quinta-feira, 26 de maio de 2011

Chuva

















Buscas do Passado

O cinema argentino tem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade nos temas discutidos, embora muitas vezes o cenário fique em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e a sua eficácia como meta a ser atingida. Diretores como Carlos Sorín com Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001) e A Menina Santa (2004); Marcelo Piñeyro com o belíssimo Kamchatka (2002), e outros tantos que se podem dizer como cineastas comprometidos com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida, muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares.

Vem surgindo lentamente uma nova diretora neste rol elencado, embora ainda com alguma dificuldade de elaboração e conclusão de uma obra maior, Paula Hernández, com este bom Chuva, vencedor do Prêmio do Júri e Fotografia no Festival de Cinema de Gramado de 2009, com uma linda fotografia, que marca a tonalidade gris típica dos dias chuvosos. Antes já fizera Herencia (2001), onde uma italiana que chegou à Argentina logo após a 2ª Guerra Mundial, em busca de seu grande amor, sem conseguir encontrá-lo, decide permanecer no país como dona de um restaurante.

O longa-metragem traz no acaso e na precipitação do tempo, com aquele aguaceiro interminável por três dias, levando ao encontro duas pessoas perdidas numa metrópole comprometida com um trânsito caótico e enlouquecedor, completamente abarrotado de carros num mundo que parece não ter saída. Servindo assim como figura de uma metáfora das intermináveis enrascadas que cada ser humano pode ter no seu dia a dia. A fuga de uma pessoa leva ao abrigo e ao encontro da desolação de outra que tem suas perdas corroídas e com as feridas abertas de uma separação mal resolvida. Chove muito em Buenos Aires, assim como poderia ser no México, São Paulo, Rio ou Porto Alegre. Uma jovem mulher que tem no nome sugestivo toda a sua fibra e a cara da tristeza Alma (Vanessa Bertuccelli- de desempenho magnífico e comovedor, também protagonizou em Clube da Lua e XXY) dentro de seu automóvel parado no trânsito, sob uma torrencial chuvarada, vê um homem barbudo e sangrando na mão Roberto (Ernesto Alterio, de fraca atuação) entrar e sentar ao seu lado, invadindo sua privacidade e logo comendo seu sanduíche, mostra-se atônito e encharcado, com frio e angustiado, tem um blusão alcançado pela perplexa motorista.

Nenhum dos dois parece disposto a contar sobre suas vidas pessoais, procurando esconder seus segredos que serão revelados em seguida. Surge o paradoxo de dois estranhos sentados num veículo parecerem estar tão próximos e aflitos para se comunicarem e abrirem seus corações. Roberto e Alma estão contraditoriamente unidos pelo destino de um temporal e de uma inundação sem fim. Porém deste encontro puramente casual, pode-se perceber a descoberta de cada um e a ampliação dos valores que serão dados à vida, a partir deste momento inusitado com o reencontro de suas identidades. Mas a constatação crucial vem com as revelações da construção das perdas e buscas do casal na metrópole que engole ambos, no caso Buenos Aires serve de cenário deste encontro e das confissões de solidão e desatinos. Sem ter para onde ir, sendo a única pessoa pela qual se sente a vontade para contar detalhes da vida é aquela criatura estranha ao seu lado, Roberto relata que faz 30 anos que não vem ao seu país. Sua viagem agora é para encontrar um desconhecido de afeto e carinho, mas que nada mais é que o seu pai que está na finitude, ligado à musica, lembra apenas de suas mãos tocando piano. Neste aspecto a diretora remete para o filme Tetro (2009), de Francis Ford Coppola, tendo na visita ao escritor recluso e sem sucesso, desaparecido dos EUA há mais de uma década, o irascível Tetro recebe a visita de seu irmão mais novo, um jovem de 17 anos, que vai procurá-lo em Buenos Aires. A fuga de casa tem um segredo familiar e um mistério guardado a sete chaves.

