quarta-feira, 31 de março de 2010
O Segredo dos Seus Olhos
Fascínio Instigante
O cinema argentino pode se orgulhar cada vez mais em possuir uma das melhores produções mundiais. Juan José Campannela é um típico diretor de autor, pois seus trabalhos anteriores não o desmentem. Seu primeiro bom longa foi a comédia dramática O Mesmo Amor, A Mesma Chuva (2000), sobre o relacionamento de um casal que se conhece numa tempestade e por 20 anos há encontros e desencontros. Depois veio o magnífico O Filho da Noiva (2001) e seu talento já aflorava de maneira significativa, num trabalho exemplar, abordando a tragicidade familiar da degenerativa doença do mal de Alzheimer. Após veio Clube da Lua (2004), onde mostra toda sua paixão pelo Racing Clube, através do Luna Avellaneda, numa ficção sobre a falência de seu clube querido com um deslumbrante lirismo de uma época de dança e amor. Sua previsão se confirmou posteriormente na realidade, embora fosse revertida depois de alguns anos.
Agora a trama é bem mais complexa e realiza seu longa-metragem mais maduro neste extraordinário O Segredo dos Seus Olhos, visto por aproximadamente três milhões de espectadores argentinos, novamente aborda sua paixão pelo Racing Clube de Avellaneda, mas apenas como um mote para o espetacular roteiro que mistura drama, comédia, policial noir, suspense e filme político. Segundo seu diretor, sua inspiração maior veio pelo clássico Casablanca (1942). Não é à toa que ganhou o Prêmio Goya na Espanha de melhor hispano-americano, derrubando Gigante e A Teta Assustada e por último como o Melhor Filme Estrangeiro no Oscar. Diga-se de passagem que foi merecidíssimo, embora tivesse a incômoda concorrência do longa alemão A Fita Branca, que só não ganhou por detalhe, pois sua trajetória era arrasadora ao arrebatar o Palma de Ouro em Cannes.
O Segredo dos Seus Olhos traz em sua cena inicial uma jovem bonita e recém-casada (Carla Quevedo), morta barbaramente após ser estuprada no ano de 1974, governado por Isabelita Perón, época do período pré-militar. A cena é mostrada numa TV ainda em preto e branco, com imagens deturpadas e sem nitidez, vista por homens fardados de militar, porém ao ser tocada com alguma energia forçada surgem as cores e a exaltação dos chefes militares à população, brandindo ao delírio pela tomada e defesa das Ilhas Malvinas atacada pela Inglaterra em 1982.
A investigação começa 35 anos após a conclusão e arquivamento do processo sem apresentar um resultado satisfatório, pelo ex-oficial de justiça Benjamín Espósito (Ricardo Darin- em mais uma soberba atuação) em conjunto com a defensora pública (Soledad Villamil). Fica evidente a burocracia da justiça na Argentina e o emperramento investigatório com ameaças e afrontas aos investigantes.
O relacionamento do ex-oficial com a defensora é apenas um dos motes deste instigante longa, pois o cerne é o questionamento com seus desdobramentos burocráticos judiciais, já no governo Isabelita Perón com suas perseguições políticas bem delineadas com o envolvimento do juiz (José Luis Gioia) com o assassino (Javier Godino), bem como sua cumplicidade com o regime militar que se instalou à época e o comprometimento entre judiciário e governo militar, colocando uma mácula inarredável na isenção dos poderes. A amizade de Benjamín com seu parceiro Pablo Sandoval (Guillhermo Francella) é outro acerto no roteiro.
A aparição de Sandoval sempre vem recheada de boas tiradas como sua filosofia pela paixão clubística, asseverando que o homem troca de mulher, partido, religião, mas nunca de uma paixão eterna como seu time do coração. Benjamín cisma com o olhar do suspeito e busca no viúvo Ricardo Morales (Pablo Rago) os elementos de subsídios que não encontrou no Tribunal Penal quando da investigação do crime antes do arquivamento. As revelações vão indicando caminhos e os motivos do intrincado e revelador motivo pelo qual não havia interesse pela elucidamento do crime. Cabe ressaltar a antológica cena da perseguição no estádio de futebol numa partida do Racing, realizada em cinco minutos sem cortes como afirma seu diretor.
Memorável e fascinante, com os urros dos torcedores quase sempre derrotados daquele time que é uma paixão como se fosse uma religião, tendo a perseguição implacável que acaba dentro do campo de futebol, lembra outra cena clássica como do filme O Passageiro- Profissão Repórter (1975), de Michelangelo Antonioni, na célebre cena do plano-sequência que dura sete minutos, levando a câmara vagarosamente até a janela com grades e passá-la como se não existisse obstáculo com a continuação ininterrupta da filmagem. Também se poderia alinhar outro filme notável como Arca Russa (2002), todo seus 97 minutos em plano sequencial.
