quarta-feira, 29 de maio de 2013

Holy Motors

















Viagem Surrealista

O cineasta francês Leos Carax volta com todo vigor em seu novo e premiado longa Holy Motors, ganhador do prêmio da juventude no Festival de Cannes de 2012; e melhor filme estrangeiro, ator e fotografia no Festival Internacional de Chicago. O diretor é conhecido no mercado internacional pelos festejados Sangue Ruim (1986) e Os Amantes de Pont-Neuf (1991). Estava afastado da telas desde Pola X (1999), por isso chamado de bissexto, pelos seus longos intervalos entre uma obra e outra. Teve uma brilhante participação no longa Tokio (2008), ao dirigir o segundo ato El Merde, uma soberba abordagem de uma criatura misteriosa e sensível que emerge dos esgotos em plena Capital japonesa, com suas unhas enormes e sujas, ao melhor estilo Zé do Caixão, com um olho furado e de aspecto horrendo, causa pânico na cidade, derrubando edifícios com centenas de mortes, em referência quase que explícita ao 11 de setembro em Nova Iorque.

O rico banqueiro Oscar (Denis Lavant- impecável interpretação) sai de casa para vender ações na confortável limusine, logo passa por uma metamorfose kafkiana , virando uma mendiga esmoleira em plena Paris; entra num esgoto e aflora novamente a figura horrenda no cemitério ao abraçar a bela modelo (Eva Mendes), como a reedição de A Bela e a Fera. É a continuidade do grotesco e misterioso Senhor Merde ao personagem do longa Tókio, no drama de Carax. Surpreende no epílogo o seu encontro com a amada (Kylie Minogue), uma grande revelação em sua vida conturbada.

Um filme incompreendido por muitos por mostrar as diferentes encarnações do protagonista num único dia, desde a saída de sua residência como um bem-sucedido homem de negócios, incorpora um serial killer, transita como um pai de família carinhoso, ou uma mendiga abjeta, passando por uma criatura monstruosa. Dá a nítida sensação de estar sempre interpretando um personagem, sob os olhos atentos da motorista (Edith Scob) dirigindo o flamante automóvel blindado pelos arredores da Cidade Luz.

Um drama com uma estética criativa que mexe com o espectador e sua comodidade de assistente. Será que estaria desatento e algo se perdeu no roteiro ou é apenas um jogo de cena fantástico, ao melhor estilo surrealista de David Linch, onde a fusão temporal de Oscar com Merde estaria em busca de uma identidade, com a qual está perdido e sem rumo nas várias faces apresentadas, diante da desorientação atípica de sua própria lucidez? Uma pessoa fria quando vira um assassino dentro de uma grande ópera criada em seu imaginário, mas o amor e a ternura estão presentes naquela criatura indefinida e sem tempo para as coisas triviais da vida.

Uma retumbante reflexão sobre a solidão do ser humano transformado em máquina que precisa descansar e viver, como na brilhante metáfora dos diálogos magistrais entre as limusines cansadas de suas jornadas intermináveis. Carax usa o veículo como referência transformativa, como se fosse um camarim de um teatro, que lembra os efeitos de Cosmópolis (2012), do cineasta canadense David Cronenberg, onde a derrocada do Capitalismo é abordada através de um jovem bilionário egocêntrico todo poderoso no mercado das finanças, que se vê acima dos mortais, anda trancafiado numa limusine branca blindada, uma espécie de bunker, porém começa a mudar ao perceber o mundo desmoronando e sua sociedade aristocrática falindo com a bolha financeira.

Holy Motors é a busca de um objetivo como reflexão para o sentido da existência, onde Oscar não se encontra ao perder a identidade. A dor dos solitários está presente e a vida perde os encantos com a falta de sua essência. Embora seja abordado pela bizarrice, é para chocar mesmo e fazer com que aquele espectador que ficou até o fim da sessão, reflita. Não é um filme fácil, há enigmas a serem decifrados durante as frequentes e camaleônicas mudanças, tanto no protagonista, como no roteiro.

Um filme que instiga e perturba pela facilidade criativa do diretor em usar os recursos do cinema como magia para alcançar uma plateia exigente, mesclando ficção e realidade, deixa aflorar fantasias de um universo fabuloso, que vai da fábula à ficção científica, num experimento de aventuras em uma metalinguagem fascinante em várias vidas personificadas neste extraordinário drama, que se credencia a ser um dos dez melhores de 2013.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Elena















As Irmãs

Precedido dos prêmios de melhor documentário pelo júri popular, melhor direção, montagem e arte no 45º. Festival de Brasília de 2012; menções especiais no Festival Internacional de Guadalajara e no Festival de ZangrebDox, somente agora entra no circuito comercial o festejado Elena, da diretora mineira estreante Petra Costa, que também atua secundariamente no longa.

