Demência Devastadora
Indicado ao Oscar deste ano em seis categorias (melhor filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, design e edição), disponível nas plataformas Net/Claro Now, Apple TV e Google Play, o longa-metragem Meu Pai, do romancista e teatrólogo francês Florian Zeller, que tem uma estreia promissora na direção com sobriedade e sensibilidade sobre a perda da lucidez e o mergulho no mundo dos devaneios da fantasia e do imaginário de um idoso octogenário que começa perder a memória. Distancia-se do cotidiano para oscilar entre uma triste realidade de outrora e de reminiscências de um passado longínquo. São situações delicadas que irão causar desconforto e perplexidade entre os mais próximos, como a recusa da ajuda da filha que pretende se mudar para Paris e precisa garantir os cuidados dele enquanto estiver fora. Na ânsia de buscar alguém como cuidadora, surgem as mudanças pertinentes da grave moléstia do Alzheimer (a Organização Mundial da Saúde estima que haja atualmente 35 milhões no mundo) que irão atordoar e lançar desconfianças e dúvidas entre o enfermo e seus familiares, como a confusão mental estabelecida até uma ruptura da estrutura do mundo real. Ingredientes estes que devem ser creditados ao fértil roteiro adaptado magistralmente da peça teatral Le Père (2012) por Christopher Hampton, oscarizado por Ligações Perigosas (1988), em parceria com o diretor.
A história é aparentemente simples, mas a complexidade do enredo está mais para uma reflexão dolorida do que para as inquietudes e desconfianças de Anthony (Anthony Hopkins- em mais uma atuação soberba e irreparável) que ainda conserva sua imponência de um lorde, apesar dos constantes ataques de confusão e esquecimento. Recusa-se terminantemente a admitir, embora por força da saúde já dando mostras de um estágio debilitado como as sucessivas acusações do furto de seu relógio. Como um artefato explosivo que cai no colo, a filha Anne (Olivia Colman- impecável na interpretação com doação) travará uma batalha diária inglória e desgastante para cuidar do pai e evitar maiores dissabores com o cotidiano. Ela terá ainda que lidar com as cobranças do intransigente marido Paul (Rufus Sewell), que insiste em internar o sogro num asilo. A preocupação da filha e o seu dilema diário estão associados a possíveis acidentes domésticos, pois ele não consegue viver sem a ajuda de terceiros, mas mesmo assim insiste em morar com a filha em seu apartamento confortável. Com suas obsessões e manias adquiridas, bota a correr todas as zelosas cuidadoras, exceto Laura (Imogen Poots) com quem associa a semelhança física com a outra filha Lucy, morta tragicamente há muitos anos.
Como um novelo que se desenrola nesta experiência sensorial, o realizador vai lançando as situações diárias típicas de conflitos com as empregadas, bem como o choque de frente do pai com a filha e o marido. O filme propõe a meditação sobre a chegada da devastadora demência na terceira idade tendo como consequência as peraltices causadas pela vítima da doença que aflora sem piedade e não como um elemento agressivo de quem tem as faculdades mentais sadias. Como referências de subsídios já foram realizados outros excelentes filmes com a mesma temática: Nebraska (2013), de Alexander Payne, O Filho da Noiva (2001), de Juan José Campanella, Sr. Kaplan (2012), de Álvaro Brechner, Para Sempre Alice (2014), de Lisa Genova e A Viagem de Meu Pai (2015), de Philippe Le Guay. Na mesma esteira, porém com um viés um pouco diferente pelo contexto da eutanásia em foco, há a obra-prima Amor (2012), de Michael Haneke, no qual o companheiro trocava fraldas geriátricas, alimentava com papinhas na boca, medicação, água e dava banho, embora a contundência psicológica do personagem fosse mais intensa e agressiva, diante da aproximação iminente do ocaso implacável da vida. Zeller constrói um universo perverso advindo do tempo passando, mas não deixa cair no melodrama, mesclando o bom humor e a sensibilidade das situações cômicas ingressarem como um doce amargor decorrente de uma acidez involuntária de uma vida que se esvai lentamente. Assim é o avanço da idade e os cuidados especiais que requerem, através da sugestão implícita do acometimento nefasto da memória corroída através dos recorrentes lapsos incuráveis que se agravam ao longo da existência.
O desenrolar do drama vivenciado pelo protagonista através de sua visão, dará um ângulo correto pela distorção da enfermidade, criando fantasias com confusão mental ao dizer à nova cuidadora ser um dançarino, embora fosse um engenheiro aposentado; os delírios e as hostilidades com o genro são situações que se agravam, embora o cineasta deixe em aberto a possível agressão sofrida pelo idoso. As alucinações crescem e os conflitos aumentam com as adversidades cada vez mais presentes. Cria-se um clímax de suspense psicológico com o passado da filha falecida, num emaranhado de novas situações que povoam a mente do pai no antagonismo com Anne e seu drama em deixá-lo numa casa de repouso e ir para o exterior. A internação abrupta será certamente traumática para ambos. Os enfermeiros Bill (Mark Gattis) e Catherine (Olivia Williams) entram na ciranda confusa das digressões e pensamentos do passado pela visão de Anthony, que pedirá a presença da mãe para levá-lo para casa numa súplica angustiante e, aos prantos, chora como criança desamparada e assustada pelo terror do momento nos braços da meiga enfermeira. Pergunta: “quem sou eu?”, em comoventes e doloridas cenas, em que a agonia do protagonista com alguns lampejos de lucidez dói no espectador e na profissional da saúde.
Meu Pai não é mais um filme sobre demência e a relação familiar, devendo estar na lista dos dez melhores do ano. A singularidade está no instigante roteiro ao apresentar a situação pelos dois pontos de vista. Tanto do idoso e sua solidão, bem como a vida da filha e as circunstâncias que se apresentam no dia a dia. O desfecho é arrepiante ao elucidar a temporalidade e o real espaço físico das imagens que até então eram mostradas como num jogo de xadrez. É a realidade de uma situação sinistra e definitiva da deterioração mental para sempre como somente o cartão postal no epílogo irá revelar a versão correta de tempo e a sincronia do enredo no flashback ocultado pelo diretor. Uma inesquecível obra no formato de gestos teatrais na mais pura essência cinematográfica sem rótulos sobre o início e a melancólica finitude diante dos sentidos cognitivos que levam para a perda dos sentidos. Uma impactante proposta direta e sem pasteurização da evolução (início da destruição do cérebro, por consequência a razão, e finalmente minando a consciência) até atingir o ápice deste extraordinário drama familiar existencial com imagens finais de árvores e seu verde de esperança de um novo dia contrastando com o olhar desorientado. Fica acentuado o estrago pelo avanço da moléstia arrebatadora dentro de um contexto chocante e seus prejuízos que fluirão paradoxalmente na reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes. Eis uma pungente abordagem que ganha tons de uma imersão paranoica obsessiva pela desorientação da impotente vítima na passagem das luzes se apagando na contemplação da ruptura com o presente e o futuro, restando alguns resquícios do passado.
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