O final é provocante e mostra um roteiro completo pela elasticidade e vigor, em uma das cenas mais eloquentes deste longa, levando a plateia a ficar embasbacada, pela sensação de punição, ainda que pela forma da vingança, com métodos de justiça pelas próprias mãos sem a formalidade que se espera de uma civilização do estado de direito, num eletrizante e porque não chocante desenlace de uma desastrosa e ineficaz atitude de um judiciário corrompido e de uma engrenagem apodrecida. É a reflexão de uma Argentina corroída por um sistema que começa a se revelar pelas suas nuances de falência institucional nesta obra-prima que é um marco cinematográfico de irresignação do homem com o poder.
terça-feira, 16 de março de 2010
Tudo Pode Dar Certo
Mordaz e Irônico
O 6º. Festival de Verão do Rio Grande do Sul traz grandes filmes inéditos no País, porém em especial contemplou os gaúchos com a primeira exibição nacional do magnífico Tudo Pode Dar Certo, última realização de Woody Allen, produção de 2009.
Seus últimos trabalhos ficaram bem aquém de sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações e neuroses do dia a dia. Vicki e Cristina em Barcelona (2008) decepcionou quase que totalmente, por ser insosso e sonolento, salvando-se tão somente Penélope Cruz. O penúltimo foi O Sonho de Cassandra (2007), um pouco melhor, com alguma graça e finesse. Já o antepenúltimo longa foi Scoop- O Grande Furo (2006) com certa dose de ironia, era muito irregular e sucumbiu. Nada se compara com Zelig (2003), uma das obras-primas de Allen, assim como outras grandes realizações foram Dirigindo no Escuro ( 2002), Trapaceiros (2000), o último filme decente foi Ponto Final- Match Point (2005). Há, entretanto, o soberbo, talvez o maior filme do velho mestre A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela e indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida cotidiana na época da Grande Depressão dos EUA. Há um forte relacionamento afetivo com o personagem fictício. Realidade e ficção se misturam e a garçonete passa a ter uma nova perspectiva de vida. Insuperável pela magia e pela beleza plástica deste fabuloso filme.
Já em Tudo Pode Dar Certo, o diretor não atua mas escolhe com perfeição seu alter ego como Boris Yellnikoff (Larry David), no papel do velho rabugento e neurótico, que tem por hábito insultar e humilhar seus alunos de xadrez, típico morador de Nova Iorque, que abandona seu estilo de vida com os amigos, buscando na boemia uma existência mais complexa, acaba por encontrar por acaso uma garota oriunda do Mississipi, Melodie (Evan Rachel Wood) que bate em sua porta, após a ruptura com os pais esquizofrênicos pelas maluquices e pseudos moralismos. Refugia-se na casa de Boris e o leva à loucura, pela insistência de um relacionamento fadado ao fracasso. O pai (Ed Begley Jr.) é um fracassado no amor e custa a se encontrar sua identidade sexual adormecida por anos, já a mãe (Patrícia Clarckson) tem suas fantasias liberadas somente após encontros diversos na velha Nova Iorque, redentora dos que vivem à sombra de um falso conservadorismo e de uma moral caótica e ultrapassada.
Woody Allen está de volta à velha e inspiradora metrópole, traz junto toda sua ironia fina e corrosiva, levando à plateia a delirar, quando afirma ser Jesus um gay, explicando ser um grande decorador da natureza. Sobra para todo mundo, para os judeus, os negros, lésbicas, pederastas enrustidos, moralistas, enfim, nada fica de pé, em sua reflexão da existência humana e do porquê de continuar vivendo. O suicídio tentado duas vezes é a síntese clara do fracasso do existencialismo e o encontro com a mediunidade de uma mulher espírita que o leva para as soluções desencontradas carecedoras de uma resposta dos deuses da vida. O pessimismo está presente na visão de Boris, com cores fatalista, bem como a presença inconstante da hipocondria e dos pânicos noturnos, assim como cantar o clássico Parabéns a Você sempre que lava as mãos, demonstrando toda sua inquietude e divergência do mundo dos chamados normais.
A trajetória de Boris como o único ser capaz de compreender as aspirações truncadas das pessoas, bem como o caos do universo são as molas mestras daquele homem reduzido e coxo de uma perna, reflexo dos anos e das frustrações colhidas durante sua existência. Não chega a ser um mal-humorado, mas fica evidente a mágoa com a vida e os prazeres tolhidos, deixando-o impotente para a vida sexual, captadas de algumas tiradas irônicas e mordazes com os amigos e a confissão direta para aquela jovem fragilizada e traumatizada pelo relacionamento com os esquisitos pais.