O longa mostra o sofrimento de Alma, que de forma repentina chora copiosamente sem explicar suas motivações, tentando esconder o abalo emocional da separação e do lar, acaba por adotar o carro como sua residência e lá vive, sem tomar banho ou perfumar-se como qualquer mulher normal. Fuma muito, come pouco, tem um olhar perdido no horizonte emoldurado de forma magnífica pela poesia da chuva que tamborila no capô e nos vidros do carro-casa. Por outro lado, Roberto custa a esclarecer as razões pelas quais estava machucado quando conheceu Alma, até que num restaurante, ainda sob o impacto da forte tempestade, conta sua vida particular e seu sofrimento naquela Buenos Aires que lhe é tão fria, distante, estressada, onde as pessoas não se veem, com rostos anônimos, assim como seu relacionamento paterno.

A intimidade entre os dois vai se direcionando para um final previsível, após as confissões e revelações de seus estados civis. Consolida-se uma amizade entrecortada por desejos e frustrações amorosas. Aos poucos, o espectador começa a desvendar as precariedades e objetivos dos dois. A película é uma obra madura mas menor, longe de retratar ou refletir com profundidade o comportamento humano, buscando na trama de dois estranhos solitários que se encontram fortuitamente, que descobrem algumas afinidades. Chuva tem um defeito grave de direção que é o direcionamento da previsibilidade, dando elementos e subsídios claros e inequívocos do epílogo. Mas tem outras virtudes inerentes de um bom cinema, como a reflexão dos solitários perdidos numa barulhenta cidade entre ausências, saudades e medos nas buscas pessoais e seus desejos complexos.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Homens e Deuses














Religão e Política

O longa-metragem Homens e Deuses com a brilhante direção de Xavier Beauvois foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2010. Premiado ainda com o César (o Oscar francês) para melhor filme, fotografia e ator coadjuvante para Michael Lonsdale. Baseado em fatos reais ocorridos em 1996, no interior da Argélia, onde um mosteiro com freis franceses em missão pacífica vive harmoniosamente com os moradores muçulmanos, é o alvo da intolerância religiosa e política daquele país africano em convulsão social.

De um lado, um governo truculento que acusa a França de imperialismo e responsável pelo atraso, pobreza e inferioridade de seus cidadãos- numa crítica velada e verdadeira-, sugerindo profeticamente a retirada imediata dos religiosos para salvar-lhes suas vidas, chegando ao cúmulo de proibi-los de prestar ajuda ou qualquer auxílio para os opositores enfermos. De outro lado, um grupo de manifestantes fundamentalistas islâmicos que procuram remédios e dinheiro no mosteiro, sem qualquer cerimônia, justamente na noite de Natal. Os oito monges que ocupam aquele lugar singelo entre os humildes, com o intuito de pacificação, logo se veem acuados na comunidade muçulmana pobre e carente de recursos, tendo no frei Luc (Michael Lonsdale, em atuação singular e irrepreensível) um médico atento para todos os momentos e com os problemas de saúde daqueles sofridos seres humanos sem assistência do governo.

A intransigência dos homens do governo e dos fanáticos islâmicos colocam em ebulição e põem fim na paz daquele lindo lugar prazeroso, onde está plantado o mosteiro no alto da colina, com uma vista deslumbrante servindo de cenário àquele lugar que mais parece uma pintura desenhada num lindo quadro pelo impressionista clássico Renoir ou o barroco europeu Rembrandt. O diretor é cáustico e não poupa sequer a cena da degola dos croatas pelos rebeldes islâmicos, sem dó nem piedade; como também a chacina dos insurretos na estrada poeirenta e perigosa, comandada pelo ataque e execução sumária dos homens do exército governante. O filme tem uma eloquência de cenas com uma transição invejável, tendo em Beavois uma segurança precisa, mantendo o suspense e a elaboração do roteiro sempre num tom de expectativa e com uma densidade poucas vezes vista nos filmes atuais, mais preocupados em apresentar as últimas inovações tecnológicas como a febre do 3D.

