso de afastamento por moléstia, como do homem doente que agoniza na cama, não recebe auxílio-doença, nem assistência médica pelo explorador daquele lugar.

Um drama doloroso sobre a relação do homem com a natureza, em que o labor pelo progresso que avança de forma invasiva, terá desdobramentos na abordagem dos vínculos familiares se corroendo, numa amostragem com humanismo sobre o patriarca de volta ao lar. Embora recebido em tom amistoso pela nora, terá que lidar com o ressentimento da ex-companheira, mas terá no neto a cumplicidade e o respeito de um ídolo que não encontra na figura paterna, decorrente do estado terminal do enfermo pelo distanciamento involuntário. Ao conquistar o carinho do garotinho que gosta de jogar pedras nos passarinhos, mas que irá aprender os ensinamentos do avô, logo passará a cortejar e assobiar, imitando-os com doçura para aproximá-los, em cenas comoventes da interação com a natureza desprotegida e violentada, que está sendo engolida por gigantescas queimadas impactantes de poderosos sem escrúpulos éticos e profissionais, que não mostram a verdadeira identidade.

A Terra e a Sombra tem como símbolo da resistência a velha senhora, bem retratado no epílogo refletindo a solidão contemplativa daquele lugar já sem futuro para ela e seus membros familiares em debandada. Restam as lembranças de um passado em que todos conviviam harmoniosamente, antes das perdas como do abandono e da morte iminente da doença que ronda aquele lugar exposto como um cenário sombrio pela melancolia. Ali já não se pode mais abrir as janelas para evitar a presença indesejada da fumaça e da poeira no interior da residência sem sol e às escuras, explorada pelas sombras constantes dentro da casa, contrastando-as com a luminosidade reinante fora dela. Fica a sensação claustrofóbica de uma prisão domiciliar, sem direito de contemplar o mundo ou respirar um ar sem fuligem pela poluição.

Eis um sensível e silencioso drama familiar que enaltece a vida com seus percalços e os contrastes da defesa lançada para salvar, mesmo de maneira pífia e saudosista, uma natureza e seus horizontes perdidos da luz e da vida. Através da bonita fotografia de Mateo Guzmán, captando imagens com fuligens cinzentas em confronto com o verde, o cineasta constrói um panorama contundente para ressaltar as precariedades rurais dos postos de saúde e o desamparo às famílias pobres pela distância com o mundo civilizado, em que tanto a dor física como a emocional emergem como denúncia reveladora de um sistema obsoleto.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Nossa Irmã Mais Nova














As Irmãs

O Festival de Cannes do ano passado teve a presença do Japão, que foi muito bem representado pelo festejado cineasta Hirokasu Kore-eda com Nossa Irmã Mais Nova. Embora aclamado pela crítica e pelo público, saiu de mãos vazias. Foi obter a recompensa pelo seu belo trabalho no Festival de Yokohama, ao ser agraciado com a premiação de melhor filme, e ainda foi laureado com o prêmio de público no Festival de San Sebastián. O multipremiado diretor nipônico já havia concorrido, sem êxito, à Palma de Ouro em outras duas vezes com Distance (2002) e Ninguém Pode Saber (2004). Também é dele os longas Depois da Vida (1998), Seguindo em Frente (2008), Air Doll (2009) e Pais e Filhos (2013).

Com uma temática voltada para as perdas, enigmas da vida e por consequência a morte, Kore-eda tem um olhar voltado para seu país e as transformações das gerações, numa abordagem humana e profunda sobre o microcosmo das relações familiares, o cotidiano das simples coisas que irão ao encontro de situações complexas e modificações relevantes. Herdou a sutileza mesclada com sensibilidade dos inspirados diretores conterrâneos como Yusujiro Ozu em Era Uma Vez em Tóquio (1953), Mikio Naruse por Midareru (1964), e o criador do cinema de animação Hayao Miyazaki com temas recorrentes da relação da humanidade com a natureza. Segue a trajetória do questionamento primoroso dos velhos mestres para mergulhar no universo peculiar das tradições da cultura japonesa. No longa Ninguém Pode Saber havia a temática da mãe ausente dos filhos e a contundente falta de afeto aos mesmos. Na sua realização anterior, Pais e Filhos retratava um drama que discutia a troca de bebês e os efeitos futuros das crianças trocadas no berçário com as revelações recebidas, num clima de tensão instalado diante do amor pelo filho de outros pais e a intolerância de um deles.

