terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O Tigre Branco




 



Castas Sociais

Lançado há poucas semanas pela poderosa plataforma de streaming da Netflix, o filme O Tigre Branco traz na sua construção uma crítica social sarcástica com humor corrosivo e uma violência moderada, com um viés nitidamente anticapitalista. Já é um dos mais vistos e comentados pelos críticos e cinéfilos em busca de histórias com bom conteúdo diante do distanciamento das telonas por conta da pandemia da Covid-19. Baseado no best-seller homônimo de Aravind Adiga, ganhador do almejado prêmio Man Booker Prize de 2008, aborda a história do ambicioso motorista indiano Balram (Adarsh Gourav) que quer fugir da pobreza humilhante e se libertar da vida de escravidão dedicada aos patrões milionários, usando a astúcia para tornar-se um novo rico, precedido de uma ascensão social com decisões ilegais e antiéticas. A direção e o roteiro são do competente cineasta norte-americano descendente de imigrantes iranianos Ramin Bahrani, que tem em sua filmografia os longas A Qualquer Preço (2012) e Fahrenheit 451 (2018).

Eis um drama social indiano coproduzido com os EUA, que tem sua ação transcorrida e filmada totalmente na Índia, para retratar e contar a história do personagem central, um homem bem-sucedido que escreve para o primeiro-ministro da China, explicando como subiu socialmente alguns degraus para chegar até o topo da pirâmide de uma sociedade de castas, resumidas entre pobres e ricos no seu país. Explica que o “tigre branco” que empresta o nome ao título do filme é um animal raro que existe apenas um exemplar por geração. É uma alusão alegórica tão improvável quanto alguém que nasceu pobre no depauperado vilarejo de Laxmangarh acabar ficando rico. O filme mostra que o personagem teve uma infância dura e foi explorado por uma família com requintes de máfia suburbana de um sistema de duas distintas castas. Sobre passar da condição inferior para a superior, diz ser uma lógica inverossímil diante da corrupção reinante naquela sociedade em que o uso de expedientes nefastos são defendidos, uma espécie de “os fins justificam os meios”, celebrizado na obra O Príncipe, de Maquiavel. Desabafa com uma frase ardilosa e raivosa sobre a ascensão: “Um empresário indiano deve ser ético e antiético, crente e descrente, malicioso e sincero, tudo ao mesmo tempo”.

O Tigre Branco está sendo comparado com o cultuado drama Parasita (2019), do cineasta sul-coreano Bong Joon-ho, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2019 e dos Oscars de Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro 2020, no qual alguns críticos entendem como igual, embora não seja, pois está aquém daquela obra que faz uma abordagem bem mais aprofundada e sem restrições sobre a ascensão social de uma família excluída que vive na miséria e todos seus membros estão desempregados. Joon-ho fez um retrato devastador sobre a busca por uma vida digna com todo seu glamour em um núcleo de uma residência composta por um casal rico, uma menina adolescente e um garotinho pré-adolescente, em que só o homem trabalha. No filme da Coreia do Sul, havia discussões amargas e controversas de contornos de grande relevância sobre as regras e o formato que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano distópico. Ninguém saiu ileso desta convivência marcada por acontecimentos de alta tensão, humor e a tragédia iminente com o resultado do confronto de classes distintas e paradoxais. A sociedade contemporânea estava em pauta e o questionamento foi sobre a polarização pela desigualdade com contornos do desequilíbrio de uma cruel realidade consumista. Havia a violência não gratuita, mas quase circunstancial, pelo desdobramento do enredo com um banho de sangue apoteótico no desfecho. Ao retratar as classes sociais diferentes com personagens de lados opostos, também há uma enorme similaridade com o fabuloso Assunto de Família (2018), de Hirokasu Kore-eda, tanto pela estética como pelo foco social.