Uma cena marcante que deve ser ressaltada é a do helicóptero sobrevoando a casa religiosa com seu ronco ensurdecedor e atemorizante, mas direcionando a câmera aos freis que demonstram também serem humanos e revelam suas fragilidades, medos e anseios inerentes aos mortais, pois de deuses têm pouco, exceto a fibra e a crença como clamor de uma fé por uma luta inglória. Mas nada se compara com a cena da última ceia, talvez a mais bela filmada pelo cinema nas últimas décadas. O frei e médico Luc serve vinho a todos os companheiros religiosos e coloca uma fita cassete de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, com a câmera percorrendo o rosto de todos os demais monges, fechando em close-ups um a um, inclusive no líder Christian (Lambert Wilson- de atuação estupenda) que deixa sua emoção contagiar o grupo, ao derramar lágrimas de sufoco, tensão e angústia, como uma redenção de amor ao próximo e arrependimento pelo pior que poderia acontecer ao som da música que toma conta do ambiente.

Fé e coragem são demonstrações que não faltam, apesar do final pessimista, mas revelador de uma a intransigência animalesca e verossímil com a estupidez dos homens, principalmente quando mistura-se religião e política, sem o menor escrúpulo ou abertura para um diálogo próspero. Homens e Deuses tem no seu formato inicial e o cenário a lembrança de O Nome da Rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud, logo se afastando, deixando que o roteiro pela sua contundência e grau de maturidade estética e formal, fizesse deste um filme magnífico e comovedor com seus cantos gregorianos, como no epílogo pela sua fotografia radiante na neve com um nevoeiro cinza-claro, remetendo para o apocalipse dos homens numa alegoria da morte, como se estivesse aproximando-se tragicamente.

Este é um drama francês que se insere como um dos melhores da temporada, pela sua elegância ácida de filmar e na sensibilidade narrativa, contrastando com a intolerância de classes e o fanatismo religioso islâmico fundamental extremado, tentando decifrar pelas várias citações bíblicas como se o mundo estivesse de cabeça para baixo, como nos créditos iniciais prenuncia: “vós sois deuses, todavia morrereis como homens”. Porém, pregar o bem tem um preço caro e logo são aviltados, dando lugar para o ódio e a violência, ainda que a Bíblia e o Alcorão estivessem lado a lado na pregação das rezas. Fica o sacrifício pelo ideal da fé religiosa tentada como demonstração de amor.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Feliz Que Minha Mãe Esteja Viva



















Maternidade Irresponsável

Com uma direção a quatro mãos de Claude Miller e Nathan Miller, tendo como roteirista Alain Le Henry, o longa-metragem Feliz que Minha Mãe Esteja Viva é uma boa e agradável surpresa neste 2011. Um filme quase maldito, após o produtor Jean-Louis Livi ter encaminhado para Jacques Audiard- antes de dirigir O Profeta- para fazer a adaptação em 1996, de um artigo de Emmanuel Carrère, mas que houve a desistência posterior, bem como também desistiu o autor do artigo meses depois de trabalhar no projeto.

O drama francês familiar centra-se na busca de Thomas (Vincent Rottiers, na fase adulta), filho adotivo do casal Annie e Yves (Christine Citti e Yves Verhoeven), por sua mãe biológica Julie (Sophie Cattani- em desempenho notável pelo convencimento do papel de mãe desnaturada e inumana). Aos quatro anos, o garoto interpretado por Gabin Lefebvre, é abandonado de maneira irresponsável junto com seu irmão, então ainda bebezinho.

Thomas nutre um ódio assustador e uma sensação melancólica de uma incontida raiva e revolta, que se materializa explicitamente ao completar 12 anos, persistindo até sua condição de vida adulta. A trama é elaborada em doses homeopáticas e é contada em três fases, mostrando os diversos momentos da construção psicológica daquele homem teoricamente insensato, mas que saiu de uma dolorosa infância, entrando numa pré-adolescência e dando de cara com a dura realidade do mundo adulto, buscando trabalho como mecânico numa oficina de carros, tornando-o um ser irracional em determinadas atitudes. O mote da busca da mãe biológica pelo filho adotivo, como lema principal de sua trajetória de vida, tentando a qualquer preço encontrar suas origens, sem ter bem ao certo se quer sua presença para perdoá-la e no amor esquecer seus rancores convulsivos nutridos durante toda sua existência, ou se é apenas para matá-la, como se fosse um psicopata.

