quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Os 10 Melhores Filmes do Ano


















Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2011, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. A Árvore da Vida (foto acima), de Terrence Malick;

02. Meia-Noite em Paris, de Woody Allen;

03. Biutiful, de Alejandro González Iñarritu;

04. Bravura Indômita, dos irmãos Ethan e Joel Coen;

05. Gainsborg- O Homem que Amava as Mulheres, de Joann Sfar;

06. Poesia, de Lee Chan-dong;

07. Submarino, de Thomas Vinterberg;

08. Incêndios, de Dennis Villeneuve;

09. O Garoto da Bicicleta, dos irmãos Dardenne;

10. A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Homens e Deuses, de Xavier Beavois;
- Inverno da Alma, de Debra Granik;
- Inquietos, de Gus Van Sant;
- Lola, de Brillante Mendoza;
- Um Lugar Qualquer, de Sofia Coppola.

Inquietos



Poema da Morte

O norte-americano Gus Van Sant é um diretor que vem se firmando no cenário internacional como um tradutor dos jovens, desde sua estreia com o filme independente Mala Noche (1986), sobre os desajustes da juventude na sociedade e a homossexualidade abordada em Milk- A Voz da Igualdade (2008), bem recebido pelos críticos. Também as drogas se inserem em suas temáticas nos longas Drugstore Cowboy (1989) e Garotos de Programa (1991). Filmou as lindas paisagens em Gerry (2002) e flutuou pelos superficiais Gênio Indomável (1997) e Encontrando Forrester (2000).

Mas com Elefante (2003) há a inspiração no massacre de Columbine, e Paranoid Park (2007) faz um estudo sobre o mundo do paraíso dos skatistas que sobem num trem de carga, sem imaginar o problema que teria. É nestes dois últimos filmes que atinge um grau mais elevado de sua filmografia e a morte está muito presente com todos os seus significados e os personagens desajustados dos adolescentes perdidos e conflitados. Retoma novamente com maturidade o tema da finitude mesclada com um grande amor, embora a morbidez esteja presente com toda sua dura realidade e uma tristeza entranhada neste magnífico Inquietos.

Van Sant usa com elegância o silêncio para mostrar a dor na trama através dos olhares em que Annabel (Mia Wasikowska- de grande interpretação, foi também a Alice no filme dirigido por Tim Burton em 2010) conhece Enoch (Henry Hopper- irrepreensível no papel; é filho do ator Dennis Hopper). Uma história pessimista sobre os jovens e sua existência, tendo na dupla uma constante convivência com a morte. Annabel sofre de câncer terminal e seu encontro com Enoch se dá num funeral, local frequentado assiduamente pelo rapaz como fuga e entretenimento.

Há uma busca ferrenha pela explicação da perda trágica de seus pais em acidente de carro, razão pela qual abomina automóveis. Deixou de estudar por ter sido expulso do colégio e sua tia, por quem é criado pouco entende a revolta. O relacionamento lúgubre lembra em muito o longa Love Story (1970), de Arthur Hiller, embora sem o melodrama deste que levou milhões de pessoas a chorarem copiosamente pela morte da garota diagnosticada com a mesma enfermidade de Annabel.

O existencialismo e suas traiçoeiras engrenagens fazem os jovens refletirem sobre o relativismo de Einstein ou sobre a teoria da evolução de Charles Darwin, sempre presentes nos quadros e livros da dupla que se completa pelas nuanças agridoces oriundas da perda da vida. É um filme que corrói os sentimentos e mostra toda sua angústia dilacerante advinda da morte à espreita em forma de um poema dolorido e perturbador; como reveladora a bela cena dos jovens na floresta que é utilizada como símbolo da paz e do aconchego, após fugirem dos pretensos inimigos no Dia das Bruxas.

O cineasta muito atento não esquece de dar uma cutucada com o personagem Hiroshi, um japonês em forma de fantasma, que surge logo após ser mencionado o episódio da bomba atômica lançada pelos EUA sobre Nagasaki, como bem evidencia a película pela sua presença constante. Apresenta-se no epílogo de fraque e cartola para o momento sublime, pois sempre esteve ao lado do inseparável amigo em todos os acontecimentos, numa espécie de anjo da guarda espiritual para aconselhamentos. Não o deixaria agora agonizando sem ajuda, diante de uma necessidade premente e indispensável, fruto de uma solidariedade dos que já partiram.