Nossa Irmã Mais Nova mostra a dolorosa distância de três filhas do pai. Elas vivem isoladas na pequena e aconchegante casa da avó na cidade litorânea de Kamakura. A mãe foi embora após a separação e aparece de vez em quando. Não há vínculo com os pais, somente entre elas. Sachi (Haruka Ayase), Yoshino (Masami Nagasawa) e Chika (Kaho) são as irmãs que não veem o pai há 15 anos, mas ao saberem da morte dele, resolvem ir ao seu enterro. Lá irão conhecer a adolescente Suzu Asano (Suzu Hirose), a tímida meia-irmã, fruto de um dos casamentos do patriarca que originou a ruptura do matrimônio da mãe delas. Convidam a pré-adolescente de 13 anos para morar junto, ensinam a menina a fazer o saboroso licor de ameixa para uma confraternização inicial. A partir da convivência entre as quatro, na qual se apegam muito rápido, aprendem e descobrem pontos sensíveis e comuns de alegrias e tristezas do relacionamento que não tiveram com a figura paterna.

O diretor traça a história com doçura, sem ser piegas, ao deixar emergir fatos que trarão conflitos sentimentais que envolvem pais ausentes. Porém, as personagens terão que lidar com adversidades repentinas, pois precisam tocar suas vidas e resolverem as encrencas do cotidiano, como na bela cena da irmã mais velha, magnificamente interpretada por Haruka Ayase, que terá de optar em seguir o destino para realizar uma especialização em medicina no exterior com o namorado, um homem casado que não consegue definir bem o que quer no futuro; ou ficar cuidando das manas, como uma típica mãezona, Uma decisão difícil que colocará o coração conflitado com a razão. Outra abordagem significativa está n relação com as cerejeiras em flor, uma festa típica da tradição no Japão, celebrada com orgulho e amor, está diretamente ligada às delícias da vida e o sonho de morrer, mas depois de contemplar o belo espetáculo visual poético, como nos episódio contado por Suzu sobre o pai, bem como da proprietária do restaurante com uma moléstia terminal.

O drama é estruturado num roteiro enxuto, com uma trilha sonora equilibrada, sendo ambientado em belas paisagens bucólicas de uma fotografia fascinante. O clímax da narrativa linear está no ponto certo, emociona sem ser intenso, embora haja alguns críticos que reclamassem da falta de conflitos mais fortes, mas o tensionamento e a complexidade da relação entre as irmãs está implícito no passado e no presente, sendo desnecessário um exposição mais visceral, pois cairia na mesmice de melodramas de clichês. Kore-eda acompanha o cotidiano das personagens com leveza, delicadeza e bom humor, como as referências aos ídolos mundiais Neymar e Zidane, para colocar no contexto Suzu, que é talentosa no futebol de seu time da escola. Alterna passagens com os novos e velhos amores, a perda de amigos e o ressurgimento esporádico de parentes próximos. Uma reflexão madura sobre as dúvidas, anseios, o amor fraterno com sua força inerente, para alicerçar as ruínas sendo reconstruídas com exemplar magnetismo de beleza lírica nas relações de afetividade, diante da morte e suas profundas sequelas deixadas silenciosamente.

quarta-feira, 2 de março de 2016

O Abraço da Serpente


Choque de Civilizações

Vem da Colômbia o drama O Abraço da Serpente, único filme da América do Sul na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro na Academia de Hollywood. Não ganhou, perdeu para o húngaro O Filho de Saul, de László Nemes, mas o fato de estar presente na festa foi motivo de regozijo para o diretor Ciro Guerra.O roteiro do longa foi estruturado em dois períodos históricos, intercalados no desenrolar da história, assinado pelo cineasta e por Jacques Toulemonde Vidal. Como proposta estética sem o colorido natural, optou para desglamourizar o contexto pela inusitada fotografia em preto e branco, de David Gallego, como um ingrediente eficaz de sustentação da trama, deixando que houvesse alguns breves contrastes da discreta utilização de cores em algumas sequências.

