sexta-feira, 16 de abril de 2021

Meu Pai

Demência Devastadora

Indicado ao Oscar deste ano em seis categorias (melhor filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, design e edição), disponível nas plataformas Net/Claro Now, Apple TV e Google Play, o longa-metragem Meu Pai, do romancista e teatrólogo francês Florian Zeller, que tem uma estreia promissora na direção com sobriedade e sensibilidade sobre a perda da lucidez e o mergulho no mundo dos devaneios da fantasia e do imaginário de um idoso octogenário que começa perder a memória. Distancia-se do cotidiano para oscilar entre uma triste realidade de outrora e de reminiscências de um passado longínquo. São situações delicadas que irão causar desconforto e perplexidade entre os mais próximos, como a recusa da ajuda da filha que pretende se mudar para Paris e precisa garantir os cuidados dele enquanto estiver fora. Na ânsia de buscar alguém como cuidadora, surgem as mudanças pertinentes da grave moléstia do Alzheimer (a Organização Mundial da Saúde estima que haja atualmente 35 milhões no mundo) que irão atordoar e lançar desconfianças e dúvidas entre o enfermo e seus familiares, como a confusão mental estabelecida até uma ruptura da estrutura do mundo real. Ingredientes estes que devem ser creditados ao fértil roteiro adaptado magistralmente da peça teatral Le Père (2012) por Christopher Hampton, oscarizado por Ligações Perigosas (1988), em parceria com o diretor.

A história é aparentemente simples, mas a complexidade do enredo está mais para uma reflexão dolorida do que para as inquietudes e desconfianças de Anthony (Anthony Hopkins- em mais uma atuação soberba e irreparável) que ainda conserva sua imponência de um lorde, apesar dos constantes ataques de confusão e esquecimento. Recusa-se terminantemente a admitir, embora por força da saúde já dando mostras de um estágio debilitado como as sucessivas acusações do furto de seu relógio. Como um artefato explosivo que cai no colo, a filha Anne (Olivia Colman- impecável na interpretação com doação) travará uma batalha diária inglória e desgastante para cuidar do pai e evitar maiores dissabores com o cotidiano. Ela terá ainda que lidar com as cobranças do intransigente marido Paul (Rufus Sewell), que insiste em internar o sogro num asilo. A preocupação da filha e o seu dilema diário estão associados a possíveis acidentes domésticos, pois ele não consegue viver sem a ajuda de terceiros, mas mesmo assim insiste em morar com a filha em seu apartamento confortável. Com suas obsessões e manias adquiridas, bota a correr todas as zelosas cuidadoras, exceto Laura (Imogen Poots) com quem associa a semelhança física com a outra filha Lucy, morta tragicamente há muitos anos.

Como um novelo que se desenrola nesta experiência sensorial, o realizador vai lançando as situações diárias típicas de conflitos com as empregadas, bem como o choque de frente do pai com a filha e o marido. O filme propõe a meditação sobre a chegada da devastadora demência na terceira idade tendo como consequência as peraltices causadas pela vítima da doença que aflora sem piedade e não como um elemento agressivo de quem tem as faculdades mentais sadias. Como referências de subsídios já foram realizados outros excelentes filmes com a mesma temática: Nebraska (2013), de Alexander Payne, O Filho da Noiva (2001), de Juan José Campanella, Sr. Kaplan (2012), de Álvaro Brechner, Para Sempre Alice (2014), de Lisa Genova e A Viagem de Meu Pai (2015), de Philippe Le Guay. Na mesma esteira, porém com um viés um pouco diferente pelo contexto da eutanásia em foco, há a obra-prima Amor (2012), de Michael Haneke, no qual o companheiro trocava fraldas geriátricas, alimentava com papinhas na boca, medicação, água e dava banho, embora a contundência psicológica do personagem fosse mais intensa e agressiva, diante da aproximação iminente do ocaso implacável da vida. Zeller constrói um universo perverso advindo do tempo passando, mas não deixa cair no melodrama, mesclando o bom humor e a sensibilidade das situações cômicas ingressarem como um doce amargor decorrente de uma acidez involuntária de uma vida que se esvai lentamente. Assim é o avanço da idade e os cuidados especiais que requerem, através da sugestão implícita do acometimento nefasto da memória corroída através dos recorrentes lapsos incuráveis que se agravam ao longo da existência.