Inquietos é um filme magistral pela beleza plástica das imagens mesclada com a dor e o sofrimento do casal. É eloquente e marcante com traços pela perda absolutamente esperada, diante de um realismo pessimista e com poucas esperanças que vicejam a trajetória de dois jovens perdedores com poucos episódios de felicidade, mas aproveitados até onde foi possível.

Talvez o mais maduro e enxuto filme de Van Sant, marcado pela extrema sutileza dos gestos, afastando a pieguice desmesurada e soltando a emoção bem dosada com o clamor dos que lutam até o fim. Embora o otimismo esteja longínquo e a realidade misture-se com a delicadeza contraditória dos funerais e cemitérios visitados mesclado com bons momentos da doçura da vida. É uma obra maior e quase que inigualável na sua temática, uma das melhores realizações passadas nas salas do Brasil em 2011, embalada pela música "Two of Us", dos Beatles.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Dawson- Ilha 10

















Idealistas Prisioneiros

O cinema do Chile tem bons cineastas, como por exemplo Raoul Ruiz, morto recentemente, sem antes deixar um longa-metragem apreciável como Os Mistérios de Lisboa (2010), com quatro horas de duração, baseado no livro homônimo de Camilo Castelo Branco. Foi premiado como Melhor Filme Estrangeiro pela International Press Academy, que reúne centenas de jornalistas americanos e estrangeiros radicados nos EUA. Já seu colega cineasta Miguel Littín sempre esteve ao lado do presidente morto tragicamente Salvador Allende, durante o golpe militar de 11 de setembro de 1973, em circunstâncias até hoje discutíveis, que durou quase 20 anos sob o comando militar. Seu grande filme, um dos maiores do cinema do Chile, foi El Chacal de Nahueltoro (1969), abordando o assassinato de uma mulher e seus cinco filhos por um alcoólatra incivilizado e analfabeto.

Allende teria se suicidado? Littín questiona esta tese em seu belo filme Dawson- Ilha 10, uma produção chilena em parceria com o Brasil e a Venezuela, mostra os horrores da ditadura e as humilhações impostas aos ministros, embaixadores e autoridades do governo deposto abruptamente, com o respaldo da CIA, como bem é gizado com cores fortes no longa, através de depoimentos marcantes. O diretor é fiel em seu relato, num misto de drama e documentário, mostra os sucessivos depoimentos do presidente alijado do governo pelos militares comandados pelo tirano general Pinochet, inclusive nos seus momentos derradeiros e angustiantes no ataque ao Palácio de La Moneda.

O filme é baseado e contado na primeira pessoa pelo ex-ministro do governo Sérgio Bitar (Benjamin Vicuña), que escreveu o livro Isla 10, no qual o cineasta mostra o absurdo amplamente questionável de seres humanos serem torturados física e psicologicamente em seus intermináveis interrogatórios pelos militares, sob o comando do oficial do exército durão (Cristián de La Fuente), diante da pífia alegação acusatória de serem presos políticos comunistas e entreguistas do governo chileno para a Rússia. As pessoas aprisionadas perdem seus nomes de origem e são apenas reconhecidas por numeração, numa demonstração cabal de desrespeito humilhante.

O paradeiro dos prisioneiros é a gelada e inóspita Ilha de Dawson, no extremo sul do país, sem luz, poucas camas para os presos, ausente de recursos materiais e de saúde como insulina para os diabetes e anestesia para os feridos. É utilizada como um legítimo campo de concentração para que eles não tenham tempo de ler, pensar ou se manifestar contrários ao regime militar imposto em conluio com os EUA. Marcante a cena em que Bitar se pergunta: “O que é que eu fiz? Onde errei, para merecer tamanho castigo e trabalhos forçados?” A divisão da esquerda chilena é abordada com sutileza, pois não houve um apoio em bloco ao presidente, que viu seu governo ruir sem uma solidariedade esperada, vendo-se apenas um racha fundamental para o golpe.

Littín não construiu um filme com mágoas, rancor ou revanchista. Afasta-se do maniqueísmo simplista com extrema sutileza, como na cena da divisão do pão e da geleia entre o capitão Figueroa e o arquiteto prisioneiro, após a conclusão da restauração da igreja. O militar cumpria seu papel, mas não esquecia de ser solidário com seus irmãos chilenos, numa demonstração de humanismo e amor ao próximo. Também o soldado Pablo pagou caro por ser acusado de traição, embora fosse leal às forças armadas, a ingenuidade lhe custou muito.