Bahrani mostra com boa dose de ironia que fugir do “galinheiro” para não ser a próxima vítima a ter o pescoço cortado como os galináceos é a metáfora que orienta e dá o norte ao protagonista como fio condutor de sua evasão da complexa favela em que as pessoas vivem amontoadas como animais sujos e submissos. A trajetória do protagonista em busca do sucesso vai evidenciar a distopia social impregnada na Índia dos ricaços com suas ostentações através de seus carrões e outros bens luxuosos contrapondo com a saga dos excluídos que se tornaram pessoas na mais ampla miséria espalhadas nos arredores e ruas pitorescas de Nova Déli. Para ter acesso aos influentes bem aquinhoados é preciso aproximar-se deles na única condição possível, a de empregado que segue o ritual da exemplar subordinação sem questionar direitos, tendo somente deveres como lema, inclusive apanhar e não contestar. Dormir numa espécie de “pocilga” no estacionamento também faz parte do manual, bem como não reclamar do horário abusivo e aguentar todos os insultos. Balram consegue se tornar motorista particular de Ashok (Rajkumar Rao), um rapaz simpático do clã milionário, casado com Pinky (Priyanka Chopra Jonas, Miss Mundo pela Índia em 2000). Logo irá ganhar a confiança de todos os membros da família do patrão e do irmão deste, o truculento Mangusto (Vijay Maurya). O casal aparenta estar feliz na Capital, embora haja alguns problemas de relacionamento, pois eles não esquecem a vida e o cotidiano de quando moraram em Nova York. Detestam a cidadania de indianos por não se reconhecerem legítimos cidadãos daquela pátria.

O filme aborda com esmero o casal que, embora despreza os pobres, aparenta uma certa amizade e empatia com os subordinados, até serem descartáveis como objetos. A cena em que Pinky dirige seu carro completamente embriagada, atropela uma pessoa e não presta socorro é tão revoltante como procurar uma espécie de “laranja” para assumir a culpa e evitar o escândalo na sociedade aristocrática imorredoura. Comprar o motorista pobre com muito dinheiro que não faz falta faz parte da estratégia da inviolabilidade. O Tigre Branco é uma antítese da produção premiada com várias estatuetas do Oscar Quem Quer Ser um Milionário(2008), do britânico Danny Boyle, quando o protagonista assevera: “Não acredite nem por um segundo que há um jogo milionário de perguntas e respostas que você pode ganhar para poder sair daqui”. A maldade em conluio com o egoísmo dos indivíduos está em perfeita harmonia para atingir uma estável situação econômica como finalidade, pela ótica de Balram através de um jogo com regras próprias, mesmo que antiéticas e criminosas. Neste sentido, com tintas pessimistas de uma realidade sem escapatórias, o realizador abre feridas e ignora os falsos moralismos de um capitalismo selvagem que deteriora a alma humana e desgasta as relações interpessoais. É uma luta de classes sombreada com a falsa ideia do empreendedorismo, onde a classe trabalhadora tenta superar suas dificuldades enraizadas com objetivo de enriquecer para também ser patrão. O diretor insinua com boa provocação e uma certeira cutucada pontiaguda nos conservadores, onde tudo se move para a ilicitude. A reflexão é proposta como conscientização da repressão de valores que aguardam a absorção de uma sociedade agonizante e com contornos trágicos na busca do poder para abandonar o triste isolamento da universal injustiça social.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Minha Irmã

Luta pela Vida

Indicado pela Suíça para competir no Oscar deste ano, o drama familiar Minha Irmã é uma agradável surpresa neste início de 2021, com direção e roteiro de Véronique Reymond e Stéphanie Chuat, que já representaram seu país na mesma competição em 2011, com o longa ficcional The Little Bedroom (2010). Um autêntico mergulho na vida de dois irmãos e o sentimento construtivo que requer grande sacrifício de um em prol do outro. Sven (Lars Eidinger) teve piorada sua saúde pela progressão de um câncer de leucemia e a trajetória crepuscular vai se acentuando cada vez mais. A irmã gêmea, Lisa (Nina Hoss- de estupenda atuação, carrega o filme nas costas), decide que ele deve retornar às suas raízes em Berlim e conviver com a mãe, também atriz, Kathy (Marthe Keller), de difícil relacionamento, o que faz com intensidade e um certo êxito. No entanto, ela terá adversidades e consequências significativas no relacionamento com seu marido, Martin (Jens Albinus), que quer voltar para a gelada Suíça com suas nevascas constantes, e levar os filhos do casal, onde administra uma escola particular de dança.