O documentário é uma grata surpresa no aspecto de sua beleza estética formal que reflete a preocupação do cinema autoral, sobre a memória reconstruída no cinema pela cineasta que aos 7 anos viveu um grande drama pessoal com a morte prematura de sua irmã mais velha, de apenas 20 anos, em Nova Iorque, ao seguir o sonho convulsivo que poderia tornar-se realidade em ser atriz, tal qual sua mãe imaginava contracenar com Frank Sinatra. Deixa no Brasil uma infância vivida na clandestinidade, devido à ditadura militar implantada no país. Duas décadas depois, Petra embarca também para os EUA atrás da irmã, tendo como pistas apenas algumas cartas, diários e filmes caseiros.

As imagens se fundem com as palavras mencionadas em formato poético sobre a perda e o luto de um inventário realizado para exorcizar um passado. São relatos de dor e a tristeza de nunca mais poder ver e ter em seu convívio familiar aquela moça sonhadora, de uma vontade louca pelo estrelato, que se desilude, deixando a morte a leve por uma composição nefasta de remédios e álcool. Um relato lúcido sobre a desilusão do fracasso diante da derrota que fez uma vítima precocemente. Há uma reflexão sobre a falta de estrutura emocional de quem bem cedo lutou e enfrentou um mundo claustrofóbico dentro de uma selva de pedras com pessoas voltadas para seus interesses pessoais. Dói na alma a amargura e o sofrimento da mãe que nunca esqueceu a filha morta, tendo como testemunha o olhar da cineasta e seu vínculo quase que obsessivo, mas indestrutível e sensorial pelas imagens documentadas da simulação da própria morte para encontrar a irmã em outra dimensão.

Um filme melancólico, mas sem ser piegas ou apelativo. Pelo contrário, as cenas que vão sendo reconstituídas por fotos e imagens de uma Nova Iorque assustadora sobre as personagens em suas buscas, após a separação dos pais, retratam com sensibilidade de uma poesia dolorida as incursões do passado e o futuro sem Elena. Há suavidade na sutileza da abordagem, através deste belo tributo à memória da protagonista que se foi por desespero de uma crise depressiva e choca paradoxalmente com absoluta doçura, embora haja o amargor da violenta extirpação de uma criatura apunhalada pelo destino tétrico.

Um comovente documentário em uma estrutura narrativa de inspirada criatividade contado na primeira pessoa, sem cair na obviedade, sobre um luto interminável e de recordações alegres de uma infância marcada muito cedo, quando o mundo começou a desmoronar, assim como findou o imaginário sonhado da irmã em fazer teatro e cinema aos 20 anos, no fatídico ano de 1990. Embora tenha uma linha própria em sua estética, há similitude em conteúdo com os documentários nacionais vistos recentemente: Santiago (2007), de João Moreira Salles; Diário de Uma Busca (2010), de Flávia Castro; ou ainda em Uma Longa Viagem (2011), de Lúcia Murat.

Elena é um filme que não deixa escapar a política brasileira nos anos 80 e sua geração que abandonou o país na ânsia da liberdade à procura de novas oportunidades. Tem como marca uma fotografia primorosa e deslumbra com uma trilha sonora encantadora, além da incessante busca pela diretora da trajetória da irmã e de sua própria identidade, aspectos sobre a perda inventariada de um passado. São elementos psicológicos bem caracterizadores e envolventes que registram com rara qualidade este instigante documentário de uma neófita como uma obra marcante no cenário nacional.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Atrás da Porta














Segredos do Passado

A Hungria fazia parte do Pacto de Varsóvia, uma aliança militar formada em 14 de maio de 1955 pelos países socialistas do Leste Europeu e pela União Soviética, que também ficaram conhecidos como bloco socialista. Porém, as principais ações do Pacto foram dentro dos países-membros para a repressão de revoltas internas. Em 1956, tropas reprimiram manifestações populares na Hungria e Polônia, e em 1968, na Tchecoslováquia, na chamada Primavera de Praga que pediam a  descentralização parcial da economia e a democratização. O cineasta húngaro István Szabó sofreu algumas restrições e acusações de cooperação com o regime, mas superou tais intrigas e mostrou vigor em suas obras contestadoras ao regime comunista. Seu país sofreu graves consequências por querer ter vida própria.