Dawson- Ilha 10 é um filme feito com maturidade e a música está presente no “Está Chegando a Hora”, numa referência a esperada noite de Natal cantada pelos presos que receberam um violão supostamente da ONU, sob a enfatizada Convenção de Genebra, alegando que são presos políticos confinados e são tratados pelo referido acordo internacional. Como na morte do célebre poeta Pablo Neruda, os prisioneiros ouvem embevecidos numa galena- um rádio medieval- alguns fragmentos recitados em sua homenagem.

Um magnífico filme pela denúncia de maus tratos no campo de concentração dos presos políticos no Chile, logo após a queda do Allende e seus ministros, com o fim da democracia e a instalação de um governo rígido e ditatorial, bem representado metaforicamente na sensível cena do epílogo do afastamento de um pai e seu filho do caminhão, ou a marcha para a morte coletiva, prevalecendo a mentira e o uso em vão do nome da ONU. Fica além do valor histórico da película, a aula de humanismo pela solidariedade numa narrativa de personagens bem construídos numa civilização questionada pelas suas complexidades e paradoxos da destruição de vidas inocentes.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Tudo pelo Poder









Bastidores da Política

A campanha aética e toda sua podridão política são os principais componentes do roteiro na trama que enfoca o governador democrata Mike Morris (George Clooney- numa atuação discreta), visando à presidência dos EUA. Tudo pelo Poder tem em seu personagem central um misto do charme e elegância de John Kennedy e as aventuras sexuais de Bill Clinton com sua estagiária que sacudiram o governo e tremeu a Casa Branca. A direção é de Clooney, em seu quarto longa-metragem, com destaques para os anteriores Confissões de Uma Mente Perigosa (2002); sendo o melhor de todos Boa Noite e Boa Sorte (2006), numa verdadeira aula do bom jornalismo e suas investigações éticas.

A trajetória do filme é instigante e leva ao clímax somente no final, pois nos primeiros trinta minutos é meio sonolento, gira entre as armações quase que sem saída entre os coordenadores e assessores de campanha. De um lado o idealista político Stephen Myers (Ryan Gosling- ator canadense de estupenda interpretação, trabalhou no longa Namorados para Sempre (2010), parece ser meio ingênuo, às vezes passa por cínico, em suas armadilhas com seu chefe, o marqueteiro (Philip Seymour Hoffmann- sempre em boa forma) e do lado oposto o assessor do candidato republicano (Paul Giamatti- de notável atuação).

No meio do turbilhão do processo que se desenvolve a campanha, Stephen envolve-se com uma estagiária (Evan Rachel Wood), que teve um caso com o candidato Morris, numa clara alusão ao escândalo de Mônica Lewinsky. Tudo está por ir água abaixo e o candidato ouve de seu assessor o seguinte: “Você poderia roubar, mentir e enganar. Qualquer coisa, menos transar com a estagiária”. Mais explícito seria impossível, pois surge o episódio de Clinton com Mônica como um escândalo em erupção, tal qual um vulcão, após as revelações bombásticas de gravidez e complicações futuras. Para piorar o quadro crítico, surge a jornalista investigativa (Marisa Tomei), que está à procura de notícias retumbantes e já possui algumas informações indicativas para publicar no jornal em que trabalha, nada menos que o The New York Times. As primárias em Ohio correm um risco insustentável pelo fantasma da estagiária e o escândalo que se avizinha como iminente e devastador.

Clooney busca na política novamente a inspiração para seu novo filme, tendo um roteiro complexo baseado numa peça de Beau Willimon, mostra toda a parafernália dos bastidores de uma eleição para presidente dos EUA. É levada com muito dinheiro e mentira, como se vê na plataforma política de Morris, bem arquitetada pelo Partido Democrata, prometendo cursos universitários financiados por troca de trabalhos voluntários no setor público; uma energia limpa em uma década, através de investimentos em tecnologia; diplomacia máxima e urgente nas relações exteriores. Tudo soa falso e vazio, mas aos poucos vai virando uma contraditória verdade no discurso empolgado do carismático, bonitão e charmoso candidato, em sua busca obstinada pelo poder.

Tudo pelo Poder é um filme que aborda os ardis inescrupulosos, torna-se cético e tem uma forte consistência de personagens com diálogos equilibrados e às vezes chega na contundência, revertendo e mudando as expectativas que poderiam se encaminhar. O diretor não nega a influência do grande filme Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan Pakula, com Robert Redford e Dustin Hoffman, que culminou com a queda do ex-presidente dos EUA Richard Nixon, após o rumoroso escândalo político Watergate.