O desenrolar do drama vivenciado pelo protagonista através de sua visão, dará um ângulo correto pela distorção da enfermidade, criando fantasias com confusão mental ao dizer à nova cuidadora ser um dançarino, embora fosse um engenheiro aposentado; os delírios e as hostilidades com o genro são situações que se agravam, embora o cineasta deixe em aberto a possível agressão sofrida pelo idoso. As alucinações crescem e os conflitos aumentam com as adversidades cada vez mais presentes. Cria-se um clímax de suspense psicológico com o passado da filha falecida, num emaranhado de novas situações que povoam a mente do pai no antagonismo com Anne e seu drama em deixá-lo numa casa de repouso e ir para o exterior. A internação abrupta será certamente traumática para ambos. Os enfermeiros Bill (Mark Gattis) e Catherine (Olivia Williams) entram na ciranda confusa das digressões e pensamentos do passado pela visão de Anthony, que pedirá a presença da mãe para levá-lo para casa numa súplica angustiante e, aos prantos, chora como criança desamparada e assustada pelo terror do momento nos braços da meiga enfermeira. Pergunta: “quem sou eu?”, em comoventes e doloridas cenas, em que a agonia do protagonista com alguns lampejos de lucidez dói no espectador e na profissional da saúde.

Meu Pai não é mais um filme sobre demência e a relação familiar, devendo estar na lista dos dez melhores do ano. A singularidade está no instigante roteiro ao apresentar a situação pelos dois pontos de vista. Tanto do idoso e sua solidão, bem como a vida da filha e as circunstâncias que se apresentam no dia a dia. O desfecho é arrepiante ao elucidar a temporalidade e o real espaço físico das imagens que até então eram mostradas como num jogo de xadrez. É a realidade de uma situação sinistra e definitiva da deterioração mental para sempre como somente o cartão postal no epílogo irá revelar a versão correta de tempo e a sincronia do enredo no flashback ocultado pelo diretor. Uma inesquecível obra no formato de gestos teatrais na mais pura essência cinematográfica sem rótulos sobre o início e a melancólica finitude diante dos sentidos cognitivos que levam para a perda dos sentidos. Uma impactante proposta direta e sem pasteurização da evolução (início da destruição do cérebro, por consequência a razão, e finalmente minando a consciência) até atingir o ápice deste extraordinário drama familiar existencial com imagens finais de árvores e seu verde de esperança de um novo dia contrastando com o olhar desorientado. Fica acentuado o estrago pelo avanço da moléstia arrebatadora dentro de um contexto chocante e seus prejuízos que fluirão paradoxalmente na reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes. Eis uma pungente abordagem que ganha tons de uma imersão paranoica obsessiva pela desorientação da impotente vítima na passagem das luzes se apagando na contemplação da ruptura com o presente e o futuro, restando alguns resquícios do passado.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Druk - Mais uma Rodada

Limites do Alcoolismo

Thomas Vinterberg e Lars von Trier, no mês de março de 1995, em Copenhague, lançaram um manifesto cinematográfico internacional denominado Dogma 95. Era um movimento estético, exatamente no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood. Em sendo aprovado pelos seus membros, receberia o Certificado Dogma 95. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague. Von Trier dá a partida com Os Idiotas (1998), segundo filme do movimento, depois vem Dançando no Escuro (2000), premiado com a Palma de Ouro em Cannes como Melhor Filme. A consagração vem com o fabuloso Dogville (2003), que tem sequência com Manderlay (2005), também em grande performance e fiel ao seu estilo proposto de um cinema mais simples, sem muita luz artificial e com cenários externos exclusivamente. Mas foi Vinterberg que recebeu o selo nº. 01 de certificado Dogma 95 para seu filme Festa de Família (1998), que mostra uma sessão de terapia coletiva, revelando ressentimentos e aflorando fortes revelações num aniversário. Fracassou com Dogma do Amor (2003), e melhorou com Querida Wendy (2005).

O diretor dinamarquês retornou com vigor e todo fôlego em Submarino (2010), deixando definitivamente para trás o movimento que criou, numa trama bem urdida de dois irmãos com grandes recordações e feridas abertas de uma infância conturbada pela tragédia da perda do caçula e, sobretudo, pela convivência diária com a mãe alcoólatra e agressiva com seus dois filhos maiores. Símbolo de um lar desestruturado e destroçado pelo vício e a morte rondando permanentemente. Realizou depois a obra-prima A Caça (2012), contundente reflexão sobre os preconceitos contemporâneos e da pressão de uma casta dentro de uma comunidade conservadora sobre os direitos e princípios morais do indivíduo acuado e liquidado moralmente para sempre, como se depreende da última cena da caçada no mato de um homem acusado injustamente pela prática de pedofilia. Agora, o cineasta retoma a temática do alcoolismo na excelente comédia dramática Druk -Mais uma Rodada, em cartaz na Net/Claro Now, Apple TV, Google Play e You Tube, ao abordar a história de quatro professores com diversos problemas em suas vidas. Eles irão testar a teoria de um estudo sobre a necessidade do corpo humano viver com um teor alcoólico de 0,05 em suas correntes sanguíneas para ter mais prazer, relaxar, e ter melhor desempenho nas aulas.