Szabó consagrou-se no cenário internacional com dois excelentes dramas que renderam uma boa bilheteria: Mephisto (1981) e Coronel Redl (1985). Seu penúltimo longa foi Adorável Júlia (2004), mas sem a mesma repercussão. Nestes dois dramas do diretor húngaro, serviram como cenários a Alemanha nazista em Mephisto,tendo como protagonista um famoso ator alemão que tem sua carreira reconstituída, deixando-se levar pelo charme da fama e do poder, para ser uma marionete do regime; e a Austria com a Hungria em Coronel Redl, onde um homem mascarado busca a ascensão num cenário de falsidade e o leva a ser um mero personagem submisso.

Agora retorna ao mundo do cinema com se último longa Atrás da Porta, baseado no romance homônimo publicado em 1987 por Magda Szabó, dando continuidade à sua trajetória irrequieta, através de Emerenc (Helen Mirren- magnífica no papel), uma governanta que traz um legado misterioso e recheado de incógnitas numa Hungria na metade do século XX. São evidentes os traumas que deixaram efeitos devastadores num povoado de pessoas assustadas e com medo do presente e do futuro, diante de um passado com cicatrizes abertas e revelados num cenário metafórico de pouca luz e extremamente sombrio. A esperança está constantemente conflitada e vai de encontro com a morte, onde o pessimismo é uma marca austera e reveladora, com características que sinalizam para uma dolorida realidade, quando a casa da governanta é aberta abruptamente, deixando transparecer o lixo encontrado em meio as revelações contadas à patroa soam como um estigma da maldade humana ainda remanescente.

Os efeitos da 2ª. Guerra Mundial que deixaram uma Europa destroçada ainda são sentidos e o temor com a esperança são alegorias de uma realidade unificada como registros marcantes que jamais serão esquecidos ou apagados da memória de uma geração frustrada. O filme retrata com bastante lucidez a evidência do medo e da culpa, quando a escritora Magda (Martina Godeck) ganha notoriedade pela premiação de seus romances publicados, faz uma homenagem sincera à empregada idosa e enigmática, resultante da amizade conquistada por um vínculo estabelecidos entre as duas mulheres. A emoção e a quebra dos paradigmas sociais que revelam a verdadeira identidade e o passado de Emerenc são retumbantes naquele lugar pequeno e acolhedor, embora assustador pelas intempéries dos ventos enfurecidos anunciando maus agouros.

As suspeitas e desconfianças são bem enfocadas por Szabó, ao trazer para reflexão horrores trágicos da perseguição aos judeus no passado. Uma mulher vista com seus mistérios por se esconder, também como fazia os perseguidos de Hitler, é acusada de matar o próprio gato; bem como sua sensibilidade e amor aos animais só serão confessados à amiga que deposita confiança irrestrita, bem como seu envolvimento com a ajuda voluntária aos judeus vão se dissipando aos poucos, assim como as tormentas que alegoricamente dão lugar ao sol, diante da fuga das nuvens e da trégua do mau tempo.

Um bom filme que faz menções ao nazismo durante a 2ª. Guerra e a perseguição ao povo semita contrastando com a atitude humanística e sensível de uma protagonista e seus objetos quebrados como demonstração fervorosa de um valor menor às coisas materiais, fortificada pela amizade na cena final, quando a tempestade cede e dá lugar à reconstrução como uma simbiose de harmonia em confronto com o sentimento de revolta.

domingo, 5 de maio de 2013

Festival Varilux Cinema Francês (Ferrugem e Osso)

















Ferrugem e Osso

Uma das grandes promessas do Festival Varilux deveria ser o aguardado Ferrugem e Osso, premiado com os Cesars do cinema francês de melhor ator, roteiro adaptado, trilha sonora e edição. Concorreu ainda como melhor filme no Festival de Cannes ano passado e venceu como melhor filme no Festival BFI de Londres. Um drama sobre segundas oportunidades com bons argumentos de duas pessoas magoadas e destroçadas pelo destino da vida que lhes aplicaram golpes baixos. Mas a superação e a amizade estão presentes na ajuda mútua. A realização é de Jacques Audiard, o festejado diretor de Nos Meus Lábios (2001), De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005) e Um Profeta (2009).

