Doloroso Passado
Vem do Chile a contundente denúncia da prática de bullying no comovente drama intimista Ninguém Sabe que Estou Aqui, filme que
deveria estrear nas salas de cinema no primeiro semestre deste ano, mas que está
fazendo carreira na plataforma de streaming
da Netflix. Coproduzido pelo badalado cineasta Pablo Larraín, dos festejados Tony Manero (2008), No (2012), O Clube (2015), Jackie (2016)
e Ema (2019). A direção é de Gaspar
Antillo, vencedor do prêmio de diretor estreante no Festival de Tribeca, nos
EUA. O realizador assinou o enxuto roteiro em parceria com Josefina Fernández e
Enrique Videla. Outro acerto fundamental é a fascinante fotografia de Sergio
Armstrong ao captar de forma magnífica os detalhes eloquentes do vazio existencial
do cotidiano que devora e marca a vida do protagonista e seu silêncio inquietante
decorrente de um passado misterioso nas lindas cenas das locações da zona rural
no Sul chileno. São imagens majestosas como fator fundamental para passar ao
espectador o clímax tenso que se faz presente.
A realização não esconde e já no prólogo mostra a prática contumaz
do bullying que consiste em um
conjunto de violências repetitivas na infância de Memo (Jorge Garcia- de ótima
atuação, ator conhecido por encarnar um falastrão no seriado Lost (2004 a 2010). O personagem
central sofreu o preconceito intolerante da gordofobia pelas suas dimensões
avantajadas, com sequelas psicológicas da humilhação e intimidação que o
traumatizaram definitivamente, trazendo danos profundos pelo gesto impensado, acaba
por isolar-se totalmente da sociedade. A importante trilha sonora,
especialmente a canção Nobody Know I'm
Here (que dá título ao filme), composta por Carlos Cabezas, que o protagonista gravou quando criança,
mas numa maracutaia do próprio pai, o crédito foi dado para um garoto bonito e
esbelto que iria escalar para chegar à fama de pop star. Foi o pivô de um acidente trágico que deixou sequelas
para sempre e ainda causa aflição para quem precisa se redimir de um passado
desastroso e com inimagináveis feridas abertas, embora sendo vítima, Memo passa
para a posição de algoz.
Através de flashbacks,
na mescla de realismo fantástico com sonhos perturbadores, o jovem frustrado vai
morar com o tio numa típica fazenda para cuidar do rebanho de ovelhas no interior
do Chile. Lá, ele pinta as unhas, coloca a roupa do artista que não aconteceu e
vai cantar na floresta, para soltar sua poderosa voz para um universo de
isolamento do mundo. Vive de maneira solitária como um legítimo ermitão, até que surge
uma jovem mulher para lhe oferece a chance de encontrar a paz que tanto
procura. A relação improvável entre aqueles dois seres dá sustentação e equilíbrio ao drama, encaminhndo para uma virada no roteiro. O inusitado romance entre a bela e a fera,
numa analogia com o clássico conto de fadas francês, originalmente escrito por
Gabrielle-Suzanne Barbot, dará a dimensão emblemática da sensibilidade e da
afabilidade do protagonista para a construção de uma poesia tradicional
construída e alicerçada pela redenção do amor. A dolorosa reaproximação com a suposta
vítima e o perdão sugerido nas entrelinhas pela culpa imputada no trauma
recorrente ainda existente soa como uma espécie de libertação.
Um filme que, na primeira parte, proporciona uma rara
oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes daqueles
habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os fatos pitorescos
arraigados de uma cultura pouco difundida. Diante disto, Antillo faz com
habilidade o gancho dos aspectos rurais dos rebanhos nos campos contrastando
com o mundo civilizado urbano e a hipocrisia reinante urbana, como no
deplorável programa de televisão, que visa tão somente a audiência pelos fins
econômicos capitalistas sustentados por uma massa de telespectadores sedentos
de ilusões e falsidades, diante da ausência de ética dos apresentadores
abastecidos pelos simulacros. É um verdadeiro caos constrangedor para todos. O
roteiro se encaminha para lançar um olhar de compaixão e reaproximação entre os
dois inimigos mortais. Porém, a reviravolta na envolvente história terá a
resistência justamente do ora réu vitimado pela discórdia acirrada após o novo
episódio, que tentará proteger para sua sobrevivência em consonância com a
veneração que os fãs nutrem pelo astro desconhecido. No desenrolar do enredo,
há o encontro frente a frente nada amistoso entre os antagonistas. Os dois guardam
rancores de um conflito no qual rememoram um segredo pretérito que só eles
conhecem. Sobram mágoas e ressentimentos que beiram à discórdia sem perspectiva
de reatarem as conturbadas relações. Um trauma que atormenta e corrói
pensamentos com um devastador sentimento de injustiça dos fantasmas de uma
situação da qual nunca se livrou com consequências nefastas pelo abalo
emocional destruidor da razão.
Eis uma realização sutil num panorama de melancolia
permanente do protagonista. Num ritmo lento, o cineasta faz um belo drama
silencioso, terno, humano, com dignidade de uma narrativa crescente na evolução
da trama para o desfecho redentor pelo retrato de uma perda com o fantasma da
infância, decorrente de preconceito ao físico e a violência da gordofobia incrustada
com significados maiores. O amor paternal ausente poderá dar lugar ao romance que
levará para uma nova vida redescoberta com imenso atraso. A singeleza de um
gesto de afago e o calor humano sincero que irá se impor como a explosão
edificante de um novo homem que irá surgir.
Não é somente um relato social, mas a relação afetiva inevitável que se
perdeu no tempo, ou a autoestima esmagada lentamente pelos desmandos e irracionalidades
da intransigência. Mas sobra combustível para uma energia humana diante da
perda iminente de suas referências, como o vínculo familiar, até então de abandono,
demonstrará entusiasmo e sentimento de carinho entre os novos seres aproximados
pelo amor no contexto da dor imensa do tempo pelas derrotas inevitáveis contrastantes
naquela atmosfera adversa de angústia e sofrimento. Ninguém Sabe que Estou Aqui tem elementos suficientes para uma bonita
história contada com simplicidade, ternura e situações típicas do cotidiano de
uma bucólica região pastoril de ovelhas. Ali encontraremos a ruptura e a reaproximação
forçada para uma reintegração de uma vítima do bullying no próprio seio familiar fragilizado pelas circunstâncias
neste admirável drama chileno.