A dupla de cineastas retrata com sensibilidade o fim de uma existência e toda sua decomposição aviltante, decorrente do agravamento da doença e sua decrepitude com o passar do tempo. Lisa foi uma dramaturga renomada, mas não estava mais escrevendo, já faz algum tempo que desistira de suas ambições, pois havia se mudado para os alpes suíços com os filhos menores e o marido. Seus pensamentos continuam na capital alemã, onde se encontra Sven, um famoso ator de teatro que ensaiava Hamlet, de William Shakespeare, mas vê seu projeto frustrado pelas péssimas condições de saúde. O companheiro dele o abandona, o teatrólogo desiste da peça por falta de recursos financeiros associado à moléstia do intérprete protagonista. Mas a irmã demonstra amor e garra ao enfrentar com obstinação quase que obsessiva pelo restabelecimento da vida do irmão. No meio deste turbilhão que surgiu inesperadamente diante da doença terminal, ainda terá de digladiar como uma leoa pelas crianças que o marido tenta raptar, após tê-la abandonada, diante da suposta negligência da manutenção do casamento. Faz de tudo, o possível e o impossível, para levar Sven de volta aos palcos, com o propósito único de dar alguma esperança como motivação para que continue a lutar pela vida.

Um filme denso e instigante sobre as relações humanas e o grande elo familiar advindo da complicada situação que acaba por refletir em anseios mais profundos no despertar da personagem central e o desejo de voltar a criar e se sentir viva novamente. Embora haja um painel caótico, este soa como uma inspiração pela lucidez mantida, que irá se refletir ao reescrever João e Maria, dos irmãos Grimm, de forma arrebatadora, ao transportar o conto de fadas infantil para uma alegoria adulta e sensível. A dor lancinante mexe com o espectador e suas emoções, mesmo sem ser um drama de grandiloquência, mas que se estende com sutileza pelos caminhos transversos que conduzem para a finitude. Dentro de um clímax sombrio, embora exista uma minguada luz de esperança, apenas entrecortado pela bela cena do desfecho do quarto compartilhado entre os dois, como que ela estivesse a homenagear o irmão e a vida com a escrita do monólogo criado com denodo e devoção para que ele atue de maneira derradeira no palco. É uma batalha contra o tempo e sozinha sente o mundo desmoronando, mas que não impedirá de deixar sua contribuição e seu amor fraternal como prova de resistência, dignidade e um humanismo na essência.

A trama é conduzida com um roteiro enxuto pelas realizadoras, sem arroubos ou manifestações de pieguismos baratos pelas armadilhas do melodrama, como já antecipa o prólogo. Num cenário registrado por alguns planos-sequência com os demais em contraplanos que individualizam e marcam a dor dos personagens, diante da aproximação da iminência da morte batendo à porta. Já a mãe vive solitária e indiferente num mundo egoísta e com certo desprezo ao filho homossexual. Não são usados subterfúgios, mas sim um estilo direto e objetivo de dirigir, em uma abordagem da doença de forma nua e crua, sem recursos alegóricos. As amarras do sofrimento angustiante decorrente da moléstia devastadora e implacável que deixa sequelas e marcas profundas terão uma poética licença lírica de uma relação fraterna no epílogo do cotidiano implacável no qual o grande vínculo familiar se mostra indissolúvel.

Temas como a morte, solidão e doença já foram explorados com méritos inegáveis pelo genial Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957), e na incomparável e inigualável obra-prima Gritos e Sussurros (1972); ou ainda em Viver (1952), de Akira Kurosawa; bem como em Amor (2012), de Michael Haneke. Porém, há se ressaltar em Minha Irmã um naturalismo exposto como vísceras de uma dacadência humana sendo intensa, embora bergmaniano na abordagem proposta, tem na forma da crueza direta e em nada comparável com a estética criativa e metafórica dos mestres inspiradores citados. Uma jornada emocional que invoca uma profunda reflexão sobre a morte, a existência e o amor abundante e infinito, que tem na vida um final que dilacera, embora haja uma reconstrução de outra vida, num contexto de grande amor e amizade como duradouros e eternos. Um drama magnífico sobre o relacionamento de dois gêmeos, que pelo destino traiçoeiro deixará marcas boas e uma saudade imensa a quem fica. Reflete sobre os métodos de carinho, ternura, sintonia, sentimentos, parceria e a defesa incondicional do fraterno amor familiar no confronto entre vida e morte e suas emoções existenciais do progressivo fim do ser humano.