Tudo Pode Dar certo satiriza e ironiza a vida, com a elegância e a o modo sutil de fazer cinema de Allen. O diálogo direto com os espectadores levam a reinvenção já abordada no A Rosa Púrpura do Cairo, com toda a genialidade dita pelo próprio alter ego Boris num roteiro enxuto e elaborado com exatidão, tendo como semelhança o relacionamento conturbado com a jovem menina, assim como o cineasta teve na vida real com sua enteada, mas realizada com aquele humor cáustico e sagaz, deixando vestígios de um passado eivado de perturbações latentes que agora são reveladas pela dor e a amargura, com as neuroses retornando para um presente repleto de ironias e inspirações eloquentes, ficam as marcas, mas isso não é o todo, apenas um resultado parcial e o exorcismo através da busca do significado existencialista.
segunda-feira, 8 de março de 2010
Norberto Lubisco Permanece Fechada
Cinema Fechado
A Casa de Cultura Mário Quintana possuía três salas de cinema: Eduardo Hirtz, Paulo Amorim e Norberto Lubisco. Porém, no mês passado fechou, temporariamente, a aconchegante Sala Norberto Lubisco, por determinação da Secretaria Estadual de Cultura, sob a pífia alegação de segurança.
Quando se fecha um cinema, morre um pouco da cidade e as pessoas que tinham por hábito a frequência contumaz naquele espaço cultural. Como bem observou o escritor e jornalista Juremir Machado da Silva, em debate numa rádio local com a secretária Mônica Leal, asseverou que esta não é uma pessoa com vínculos estreitos à cultura no Rio Grande do Sul. Talvez a Secretaria de Segurança ou Finanças fossem mais adequadas, pelo histórico e as aptidões intrínsecas de seu perfil, mais próprio a efetivar cortes financeiras e enxugamento da máquina, ao afirmar com toda eloquência sua predileção por atos administrativos que até são louváveis, mas não se resume para a aplicação pura e simples. Houve esquecimento de incentivos fiscais e na busca da Lei de Incentivos à Cultura (LIC)?
Parece que se desligará no final do mês, visando se desincompatibilizar para concorrer às eleições em outubro. Os gaúchos agradecem seu ato heroico, pois estaremos livres das atrapalhadas da secretária, que conseguiu mobilizar praticamente todo o Estado, ao demitir o competente e indiscutível jornalista e historiador Voltaire Schilling do Memorial do Rio Grande do Sul, num ato incompreensível e despótico. Enquanto isso, desfilava pela Cavalgada do Mar, assistindo placidamente a morte de dois cavalos despreparados para este tipo de atividade. E a sala Norberto Lubisco continua fechada por problemas de segurança e uma suposta recomendação do Corpo de Bombeiros.
Já tivemos em outras épocas secretários comprometidos com a cultura e a intectualidade gaúcha de forma insofismável, senão vejamos: Carlos Appel, de 1995 a 1996; Nelson Boeira, de 1997 a 1998; Luiz Pilla Vares, de 1999 a 2000; Luiz Marques, de 2001 a 2003 e Roque Jacoby, de 2003 a 2006. Mas a secretária fala em remodelação e modernização, assumindo como uma promessa, talvez de campanha ou apenas uma frase solta e inócua.
Não é todo dia que temos à frente de um Theatro São Pedro, uma celebridade com toda a idoneidade de uma Eva Sopher, que orgulha e enaltece o povo gaúcho, pelas suas obras, realizações e investimentos culturais como o recente Multipalco. Mas Eva Sopher é uma intelectual voltada para a cultura e as coisas do teatro, com raízes plantadas naquele prédio que quase foi demolido. Troca governo e ninguém se atreve a trocá-la, pois seria uma insanidade mental pensar em tal ato.
No início do atual governo quase foram fechadas as três salas da Casa de Cultura Mário Quintana, diante da retirada do patrocínio do Unibanco, mas felizmente o Banrisul acabou bancando e todos nós pensávamos estar felizes para sempre, mero engano, pois o tiro de misericórdia estava faltando e atingiu no coração da mais charmosa salinha, a Noberto Lubisco, deixando a plateia de cinéfilos perdida, atormentada e em estado de viuvez. E a secretária montada em seu "pingo" brilhava pelas areias do litoral todo seu estado de graça numa cavalgada que foi condenada até mesmo pelo maior e incomparável tradicionalista de nossos pagos, Paixão Cortes, homem com visões além de nossos dias e que serviu de modelo para a estátua do Monumento do Laçador.
Ressalte-se que o brilhante intelectual Juremir Machado da Silva, não se conteve e publicou um artigo num jornal da capital, com o título emblemático Tempo de Matar Cavalos, parafraseando o título do filme iraniano Tempo de Embebedar Cavalos. Ainda bem que existe a possibilidade de no epílogo do atual governo, ser empossado alguém que conheça um mínimo de cultura nesse Estado e reabra a sala Norberto Lubisco que está fechada e se espera não seja para sempre, assim como aconteceu com tantos outros cinemas da capital, tais como: Cacique, Scala, Rex, Rey, Imperial, Guarani, Marabá, Roma, Astor, Vogue, Bristol, Baltimore, Talia, Avenida, Marrocos, Colombo, Presidente e Coral.
Lamentável sob todos os aspectos o fechamento da Norberto Lubisco, mas o que dói mais na carne e na alma é saber que a secretária não se abala e nem está preocupada, exceto em cavalgar e preparar a campanha eleitoral para as eleições vindouras. Será que ela foi ao cinema algum dia?
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