A trama tem Alain (Matthias Schoenaerts- ator belga arrasa no papel) que está desempregado e vive com o filho de apenas cinco anos, no norte da França. É um ex-boxeador que faz bicos e vai morar na garagem da casa da irmã Anna (Corinne Masiero)
em busca de ajuda e logo consegue empregar-se como segurança de boate. Um dia, ao apartar uma confusão, ele conhece Stéphanie (Marion Cotillard- muito contida, a bela já rendeu mais), uma linda treinadora de baleias. Alain a leva em casa e deixa seu cartão, caso precise de algum serviço. Mas o destino guarda surpresas e logo Stéphanie sofre um grave acidente, deixando-a paraplégica, perdida e infeliz, situação esta que mudaria sua vida para sempre. Os dois vivem uma história de amor imprevisível sobre todas as dificuldades, físicas e morais. São pessoas absolutamente diferentes que buscam um relacionamento redentor. Mas entre eles está Louise (Céline Sallette), uma transa carnal sem vínculo, que aceita a condição.

Há uma improbabilidade de relação entre a adestradora de orcas, mulher sensível, delicada, frágil, que não tem nada ver com aquele brutamonte que sabe mesmo é dar murros na cara de seus adversários, por ser um praticante de lutas livres de ruas para ganhar dinheiro, auxilia um amigo em escutas clandestinas para fiscalizar empregados de empresas e acaba prejudicando a própria irmã, criando-se um clima insustentável de convivência entre os dois. Ainda que o leão-de-chácara seja uma pessoa rude e áspera no trato, o drama busca a aproximação com a domadora fragilizada, retratando a solidariedade e a ajuda entre pares excluídos da sociedade. Um por problemas de deficiência física e o outro por excesso e rigidez em seu físico avantajado, mas com falta de melhores neurônios para solucionar problemas que fazem pensar. Só sabe bater e arrebentar o semelhante na mínima dificuldade, embora tenha um coração dócil, mas sobra até para o filho sensibilizado com o destino dos cachorros.

Um longa de pessoas de mundos diferentes, mas que a igualdade é possível e aproxima na desgraça, como demonstrou Eric Toledano e Olivier Nakache na badalada comédia de costumes Intocáveis (2011), sobre uma inesperada amizade genuína entre um milionário tetraplégico e um ex-assaltante, um imigrante do Senegal que busca seu reingresso social na França dos brancos. Com um toque de humor cáustico na busca pela igualdade entre duas pessoas opostas social e intelectualmente. Há a violência física para colocar ordem na casa e na vizinhança, como numa leitura motivacional de autoestima pela sabedoria da escola da vida mesclada com pitadas de autoajuda.

Há semelhanças também com Amor é Tudo o que Você Precisa (2011), da dinamarquesa Susanne Bier, que tinha méritos inegáveis ao abordar uma relação solidária de duas pessoas opostas que se conhecem por acaso e que tornam-se amigas. Embora a reinclusão social seja um dos temas, não há uma profundidade acentuada, além de uma lição de vida, gratidão e superação, buscando-se a alegria de viver numa amizade louca, cômica e faiscante, contrária aos dogmas normativos.

Ferrugem e Osso é simples na sua estética, deixando as metáforas afastadas do enredo, indo direto ao choque cultural entre as duas criaturas arruinadas por circunstâncias alheias às suas vontades, numa interação de uma relação quase que sadia, beirando uma solidariedade fraternal que causa o estreitamento e a aproximação para o amor e o carinho. Um filme sem grandes rodeios ou simbologias das desgraças sociais que tem um ótimo ator e uma encantadora trilha sonora para embalar o clímax. Mas o grande acerto está nos efeitos visuais computadorizados para mostrar as duas pernas amputadas abaixo dos joelhos, dando um realismo impressionante. Audiard trata objetivamente do recomeço da vida e a coragem para continuar, mesmo parecendo tarde demais neste drama que vai do razoável a bom.

Festival Varilux Cinema Francês (Os Sabores do Palácio)

















Os Sabores do Palácio

Mais uma ótima surpresa no Festival Varilux de Cinema Francês deste ano, com o viés da gastronomia, faz uma abordagem suculenta, mas com um molho bem amargo na agridoce comédia Os Sabores do Palácio, dirigido por Christian Vincent, que tem em sua filmografia entre outros longas A Discreta Intimidade de Uma Mulher (1990), A Separação (1994) e Quatro Estrelas (2006).

A trama aborda a história da respeitável chefe de cozinha Hortense Laborie (Catherine Frot) que reside em Périgord e surpreendentemente é convidada e já nomeada para ser a responsável pela cozinha particular do presidente da República, sugerido no longa como François Mitterrand (Jean d’Ormesson) no Palácio do Élysée. Inicialmente, ela se torna objeto de inveja, sendo malvista pelos outros cozinheiros do local, especialmente o chefe da cozinha geral. Com o tempo, no entanto, Hortense consegue mudar parcialmente a situação, traz para seu lado o cozinheiro subchefe Nicolas Bauvois (Arthur Dupont). Mas mesmo estando atenta aos dissabores dos colegas, como intrigas, fofocas e inveja, afinal os bastidores do poder estão cheios de armadilhas, sua resistência fraqueja e os valores são outros.