A película não é só uma reflexão ou crítica aos bastidores de uma campanha eleitoral para a presidência norte-americana, mas o paradoxo da mentira para fazer valer o ideal, como no episódio da suposta contratação de Stephen pelo oponente coordenador republicano e o envolvimento de seu próprio chefe. Muitos golpes baixos e deslizes de assessores numa campanha tumultuada pela falta do decoro, onde não há lugar para ingênuos e bonzinhos. O maquiavelismo está explícito onde “os fins justificam os meios”, parece ser copiado com maestria do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, criador do verdadeiro manual da política.

O filme se não é o melhor de Clooney, pois embora pareça ingênuo por mostrar o que se imagina como óbvio, cumpre seu papel objetivo de apresentar as falcatruas das abjetas coligações, o jogo da politicagem e a sujeira empurrada para debaixo do tapete, vender a alma para o diabo, os conflitos de lealdade e confiança, o questionamento da ética na vida pública de assessores e candidatos máximos. Fica a visão doentia dos homens públicos pelo poder e seus envolvimentos com situações escabrosas, dignas de maracutaias da melhor estirpe. A política sempre rendeu bons filmes e grandes tramas envolventes e Clooney não deixa de dar sua contribuição valiosa para esta temática milenar da politicagem e a posição de desilusão dos norte-americanos com seus dois partidos maiores, representados ultimamente por Bush e Obama.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O Céu Sobre os Ombros















Vidas Desnorteadas

Mais um documentário brasileiro que faz sucesso entre o público aficionado em cinema é este instigante O Céu Sobre os Ombros vindo de Minas Gerais, em que aborda com dignidade o retrato das vidas perturbadas de três criaturas aparentemente exóticas na cidade de Belo Horizonte, com uma direção bem equilibrada, embora pessimista do mineiro Sérgio Borges. Foi vencedor do Festival de Brasília 2010 como Melhor Filme, Direção, Prêmio Especial do Júri aos Atores, Roteiro e Montagem. Também participou da Mostra do 7º. Festcine de 2011, em Goiânia.

O cineasta usa personagens reais para construir um filme que mescla ficção e documentário. Não utiliza um roteiro tradicional, dando margem para questionamentos sobre a clássica narrativa e a linguagem do cinema. Seu mérito maior é buscar personagens bem peculiares e fruto de uma pesquisa detalhada e consistente na capital mineira, que ele tão bem conhece em todos os meandros e as consequências das dificuldades impostas aos cidadãos menos favorecidos pelo destino.

Seu painel na trama é composto pelo transexual Everlyn Barbin, que se prostitui à noite e dá aulas como professora durante o dia, demonstra seu talento e grande conhecimento acerca da literatura, mencionando especialmente Freud e Foucault; já Edjucu “Lwei” Moio é um escritor marginal africano descendente de portugueses que nunca publicou seus livros e que passa os dias em casa se lamentando, vive dos parcos ganhos da esposa e uma ajudinha da mãe, tem a dor do pai que convive ao lado de um filho com deficiência mental e sonha ter o reconhecimento de seu trabalho ignorado; e por último, o atendente de telemarketing Murari Krishna é um fanático torcedor integrante de uma torcida organizada do Atlético Mineiro, skatista e adepto fervoroso do movimento Hare Krishna.

O longa-metragem tem como fator primordial ser híbrido, onde a ficção mistura-se com a realidade e os indivíduos vão passeando e apresentando suas diferenças e dificuldades pela tela, deixando registradas as aspirações de três personagens- que não são atores profissionais- mas que vivenciam o cotidiano de uma cidade caótica e fria com as pessoas. Até o ar que se respira não está adequado com o dia a dia dos transeuntes nas calçadas, parece ser denso e chocante, assim como a própria existência humana está pesada na sua rotina, a ponto de entortar e jogar para baixo os ombros sobrecarregados por uma carga psicológica imensurável.

A película mostra que embora cada um busque seu espaço com certo pessimismo, sem ter muita eloquência nos atos, fica expressa a vontade de serem amados e terem vidas úteis na sociedade. A força e a esperança nem sempre andam juntas neste documentário, mas os objetivos estão aliados. Os lugares escuros são como metáforas da vida e dos destinos mal iluminados daquelas criaturas perdidas na noite e em seus propósitos como ideais de vida e de futuro.

No filme o transexual é o personagem mais carismático e comove com seu drama íntimo, especialmente na cena em que faz a explanação clara sobre a cirurgia para troca de sexo. Mostra-se inteirado do problema e é sabedor da falta de prazer, caso venha concretizar seu sonho, optando em permanecer em seu “status quo”, ou seja, teria mais dissabores do que felicidade se levasse adiante seu desejo de mudança.