Ao se aproximar da mãe e tentar conquistar seu amor frio e distante por vezes, como se não fosse uma pessoa de carne e osso, sente uma sensação de vazio, mas que aos poucos parece vai sendo superado, com um vínculo tênue, longe do amor maternal, mas que tem repercussão imediata nos pais adotivos, com uma discussão na justiça e o pai tendo sérios problemas de saúde. Feliz Que Minha Mãe Esteja Viva chega a insinuar situações edipianas, mas com o desfecho inusitado e trágico, é solenemente afastado pelos diretores na cena final em que Thomas pronuncia a frase que dá título ao filme, diante da presença arrasada da mãe biológica e da perplexidade da mãe adotiva, naquele julgamento em que Julie perdoa o filho pela loucura cometida, sem deixar de se culpar naquela intrincada e não menos delicada relação de mãe e filho.

O filme não tem por finalidade aparar arestas e sequer apontar culpados, embora as constantes gravidezes de Julie sejam contestadas pelo seu filho e questionadas ao extremo, ao reencontrá-la já com um novo irmãozinho de outro pai. Busca preencher o vazio deixado pelo abandono de anos, indo morar na casa da mãe gélida. Assume a figura paterna do garotinho, levando brinquedos e se esforçando ao máximo para que este não passe pelo que já passou. Confronta-se com o pai do seu novo irmão e cobra os horários preestabelecidos. Mãe e filho têm uma relação nada convencional, deixando os cineastas margens para sugestões e ilações como de Édipo com Jocasta na tragédia de Sófocles.

As sinalizações para um relacionamento edipiano se mostram já no início da película, quando Julie troca de roupa no quarto de um JK em que, sendo observada atentamente pelo filho, na época com 4 anos. Os movimentos lentos da câmera pelo corpo e seus membros superiores e inferiores com toques de languidez preparam e conduzem os espectadores suavemente para situações incestuosas no drama. Um outro filme que tem muito no relacionamento entre pais e filhos é Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar (2009), de Christophe Honoré, que se debruça e aborda com sensibilidade as lacunas e os conflitos familiares, os prazeres da vida e os seus incômodos restritos as suas peripécias e andanças multifacetadas, tendo na mãe a figura da falsa moralista e conservadora, embora com um passado nada recomendável para tanta tirania e proselitismo.

Este é um longa onde há a presença forte e constante de uma relação delicada e controvertida, que desconcerta por vez os menos desavisados, como visto recentemente em Eu Matei Minha Mãe (2009), de Xavier Dolan, onde nas cenas finais são reveladoras e perturbadoras, diante da expectativa não frustrada de um epílogo contundente e soberbo, como daquele jovem que se mostra forte e determinado, não passa de um ser frágil, carente e dependente do carinho materno especialmente, que tanto clamou e suplicou.

Enquanto Dolan usava a temática homossexual para apresentar suas reivindicações e mostrar seu amor e as relações edipianas, mexendo com dogmas e preconceitos nas turvas relações familiares; Christophe Honoré aborda o vazio e o microcosmo familiar com suas lacunas num falso moralismo existente numa sociedade conservadora na figura materna; Claude Miller e Nathan Miller usam o artifício da adoção e da maternidade sem controle e irresponsável, num filme que soa quase como um poema indigesto e dolorido, mas eficaz no seu contexto e na sua proposta que abrange com sensibilidade uma relação não convencional e permeada pela brutalidade com um amor distante, oriundos de vínculos corroídos pelo tempo.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Incêndios















Intolerância Nefasta

O canadense Denis Villeneuve é um diretor que vem tentando se firmar no cenário internacional desde Cosmos (1996); teve títulos ainda não traduzidos como Un 32 Août Sur Terre (1998), Polytechnique (2009); mas possivelmente seu melhor filme fosse Redemoinho (2000), antes da consagração definitiva com Incêndios, seu último longa de invejável performance.

