sexta-feira, 26 de junho de 2015

Segunda Chance


Filhos Disputados

Thomas Vinterberg e Lars von Trier, em março de 1995, lançaram um manifesto cinematográfico internacional denominado Dogma 95, um movimento estético, exatamente no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague. Susanne Bier era integrante do grupo rebelde da Dinamarca, mas aos poucos desvencilha-se, como já o fizera no excelente drama Em um Mundo Melhor (2010), ao ganhar o Oscar de filme estrangeiro, por ter uma produção bem mais arrojada com um custo mais elevado, longe dos princípios norteadores de cunho técnico restritivo ao uso de tecnologias nas realizações cinematográficas.

Na mesma esteira do cultuado longa antecessor, Segunda Chance aborda duas famílias que o destino fará que se cruzem por linhas tortas, ao questionar os limites da ética confrontados com as normas da lei vigente, diante da ação de um policial que leva para sua casa um recém-nascido pelos maus tratos dos pais drogados. O investigador Andreas (Nikolaj Coster-Waldau) tem uma vida serena ao lado da esposa (Maria Bonnevie) e do filho bebê. Em um dia qualquer de trabalho, seu cotidiano é quebrado por um telefonema para intervir numa briga doméstica de um casal com histórico de violência e viciados em drogas. Aciona o amigo e parceiro, o detetive Simon (Ulrich Thomsen), para realizar a ação na residência em litígio, mas lá descobrem algo com gravidade, uma criança em estado deplorável está presa num armário. O protagonista perde o equilíbrio, manda o bom senso para bem longe com o que vê, fica indignado com o tratamento desumano dos pais brigões, mas encontra entraves na falha legislação que não permite a perda da guarda dos desajustados.

Bier é uma realizadora atenta que observa a dura realidade, se debruça com elegância e eloquência na ideia da sobrevivência, ao conduzir com um instigante clímax a narrativa da história, posicionando o defensor da lei para o lado tido como infrator, quando este decide sequestrar o menor maltratado, levando-o para a sua casa. As investigações começam a ser realizadas sobre o paradeiro do desaparecido, enquanto isto tragédias pessoais ocorrem no seio familiar de Andreas. Eis um primoroso filme policial de bom suspense que faz um apanhado dos valores éticos corrompidos por força do instinto de defesa do ser humano, onde a razão dá lugar para o sentimento das emoções com vínculo de proteção da espécie, sobressaindo a infalível percepção materna que não se engana. Afloram as vísceras expostas do ressentimento, na qual as aparências enganam para levar a um desfecho sublime, mas com um com o olhar de preocupação apontando para o preconceito das diferenças sociais.

Tudo é possível se consertar no enunciado explícito do magnífico longa anterior, com consequências trágicas no final e também com a libertação do personagem central, tal qual em Segunda Chance, um filme um pouco abaixo e menos corrosivo ao antecessor, mas superior às mediocridades que pululam nos cinemas nos dias atuais. Um cinema distante da grandiloquência, que procura nos pequenos gestos e imagens transmitir sinais de conflitos não solucionados, dando evidências do caminho pelo amor para conciliações nas intransigências refletidas das emoções obsessivas que levam para a perda do equilíbrio, enraizados na filmografia arrebatadora da cineasta, sempre voltada para as constantes questões sensíveis e humanas, assim como Assuntos de Família (1994), Corações Livres (2002), Depois do Casamento (2006) e Coisas que Perdemos pelo Caminho (2007).

Assiste-se paradoxalmente com prazer, dor e angústia ao mesmo tempo, pois os contrapontos do roteiro são perturbadores e dão reviravoltas plausíveis, ao refletir os problemas dos pais em consonância com os das crianças no meio do estopim. Há mágoas devastadoras e virulentas, que se encaixam na perda da razão pela loucura dos adultos em manter a prole a qualquer custo, num painel com tintas fortes e objetivas da insensatez que atordoa o absurdo das mentes perturbadas, sem deixar de cutucar com sutileza a vingança. São disfarces de uma fragilidade reprimida para controlar a violência das criaturas, interpretados por um elenco homogêneo que dá vida própria aos personagens.