O Céu Sobre os Ombros é um bom documentário, sem ser deslumbrante, porém tem grandes qualidades narrativas, como o cenário sóbrio num digno lusco-fusco noturno. É uma satisfatória e bem equilibrada amostragem das criaturas afastadas do convívio social desejado e que vivem quase como zumbis, funcionam como elementos de protesto e insatisfação.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Leite e Ferro















Cotidiano das Presidiárias

Leite e Ferro é uma narrativa em formato de documentário das vidas de algumas detentas no Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa- CAHMP-, em São Paulo, no ano de 2007. O local foi fechado alguns meses após as filmagens e as 70 mulheres com seus respectivos filhos foram realocadas em centros hospitalares. Venceu nas categorias de melhor direção e documentário no Festival de Paulínia de 2010. A direção é da estreante Cláudia Priscila, formada em jornalismo, antes dirigiu os curtas Parachacal (2001), Sexo e Claustro (2005) e Phedra (2008), e recentemente, junto com Kiko Goifman, dirigiu seu segundo longa Olhe Para Mim de Novo (2011), vencedor do prêmio especial do júri para documentário no Festival do Rio.

A trama enfoca o período das presas na fase do aleitamento, onde as crianças têm menos de 6 meses, sendo que com esta tenra idade são retiradas do convívio materno e literalmente depositadas em instituições de menores, sem o acompanhamento ou visita das mães, que sequer podem optar ou indicar uma amiga ou parente próximo para ficar com a guarda. São encaminhadas à adoção de forma abrupta, como ficou bem frisado nos relatos. As presidiárias falam sobre tudo, inclusive sobre os motivos que as levaram até o cárcere e a maioria é por envolvimento com tráfico de drogas, discutem a violência da polícia, os desejos sexuais e a fidelidade para seus amores bandidos; outras se mostram religiosas e cantam músicas evangélicas positivas e tentam converter as colegas.

Cláudia Priscilla peca ao deixar a câmera à deriva para captar as imagens e em alguns momentos o longa fica solto demais, parecendo uma feira livre, onde todas as mulheres falam e pouco se entende, num som captado direto e de péssima qualidade, quase que inaudível. Outro equívoco da cineasta é a tomada excessiva de closes, excedendo o limite tolerável para um bom cinema, afastando-se da realidade e do núcleo da linguagem propriamente dita. A câmera passeia dezenas de vezes pelo mesmo corredor, do início ao fim, deslocando-se pelas portas, como a induzir e ilustrar a limpeza do chão e das aberturas no Centro. Fica a sensação de um ambiente de SPA, nem de longe lembra os terríveis e infectos presídios imundos do Brasil.

O tema é complexo, mas pela ótica distorcida da diretora não necessita de muita mudança, numa abordagem vazia de conteúdo, salvo algumas exceções, como o destino dos recém-nascidos após completarem os 6 meses. Impossível fazer qualquer comparação na temática, pois poderia parecer um sacrilégio, com o magistral Leonera (2008), de Pablo Trapero, um drama argentino contundente e viril, que esbofeteia os espectadores e atinge como um soco no estômago, perturbador e denunciante dos horrores do sistema penitenciário do país vizinho, numa cadeia específica para mães e grávidas sentenciadas. Um retrato quase documental de uma mulher em sua jornada para continuar vivendo dignamente na nova fase de sua vida e que muda sua maneira de encarar o mundo, de lidar com sua mãe, de reconhecer o amor. São lançadas reflexões sobre a Argentina, sobre a maternidade, sobre a forma como as coisas devem ser.

Mas pela visão perceptiva induzida em Leite e Ferro tudo estaria aparentemente bem e pouco deve ser mudado ou demonstrado como problema crônico, há inclusive uma prisioneira afirmando, sem ironia, que seu companheiro é partidário da prisão, pois a vida por lá é bem melhor, não há a necessidade de se preocupar com a alimentação, luz, água e habitação. Ou seja, estaria o conforto ao alcance das mães? Embora uma outra mulher mencione timidamente que o bom mesmo é estar livre e com o afeto da família.

O documentário é pouco elucidativo como crítica social e se perde nos diálogos excessivos e confusos por serem pueris, num tema instigante e que renderia mais se fosse bem explorado por um diretor mais ambicioso. Leite e Ferro ficou emperrado no discurso vazio e inconsequente, diante de uma profundidade rasa em que é abordado. Sucumbe com todas as pretensões para um filme de maiores amplitudes sobre a fase do aleitamento após darem à luz e a condição das presidiárias com seus filhos no cárcere.