A burocracia emperra no palácio e o presidente nunca se manifestava sobre a qualidade da comida, tendo Hortense que forçar uma situação inusitada para aproximar-se, já os assessores tinham trânsito livre. Com o desmembramento das cozinhas, houve uma ciumeira geral e o chefe da central não a via com bons olhos. Mesmo com o amparo de Nicolas e também do chefe de cerimonial David Azoulay (Hippolyte Girardot), as coisas não iam bem.

A grande sacada da comédia é o roteiro que tem duas histórias concomitantes. Não há uma sequência de planos, pois além dos acontecimentos no palácio por três anos de atividades, mescla-se com sua reclusão numa ilha deserta que serve de base para pesquisas na Antártida. Sua comida e seu trabalho são reconhecidos e lá se sente importante e reconhecida literalmente. E passa para o espectador algo mais para ficar com água na boca ao vê-la separando ingredientes, salteando legumes, montando e decorando os pratos. Já a cena da despedida, ao findar seu autoexílio é comovente. O carinho e o amor dos pesquisadores tocam-lhe no fundo da alma. Num ambiente de simplicidade e sensibilidade humana, o âmago é fisgado com sutileza e as lágrimas tropeçam nos soluços como agradecimentos sinceros.

Se de um lado há um puro reconhecimento que viceja, de outro a inveja polvilha como erva daninha, contrastando com a solidariedade humanística de pessoas simples e de bem com a vida, longe da pompa reinante palaciana e desmesurada de rituais desgastantes que sufocam e tiram o ar puro das entranhas da chefe, mais para uma estranha no ninho dentro de uma retórica gastronômica de opulência. Lá é mais uma e seu trabalho é ultimamente questionado pelos médicos do presidente com uma dieta que refoge de sua criatividade. Bate de frente com o administrador e suas contas com números contábeis infindáveis e suspeitas de esbanjamento com ingredientes específicos. Até as trufas frescas preferidas do presidente e recém-colhidas no pomar são alvo de um interrogatório inverossímil.

O longa é reflexivo e questionador sobres valores e a ética profissional, mas sua analogia com filmes de gastronomia são bem pertinentes, assim como Chocolate (2000), de Lasse Hallström, com Juliette Binoche arrasando; e Como Água para Chocolate (2002), de Alfonso Arau; e o melhor de todos A Festa de Babette (1987), de Gabriel Axel, retratando o poder do deleite gastronômico com a transformação de Babette, que parece voltar à vida, mesmo com o esforço e o trabalho necessários para preparar e servir o banquete. Também os convidados entram numa metamorfose e chegam ao final do banquete como pessoas diferentes e mesmo melhores que antes, tendo no espectador o convencimento que é possível a felicidade sem pecado, através de um prazer sem culpa.

Os Sabores do Palácio traduz com dignidade a satisfação de Hortense cozinhando e tem-se a certeza de que é o que mais lhe agrada fazer. Um entusiasmo contagiante e apaixonante pela culinária, certamente reflete-se no resultado. Os pratos são mais que apetitosos, tanto os solenes festins palacianos, como os quitutes da ilha de pesquisa, dando sensações e prazeres pelos olfatos, táteis e visuais nesta fabulosa comédia dramática gastronômica sobre a inveja, solidariedade, burocracia e o reconhecimento para a satisfação pessoal.

sábado, 4 de maio de 2013

Festival Varilux Cinema Francês (Aconteceu em Saint-Tropez)

















Aconteceu em Saint-Tropez

Mais uma surpresa positiva do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano, num misto de comédia romântica com situações típicas de costumes originou Aconteceu em Saint-Tropez, dirigida pela veterana cineasta Danièle Thompson, que tem em sua filmografia entre outros longas Fuso Horário do Amor (2001) e Um Lugar na Plateia (2005). Tem um olhar amargo e ao mesmo tempo doce sobre o microcosmo familiar, sem deixar de alfinetar com clareza e sem subterfúgios as hipocrisias decorrentes das relações deterioradas pelo tempo.