A primeira parte é ambientada em meados do século XX, ao fazer uma abordagem do pesquisador alemão Theo (Jan Bijvoet), já bastante debilitado em sua saúde na jornada febril, dando sinais de falência física, está à procura de uma cura advinda das crenças indígenas e suas poções milagrosas de uma lendária flor. Tem como um aliado fiel o índio Manduca (Yauenkü Migue) e do xamã Karamakate (Nilbio Torres), na inexpugnável selva amazônica, no território colombiano. A segunda parte é recriada na década de 1940, quarenta anos depois, seguida pelo etnobotânico americano Evan (Brionne Davis), outro explorador que tenta convencer Karamakate a ajudá-lo, coloca a plateia diante de outra saga, no reencontro com o selvagem bem mais velho (Antonio Bolivar), que passará a percorrer a floresta procurando a yakruna, a mística planta famosa que cura moléstias tidas como impossíveis, pela sustentação de Theo.

 O filme propõe os vínculos de Karamakate com os dois exploradores que caminham em busca da ancestralidade na sua plenitude no universo cósmico, para uma descoberta do início ao fim da existência, sem ter a pretensão de ser definitivo, que remete para uma comparação com o badalado Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), de Apichatpong Weerasethakul, pela visão de vidas, num lugar feérico que seria a origem de tudo. Em ambos estão inseridas as reflexões da transcendentalidade na esfera espiritual como sugere e deixa transparecer seus realizadores. Guerra mostra um quadro atípico sobre as pessoas apegadas aos bens materiais coletados no decorrer das expedições, mas que para alcançar um nível superior são pressionados pelos nativos para abandoná-los. Tudo gira em torno do despojamento dos próprios pertences que estará vinculado para uma percepção típica do fato com efeito transformador para se chegar até as experiências buscadas como redenção e se impõe o descarte dos objetos nitidamente materiais.

Há um choque clássico de civilizações entre o homem branco com os usos e costumes das tribos indígenas. O drama, em tom documental, não fica limitado a fornecer apenas observações sobre culturas opostas, vai além, como mostra a religiosidade obsessiva levando a extremos de intolerância numa doutrina excessiva na selva, em que há espaço até para um falso Jesus e seus seguidores, bem como o jesuíta que açoita um indiozinho no tronco da árvore, como nos tempos da escravatura da raça negra. Há uma boa amplitude para os temas serem desenvolvidos no enxuto roteiro assinado pelo cineasta e por Jacques Toulemonde Vidal, baseado nos diários de fundo científico do alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e o americano Richard Schultes (1915-2001). O fanatismo, tanto dos exploradores em busca da fórmula mágica, como dos falsos religiosos, estão inseridos com sutileza na trama e remete para o monumental Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog, em que um homem possui o devaneio de construir uma casa de ópera no meio da floresta amazônica, decide explorar a borracha para angariar fundos, mas para transportar o produto teria que atravessar morros e matas com um barco empurrado manualmente.

O Abraço da Serpente tem uma narrativa pouco convencional, ousada de certa forma, entre o passado e o presente, com a força de imagens nas crenças e descobertas. Afasta-se daquele didatismo chato encontrado em outras realizações, pela ausência temporal de elementos para diferenciar as respectivas épocas. A floresta incólume funciona como fator de protagonismo permanente para auxiliar nos contrastes perceptivos, tendo em vista que a passagem é sugerida e perceptível ao espectador para transitar índios e brancos flutuando nas suas entranhas assustadoras, tanto para os habitantes temporários como para os oriundos dali. O diretor propõe não só o estudo antropológico num mergulho com coragem e ardor, mas a valorização da natureza e o respeito pela cultura silvícola invadida por forasteiros em busca da extração da borracha e plantas medicinais, além do catequismo em missões do povo indígena por falsos messias e líderes religiosos mercenários cruéis. Um filme que defende uma causa legítima e justa, através de uma aventura quase épica, na trilha do aculturamento por desbravações das matas virgens e inóspitas, por um rio condutor dos segredos e as arapucas escondidas.