Com bom humor mesclado por algumas crises existenciais, o enredo irá conduzir para que eles passem a beber diariamente uma taça de vinho ou de espumante; depois tomam cerveja e vodka. O consumo das doses aumenta cada vez mais até se tornarem potenciais alcoólatras, no limite tênue do equilíbrio que passa para o descontrole total e evolui para problemas que estavam submersos, chegando à violência doméstica para explodir na crise conjugal, a pouca relação com os filhos do protagonista e fio condutor da trama, Martin (Mads Mikkelsen, o premiado ator do filme A Caça no Festival de Cannes, novamente teve uma atuação antológica, sem precisar falar muito, se expressa pelos olhares e os movimentos corporais). Ele está num dilema ao ser colocado em xeque nas aulas de História, mais uma razão para buscar energia nas bebidas para os novos desafios dos alunos. Os outros três colegas irão lhe dar apoio na nova teoria do álcool: Nikolaj (Magnus Millang) leciona Filosofia e aparentemente é um pai dedicado à esposa e os três filhos; Toomy (Thomas Bo Larsen) é um sensível instrutor solteiro de Educação Física que sempre protege o garotinho de óculos nas partidas de futebol; já Peter (Lars Ranthe) ministra aulas de música no coral. Os atores não encenaram bêbados, mas tomaram grandes porres nos ensaios antes das filmagens, para ar um realismo natural pós-embriaguês.

Indicado pela Dinamarca ao Oscar de Melhor Direção e Melhor Filme Internacional, a realização cria uma experiência dos personagens e retrata os limites do alcoolismo com suas próprias vidas e o poder do vício nesta história escrita pelo diretor em parceria com Tobias Lindholm. Foi baseada em relatos da filha do cineasta sobre uma brincadeira de estudantes que correm em torno de um lago e competem sobre quem bebe mais. Ida morreu aos 19 anos num acidente de carro provocado por um motorista distraído que dirigia olhando o celular. Ela estrearia como atriz neste filme, mas a tragédia ocorreu no quarto dia de filmagens. Vinterberg pensou em cancelar toda a produção, mas foi convencido a continuar para homenagear a filha que certamente gostaria de ver o filme pronto, tendo em vista que ela deu a ideia do projeto na abordagem dos reflexos da pressão da sociedade focando os dramas existenciais de professores com suas vidas entediadas num cotidiano que beira melancolia. O realizador menciona na trama Roosevelt e Churchill que afirma: “eu não bebo antes do café da manhã”, ambos perdem para Hitler numa brincadeira paradoxal sobre caráter numa aula de História. Outros líderes mundiais são citados com atitudes suspeitas de embriaguez em apresentações e discursos, entre eles estão Boris Yeltsin, Clinton e Brejnev.

O longa tem um desenrolar equilibrado entre os benefícios do álcool, sem fazer apologia, como na cena em que o aluno bebe moderadamente para relaxar e ser aprovado contrastando com o personagem que sofre os efeitos nefastos da bebida e vem a falecer por ter a saúde debilitada. A diretora do estabelecimento de ensino que faz uma reunião para tratar da suposta embriaguez de alunos e seus mestres é outro ponto de lucidez que o cineasta enfatiza em uma das cenas para afastar alguma tendência de enaltecimento das bebidas. Em outra cena, há a posição do psicólogo que critica o álcool em uso prolongado e seus efeitos devastadores. Os quatro amigos acabam por beber em demasia, dão show em casas noturnas, correm nas ruas até caírem. “Esse país só sabe beber mesmo”, diz a esposa de Martin. Embora não haja semelhança estética, mas apenas temática, pode ser comparado com Coração Louco (2009), de Scott Cooper, na trajetória clássica de derrotas de um cantor country, com uma vida desregrada pelo alcoolismo e em decadência iminente. Também há alguma semelhança temática com o clássico americano Farrapo Humano (1945), com a qualificada direção do mestre Billy Wilder, em que Ray Milland protagonizou aquele triste espetáculo dantesco de uma pessoa desmoronando.

A relação de amizade do quarteto docente nos remete para a inesquecível fábula filosófica A Comilança (1973), de Marco Ferreri, com Marcello Mastroianni, Ugo Tognazzi, Michel Piccoli e Philippe Noiret, onde quatro senhores entediados com a vida se trancam numa mansão com uma quantidade enorme de comida, planejam comer até morrer, mas antes combinam uma orgia sexual com prostitutas. Druk -Mais uma Rodada tem um epílogo catártico da formatura celebrada por jovens tomando espumantes dentro de um caminhão que irá contrapor com a esquecida esposa suplicando o retorno do marido vacilante entre a lucidez e o desatino mental que opta pela liberdade da escolha das atitudes que culmina no voo para o mergulho simbólico na águas do rio. São apontadas as consequências trágicas do final em aberto de uma realização imparcial sem proselitismos ou apologias. Deixa o recado sobre o equilíbrio e os limites escassos da bebida diante dos excessos, abordando tanto o lado bom deste desafio da bebida contrastando com o pior cenário possível. Eis uma singular comédia dramática que deixa na sua essência ensinamentos para o espectador refletir, passando longe do politicamente correto.