A trama aborda os irmãos conflitados que se detestam, Roni (Kad Merad) e Zef (Eric Elmosnino- de grande atuação em Gainsbourg- O Homem que Amavas as Mulheres (2010), de Joann Sfar), estão sempre brigando e há uma discórdia permanente entre eles por causa do trabalho, disputa de mulheres e visão de vida no futuro. Uma família de adeptos fervorosos da religião judaica, exceto o irmão mais velho. O clima esquenta mesmo quando Roni decide casar a sua filha no mesmo dia em que Zef enterraria sua esposa em Paris, morta repentinamente em acidente de automóvel. O corpo acaba indo parar dentro da casa do pai da noiva, diante de transtornos encontrados no translado de Nova Iorque para a capital francesa.

A partir do eventos casamento e morte cria-se o estopim que estava faltando e uma plêiade de acontecimentos caóticos vão minar definitivamente os laços familiares, mas sempre tem um porém e fatos inesperados geram uma história de amor, ou até mesmos duas, por que não? O encontro inusitado da prima da noiva com o futuro marido desta, no dia da viagem até Paris e os desdobramentos futuros irão pontilhar encontros e desencontros de membros de uma família heterogênea.

A presença instigante de Giovana, mulher de Roni, no papel de uma italiana aparentemente burra, é um dos pontos altos da comédia, com tiradas maravilhosas em formato de pérolas, tais como: “quando ficar velha quero ter Alzheimer, pois assim não perceberei que estou velha e feia”. Suas entradas em cenas são divertidas e atira com perspicácia sua incontinência verbal, embora passe pra o espectador ser uma mulher nada inteligente. A interpretação é da bela e competente atriz italiana Monica Bellucci, com seus 48 anos bem escondidos, mora no Rio de Janeiro há três meses e foi escolhida recentemente como a mulher mais sexy do mundo pela revista Vanity Fair espanhola. Em sua trajetória já atuou nos filmes Drácula de Bram Stoker (1992), de Francis Ford Coppola, Malèna (2001), de Giuseppe Tornatore e A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson.

Thompson retrata a história de uma família judaica, que o destino fará que haja por linhas tortas, justamente no casamento da filha de Roni, uma aproximação forçada pela morte da cunhada. É lá que os noivos se casam por interesses mais funcionais do que por amor propriamente dito. Os convidados estão no local para a grande comemoração marcada para o dia da celebração e troca de alianças, embora dentro de casa ocorra um acompanhamento fúnebre pela morta dentro de uma sala isolada da festança. Um fato kafkiano sugere a diretora, liberando Roni para cantar suas canções prediletas e demonstrar toda sua fragilidade de um Frank Sinatra frustrado. Aparece mais que os noivos e a festa é toda dele, aquele homem rico e sem pudores éticos, envolvidos com negócios escusos, vazio como ser humano, só pensa em badalações em iates e navios. Sua filha não está muito distante do caráter duvidoso do pai, demonstra ser uma patricinha com caprichos e o noivo está ali visceralmente por interesses financeiros.

A cineasta faz o contraponto com o irmão mais novo Zef, sua filha e o futuro genro. Todos tocam numa orquestra sinfônica e apresentam-se para um público de bom gosto que aplaude entusiasticamente a valsa Danúbio Azul, de Johann Strauss. Mas há uma tendência deformadora em roubar os pares dos familiares, como da prima fútil; bem como do próprio pai, a enfermeira que faz o velho patriarca ter ânimo de viver, com disposição e muita lucidez e senso de humor magnífico, embora paradoxalmente esteja esclerosado. Seu sonho é realizar seu aniversário no Maximin’s em Paris, restaurante mítico frequentado por celebridades. Poupa por dois anos e a festa é o marco de definições de casais perturbados pelas frustrações e cinismos enrustidos. Busca a reconciliação dos filhos até o fim, sempre apertando suas mãos e dando-lhes picolé de baunilha para um e de pistache para o outro.

Aconteceu em Saint-Tropez é uma comédia de profundas reflexões e com um resultado acima da média das produções cômicas, onde a fotografia é primorosa num cenário de Paris com a grande maioria das locações e Saint Tropez aparece menos. Deslumbra com uma trilha sonora encantadora, com um roteiro instigante de situações novas em cada cena, com toques recheados de um humor refinado por piadas inteligentes e sacadas memoráveis, com sarcasmo, ironia e crítica corrosiva à pequena burguesia que pensa apenas no luxo, pouco percebendo o vazio de suas vidas, num encontro formal que esbarra nas vaidades, idiossincrasias, mentiras, traições e revelações de lado a lado. Prevalece as aparências cínicas e fantasiosas do evento comemorativo, apenas esboçando um quadro cênico de realismo deturpado por normas religiosas ultrapassadas e sentimentos corrompidos.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Festival Varilux Cinema Francês (Camille Claudel, 1915)













Camille Claudel, 1915

Uma das surpresas positivas do Festival Varilux de Cinema Francês de 2010 foi O Pecado de Hadewijch (2010), dirigido pelo competente e promissor cineasta francês Bruno Dumont, retratando uma jovem da classe alta que deseja ser freira e tem um envolvimento com dois irmãos muçulmanos que moram na periferia de Paris. A moça é uma católica que tem vocação, mas entra em conflito existencial ao descobrir outras religiões, descobrindo a fé e os conceitos de devoção contrários ao catolicismo pragmático que conhece e testa sua fervorosa e ardente obsessão, tendo como lema sua obstinação pela igreja.

