segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Dawson- Ilha 10

















Idealistas Prisioneiros

O cinema do Chile tem bons cineastas, como por exemplo Raoul Ruiz, morto recentemente, sem antes deixar um longa-metragem apreciável como Os Mistérios de Lisboa (2010), com quatro horas de duração, baseado no livro homônimo de Camilo Castelo Branco. Foi premiado como Melhor Filme Estrangeiro pela International Press Academy, que reúne centenas de jornalistas americanos e estrangeiros radicados nos EUA. Já seu colega cineasta Miguel Littín sempre esteve ao lado do presidente morto tragicamente Salvador Allende, durante o golpe militar de 11 de setembro de 1973, em circunstâncias até hoje discutíveis, que durou quase 20 anos sob o comando militar. Seu grande filme, um dos maiores do cinema do Chile, foi El Chacal de Nahueltoro (1969), abordando o assassinato de uma mulher e seus cinco filhos por um alcoólatra incivilizado e analfabeto.

Allende teria se suicidado? Littín questiona esta tese em seu belo filme Dawson- Ilha 10, uma produção chilena em parceria com o Brasil e a Venezuela, mostra os horrores da ditadura e as humilhações impostas aos ministros, embaixadores e autoridades do governo deposto abruptamente, com o respaldo da CIA, como bem é gizado com cores fortes no longa, através de depoimentos marcantes. O diretor é fiel em seu relato, num misto de drama e documentário, mostra os sucessivos depoimentos do presidente alijado do governo pelos militares comandados pelo tirano general Pinochet, inclusive nos seus momentos derradeiros e angustiantes no ataque ao Palácio de La Moneda.

O filme é baseado e contado na primeira pessoa pelo ex-ministro do governo Sérgio Bitar (Benjamin Vicuña), que escreveu o livro Isla 10, no qual o cineasta mostra o absurdo amplamente questionável de seres humanos serem torturados física e psicologicamente em seus intermináveis interrogatórios pelos militares, sob o comando do oficial do exército durão (Cristián de La Fuente), diante da pífia alegação acusatória de serem presos políticos comunistas e entreguistas do governo chileno para a Rússia. As pessoas aprisionadas perdem seus nomes de origem e são apenas reconhecidas por numeração, numa demonstração cabal de desrespeito humilhante.

O paradeiro dos prisioneiros é a gelada e inóspita Ilha de Dawson, no extremo sul do país, sem luz, poucas camas para os presos, ausente de recursos materiais e de saúde como insulina para os diabetes e anestesia para os feridos. É utilizada como um legítimo campo de concentração para que eles não tenham tempo de ler, pensar ou se manifestar contrários ao regime militar imposto em conluio com os EUA. Marcante a cena em que Bitar se pergunta: “O que é que eu fiz? Onde errei, para merecer tamanho castigo e trabalhos forçados?” A divisão da esquerda chilena é abordada com sutileza, pois não houve um apoio em bloco ao presidente, que viu seu governo ruir sem uma solidariedade esperada, vendo-se apenas um racha fundamental para o golpe.

Littín não construiu um filme com mágoas, rancor ou revanchista. Afasta-se do maniqueísmo simplista com extrema sutileza, como na cena da divisão do pão e da geleia entre o capitão Figueroa e o arquiteto prisioneiro, após a conclusão da restauração da igreja. O militar cumpria seu papel, mas não esquecia de ser solidário com seus irmãos chilenos, numa demonstração de humanismo e amor ao próximo. Também o soldado Pablo pagou caro por ser acusado de traição, embora fosse leal às forças armadas, a ingenuidade lhe custou muito.

Dawson- Ilha 10 é um filme feito com maturidade e a música está presente no “Está Chegando a Hora”, numa referência a esperada noite de Natal cantada pelos presos que receberam um violão supostamente da ONU, sob a enfatizada Convenção de Genebra, alegando que são presos políticos confinados e são tratados pelo referido acordo internacional. Como na morte do célebre poeta Pablo Neruda, os prisioneiros ouvem embevecidos numa galena- um rádio medieval- alguns fragmentos recitados em sua homenagem.

Um magnífico filme pela denúncia de maus tratos no campo de concentração dos presos políticos no Chile, logo após a queda do Allende e seus ministros, com o fim da democracia e a instalação de um governo rígido e ditatorial, bem representado metaforicamente na sensível cena do epílogo do afastamento de um pai e seu filho do caminhão, ou a marcha para a morte coletiva, prevalecendo a mentira e o uso em vão do nome da ONU. Fica além do valor histórico da película, a aula de humanismo pela solidariedade numa narrativa de personagens bem construídos numa civilização questionada pelas suas complexidades e paradoxos da destruição de vidas inocentes.

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