A trama começa com a leitura de um testamento deixado pela mãe recém-falecida, dando a incumbência dolorosa para que os dois filhos descubram e entreguem uma carta para um irmão desaparecido e o pai do casal de gêmeos, tendo que voltar a um passado enigmático e triste, diante das poucas mostragens que lhes eram acenadas. Só poderão colocar a lápide na sepultura da mãe, após cumprirem suas enfadonhas tarefas documentadas expressamente em cartório. Villeneuve segue uma linha clássica de uma tragédia grega, mas sem se deixar levar por emoções exageradas ou choros incontidos, afastando sempre a pieguice. A mãe morta Nawal (Lubna Azabal) aparece em flasbacks contando a história, surgindo em diversos lugares marcantes de sua vida pretérita com passagens pelo terrorismo. Jeanne (Melissa Désormeaux-Poulin) é a filha que encarna na pele a própria mãe e segue literalmente seus passos tendo pouca ajuda do irmão Simon (Maxim Gaudette), que surge para ficar nas cenas finais, tendo um papel bastante participativo e decisivo.

Um longa-metragem sobre os dilemas, intolerâncias e devaneios das múltiplas guerras oriundas de divergências religiosas implacáveis, principalmente entre cristãos e muçulmanos, num cenário que tudo indica seja o Líbano, pelas constantes desavenças entre os povos irmãos, porém divididos pela nem tão singela opção religiosa, onde se estabeleceu um conflito interminável que gerou uma guerra civil de 1975 a 1990, num derramamento de sangue desnecessário se houvesse bom senso, mas que diante de um radicalismo exacerbado resultou em mais uma tolice absurda naquela região conflitada. As cenas vão sendo construídas meticulosamente, desde um início em que já se pressupõe que a violência está arraigada naquele lugar, como na estúpida execução pelos futuros cunhados do jovem ativista namorado da adolescente Nawal, mesmo que ela se encontrasse grávida, razão pela qual ao deixar seu testamento afirma que a infância é como se fosse uma faca na garganta a espreitar. Seu filho nasceu sob a égide do ódio e da barbárie, fruto de uma bestialidade descabida. Será o mesmo que receberá uma das cartas e o mundo implodirá aos seus pés, diante dos fatos e acontecimentos inusitados. Como numa ciranda o ódio que se transformou em vingança, restará numa dor que verterá e o possuirá por todo seu corpo e alma combalidos.

O cineasta tem na imparcialidade um de seus méritos incontestáveis, ao apresentar uma guerra sem vencedores, onde todos são vítimas, inclusive o próprio carrasco e torturador, que é fruto de um sistema de incivilidade das pessoas levadas por uma causa religiosa fanática. Está bem demonstrado na cena do ônibus incendiado pelos cristãos, com a conversão da mãe pela causa muçulmana, prevalecendo o instinto materno na convincente cena da execução, onde tenta proteger a criança inutilmente. O filme tem um nível dramático permanente do início ao fim, sem perder ou diminuir a intensidade, num final perturbador e revelador, onde há uma desintegração total dos valores, restando como cacos de vidros recolhidos de uma contundência devastadora e o epílogo se enquadra numa apoteose de arrasa-quarteirão.

O diretor critica implacavelmente a tortura, a guerra e os dogmas do fanatismo das religiões, sem fazer objeções ou preferências, num cenário que lembra em muito os filmes iranianos, com as longas sequências filmadas dos veículos nas estradas poeirentas, como na obra-prima O Gosto de Cereja (1997), de Abbas Kiarostami. Tanto pela coragem, como pela beleza plástica das imagens mesclada com a dor e o sofrimento dos três irmãos, a intransigência dogmática já viciada, todos vítimas de um sistema falido de vida e conduta, fazem de Incêndios uma obra maior e quase que inigualável na sua temática, inscrevendo-se desde já como uma das 10 melhores realizações passadas nas salas do Brasil neste 2011.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Poesia



Essência da Vida

Vem da Coreia do Sul este magnífico longa-metragem Poesia, um drama intimista com a ótima direção de Lee Chang-dong, onde a avó Mija (Jeong-Hie Yun- de atuação irrepreensível) vive às margens do rio Han, o segundo maior daquele país, com seu neto, um jovem adolescente problemático e abandonado pela mãe, filha de Mija. A senhora tem vários dilemas em sua vida, como ter que criar um garoto com enormes problemas de conduta e vida social, sem perspectiva de vida, vai mal no colégio, tem situações de rebeldia e ainda se envolve num estupro com seus amigos, decorrendo na morte precoce da menina que acaba por se suicidar.