Dumont é tipicamente um diretor de ator e seu elenco é basicamente de amadores deficientes mentais com diversos tipos de insanidades, ao surpreender novamente no Festival Varilux deste ano, com o estupendo drama sobre a triste trajetória de vida da escultora que empresta seu nome ao título Camille Claudel, 1915, revela-se um estudioso da paixão mística, ao abordar com grande sensibilidade o extremismo religioso, com um olhar crítico avassalador sobre o Cristianismo, tendo no papel principal a artista que é internada aos 30 anos pelo intransigente irmão Paul (Jean-Luc Vincent- atuação sóbria), num hospício do interior da França, sob a alegação de que a arte tira o equilíbrio emocional do ser humano, razão pela qual foi tachada como louca por uma mulher criar esculturas. No centro do longa-metragem está a devoção pelo catolicismo e a fé inabalável do irmão fanatizado. Drumont não poupa a igreja católica e esmiuça seus dogmas conservadores, pesados e radicais.

O cenário da trama é a bela cidade de Avignon, que fica na região da Provence, no sul da França (a 230 km de Lyon), e é conhecida basicamente por já ter sido residência de vários papas. Lá está o hospício dirigido por um médico veterano na psiquiatria e que abriga Camille Claudel, tendo as freiras e algumas noviças fazendo o trabalho dito terapêutico para recuperar pessoas disformes de aspectos horrendos, com terríveis defeitos físicos e deficientes mentais notórios. Neste lugar pavoroso, embora estivesse encravado numa paisagem bucólica e sedutora, foi o verdadeiro inferno dantesco na vida da escultora, interpretado por Juliette Binoche, que está no ápice de sua carreira de sucessos, constrói uma personagem com vida em antológica atuação desta talentosa diva francesa, esbanjando como sempre sua beleza, sensualidade e carisma. Foi vista recentemente no longa A Vida de Outra Mulher (2012), da estreante Sylvie Testud; em Elles (2012), de Malgorzata Szumowska e De Coração Aberto (2012), dirigido pela cineasta francesa Marion Laine.

O drama difere em muito de Camille Claudel (1988), de Bruno Nuytten, que abordava diretamente o relacionamento tortuoso de 15 anos com Rodin em 1885, quando a jovem aprendiz do badalado escultor se transforma em sua amante, embora fosse o mesmo casado, cai em desgraça com sociedade parisiense. Apesar de ter amigos influentes como o compositor Claude Debussy, ao romper o romance, seu destino é a solidão e por fim a internação pelo irmão no hospício em 1912.

O diretor em seu longa anterior O Pecado de Hadewijch focava uma católica que não aceitava uma noviça, sob o pífio pretexto de que faltava humildade, fazendo com que a jovem se sentisse arrogante e não merecedora de Deus. Em Camille Claudel, 1915, a devoção e o seu amor ao propalado Deus pertence ao irmão tresloucado, ao pregar uma igreja que sustenta como o ser maior clamando pela humildade, razão pela qual interna a irmã por ter ela um propalado orgulho do trabalho que lhe causa autossuficiência com ideias próprias e diagnosticada de esquizofrenia. Sua insanidade é visível, mas a atribuída louca que está internada e sofreu visceralmente é Camille, até morrer aos 79 anos.

O filme flui por uma dramaticidade de forma autêntica e demolidora sobre a igreja, basicamente numa época específica como a de 1915, em plena 1ª. Guerra Mundial. Mostra a busca da redenção que vem com a bela cena do vento, quando entra no manicômio na cena próxima do final. Outra cena comovente é o diálogo forte com o médico e sua confissão de dor e perseguição do ex-amante e também escultor famoso Auguste Rodin, que a destruiu com sua paixão mentirosa e recheada de falsidades ao romper o romance aos 30 anos, teve obras e ideias já materializadas virtualmente furtadas pelo grande e decepcionante amor de sua vida, destruindo-a literalmente e induzindo o irmão em jogá-la naquele lugar inóspito como um legítimo sepultamento de uma maldita jovem morta-viva, cheia de alegrias e aspirações.

A reflexão é contundente sobre o catolicismo num mundo de permanente busca, em que a religião reflete seus preconceitos, contradições e radicalismo. Ou se fechando dentro dos muros como faz uma igreja retrógrada, sendo espreitada pela presença marcante da fragilidade humana, através daqueles seres alijados de um convívio social adequado com familiares. Sobra para todo mundo na película, diante do olhar forte e a posição firme do diretor sobre as aberrações religiosas ultrapassadas de proselitismos e epifanias, tanto pelo fanatismo, como pelo radicalismo exacerbado, bem caracterizado por Dumont neste magnífico filme sem trilha sonora para deixar mais impactante o clímax de revolta e ultraje de uma artista excomungada pela família em conluio religioso.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Depois de Maio













Utopias Juvenis

O diretor Olivier Assayas mostrou toda sua competência no extraordinário Horas de Verão (2008), retratando as relações familiares e as transformações no século 20, com o início da globalização, abordou profundamente o fim de uma era glamourizada, onde a cultura e a economia eram fatores sólidos e essenciais da velha Europa e a França fazendo parte como um sustentáculo bem consolidado. Depois realizou o épico de 5h30min Carlos (2010), enfocando a história da vida de Ilich Ramirez Sanchez, de codinome "Carlos" o Chacal, tendo por ídolo "Che" Guevara, com formação marxista, mostra-se um revolucionário que defende a causa da Palestina, tendo como seu crepúsculo profissional justamente a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, foi um dos terroristas mais procurados no mundo por duas décadas, após diversos atos sanguinários.

Assayas se debruça neste seu último longa-metragem sobre os reflexos e as consequências danosas e utópicas da juventude sonhadora do pós-maio de 1968. Os anseios pela manutenção da integridade e do núcleo são rapidamente derrotados por uma expressa vontade dos anos que sucederam aquela efervescência e os desfazimentos dos sonhos por bens materiais que ainda afloram, visando um futuro longe da cultura revolucionária almejada e dos valores plantados num país em derrocada.

A trama tem um cenário sombrio em 1971, onde Gilles (Clément Métayer- de atuação magistral) vive seu último ano no colégio e participa de um movimento estudantil com seus amigos e personagens bem definidos como aqueles jovens que querem modificar o mundo a qualquer preço. Seja incendiando carros, enfrentando a polícia violenta de um sistema conservador, pronta para o revide e a agressão com vítimas barbaramente espancadas. A busca da transformação pela contracultura de espíritos que querem mudar uma sociedade conservadora são seus objetivos imediatistas. Mesmo num tom poético, há a ruptura do vínculo com o sistema.

É impossível não se comparar Depois de Maio com filmes anteriores, tendo em vista as enormes semelhanças de conteúdo e proposta, como Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, que mostra um rapaz em 1968 indo estudar em Paris. Lá ele conhece dois irmãos e os três logo se tornam amigos, dividindo experiências e relacionamentos, enquanto Paris vive a turbulência da revolução estudantil. Também comparável com Amantes Constantes (2005), de Philippe Garrel, quando em 1969, um grupo de jovens se dedica ao ópio depois de ter vivido os acontecimentos de 1968. Dentro do grupo nasce um louco amor entre uma garota e um garoto que se conheceram durante a revolução.

O diretor filma com sutileza e sua crítica é áspera ao velho sistema oligárquico, onde uma mentalidade arcaica está em extinção e impiedosamente corroída. Mas há a desconstrução de jovens idealistas, embora utópicos em suas angústias e tristezas de um tempo que ficou para trás, restando somente a ilusão de um futuro a ser construído, partindo-se do marco zero, num país que teria que rever seus valores. A corrosão é fulminante e os sonhos e devaneios dão lugar para uma geração nova que surge com a missão de carregar algo que está agonizando.

Depois de Maio é um drama com méritos e tem uma boa essência de cinema irrefutável, diante da onda de protesto do famoso maio de 1968 e a obstinação de um público jovem querendo mudanças no mundo, como o questionando do aborto, a liberação e o uso de drogas, principalmente uma revolução cultural iminente. Assayas dá ao filme tons nitidamente autobiográficos quando tinha tenra idade e seu alter ego está impecável como o protagonista Gilles e seus amores perdidos no tempo, mas há um notório clima de déjà vu cansativo no ar. A solidão dos personagens no epílogo e suas vidas em desencontro são boas referências reflexivas com razoável instigamento do tema já bem recorrente advindo daquela época.