Além dos problemas inerentes com a ocorrência policial e as investigações no inquérito, a mãe da garota chantageia os pais dos infratores em uma quantia vultosa para silenciar, vive em um local pobre na zona rural, aproveita-se do fato inusitado para tirar alguma vantagem financeira, deixando tomar corpo e forma o fato. Mas Mija se enche de coragem e começa a frequentar umas aulas de poesia, por indicação de alguns vizinhos. É desafiada por seu professor para escrever um bonito poema, sua vida toma um sentido diferente e já convalescente do Mal de Alzheimer, parece que tudo fica mais difícil e as contrariedades e controversas vão se acumulando no dia a dia.

Porém a dor de viver é anestesiada pelas palavras poéticas que ouve e escreve, como se fosse uma simbologia da luta e do seu amor pelas coisas lindas da vida, embora os percalços e as humilhações tenham que ser derrubados, como da relação carnal com seu patrão para obter dinheiro, numa clara e nítida repugnância pelo poder, tal qual visto no filme inédito comercialmente, que passou na última Mostra de Cinema de São Paulo, o bizarro Caterpillar (2010- lagarta), do diretor japonês Koji Wakamatsu, com seu inventário macabro e horrendo da sobra mutilada de um ser humano, com seus efeitos nefastos e devastadores, resultantes de uma reflexão pontual, faz com que as cenas que desfilam tenham o caráter da indignidade daquela criatura em forma de miniatura que sobrou da guerra.

Mas a persistência e a luta pela salvação do neto como ser humano lembra e nos remete para Mother- A Busca pela Verdade (2009), do diretor coreano Bong Joon-ho, de influência hitchcockiana com qualidade invulgar, ao aproximar o realismo do fantástico e desqualificar o possível culpado, buscando no jogo de valores sua visão crítica, como na cena inicial que mostra a mãe caminhando dentro de um campo de trigo e em seguida dança uma música, fazendo gestos tresloucados e enigmáticos, que terá a extensão no epílogo, poderá então o espectador fazer suas observações e conclusões desta senhora de cabelos grisalhos que busca freneticamente provar a inocência do filho deficiente mental, mas chamado com prazer pela comunidade de retardado.

Chang-dong não esconde sua inspiração do conterrâneo Bong Joon-ho, como também segue uma temática de reflexão da vida, sem apontar diretamente culpados que aparecem instintivamente nos dilemas diários, sem abrir mão da poesia e da beleza espontânea do cotidiano que a vida insiste na mostragem, apoiando-se na figura materna forte de Mija que começa a esquecer as referências familiares metaforicamente pelo esquecimento das palavras, assolada pela doença que começa a corroer-lhe, assim como o dilaceramento da célula da família já antes em ruína com a fuga da mãe e o retorno inesperado para saber notícias do filho adolescente problemático e encrencado com a justiça, mesmo naquela rua em que ele joga “frescobol” com a avó, num aparente clima calmo e silencioso, há a espreitar a dureza e o acerto de contas final, naquele gesto do policial ao abraçar-lhe quase que afetivamente.

Um filme digno e humano pela sua beleza contrastando com a dor arrebatadora da avó e a tragédia da menina violentada boiando no rio, com os fatos se intercalando no final. A busca da fotografia na igreja e a interferência direta no cotidiano dela e do neto, fazem desta forma que fique e faça parte de suas vidas na modesta residência que habitam, num choque de fraternidade e sacudida no adolescente, mas nunca sem deixar de buscar a essência de viver, tornam este longa com suas elipses adequadas num magistral depoimento de lucidez.