Os irmãos Dardenne são mestres na temática infantil: O Filho (2002) e A Criança (2005), mas ainda que não seja um filme maior, pois os temas são abordados com relativa profundidade, sem incorrer no discurso barato e vazio, insere-se num mundo acostumado aos atos violentos e chocantes de pessoas cada vez mais distanciadas das coisas que ficam pelo caminho, como na indicativa cena da ponte, para trazer consequências bombásticas. À medida que expõe quem tem a missão de apontar culpados, registra-se um flagrante retrocesso de valores burlados dentro de uma engrenagem, para satisfazer caprichos de personagens com personalidades distorcidas, carregam o sentimento da culpa sem concessões de um drama pessoal sigiloso com revelações completas nas derradeiras sequências, numa sombria amostragem do céu escuro de nuvens negras com silhuetas, que remetem para as sementes germinando de uma maldade incontida, diante da forte influência da obra-prima de O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, através do carrinho escuro e o sacrifício como redenção.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Festival Varilux Cinema Francês (Sobre Amigos, Amor e Vinho)



















A Iminência do Fim

Mais uma boa e deliciosa produção no Festival Varilux de Cinema Francês, desta vez com um hábil viés gastronômico, faz uma abordagem suculenta, mas com um molho amargo na agridoce comédia intimista Sobre Amigos, Amor e Vinhos, dirigido por Éric Lavaine, que estreou em longas com Poltergay (2006), reaparece com Incognito (2008), realiza seu terceiro longa Protéger et Servir (2010) e dirige seu quarto filme Bem-Vindo a Bordo (2011).

Uma trama com boa desenvoltura, para um roteiro simples e inteligente nas sutis tiradas cômicas, com uma espetacular fotografia de imagens num cenário deslumbrante. Neste clima de cuidar da saúde com corridas, exercícios, não fumar, comer alimentos saudáveis e trabalhar muito, que Antoine Chevalier (Lambert Wilson- seguro e correto, atuou em Vocês Ainda Não Viram Nada (2012), de Alain Resnais e Homens e Deuses (2010), de Xavier Beauvois), sofre um ataque cardíaco no dia em que comemora com amigos seu aniversário de 50 anos. Logo cai a ficha e se dá conta que passou a maior parte dos últimos anos tomando cuidados para manter uma excelente aparência, mas nada adiantou como medida preventiva, foi fisgado por uma fatalidade do destino.

O diretor conduz com leveza o enredo, colocando o protagonista como um homem que fazia tudo como manda o figurino, mas ao se decepcionar com os imprevisto da natureza, revê sua condição humana de mortal e decide adotar um novo estilo de vida. Deixou para trás aquela imagem de quem sempre zelou por tudo, preocupado com a família, evitava magoar os amigos e concordar com as tolices ditas, para ser agradável, mas violentando sua personalidade quase reprimida. Conclui que fazer isto sem levar uma vida aprazível não o protegeu, então por que não desfrutar dos prazeres que a vida oferece para tentar ser feliz? Paradoxalmente o infarto lhe fez bem, pois mudou e com ele foi a reboque seus parceiros de mais de 10 anos que se conheceram na faculdade, exceto o mecânico de alcance menor e ideias curtas, mas bem recebido por todos pela espontaneidade.

A comédia é tipicamente francesa, com apetitosa gastronomia, vinhos de boa qualidade e um champagne de alto nível das melhores uvas, dando sensações e prazeres pelos olfatos, táteis e visuais. O grupo de amigos marca férias para um local adorável numa casa de campo entre vales e montanhas. Os conflitos brotam e a convivência deixa o protagonista irritado com Yves (Guillaume de Tonquédec), um chato vegetariano com mania de mapas e localizações, piadas sem graça e uma esposa fútil. Pergunta a Jean-Michel (Jérôme Commandeur): o que ele faz ali, se todos são casais? Vai destilando sua ironia e falando o que pensa. Sobra até para esposa, uma médica que se faz de tonta e vai levando a situação entre fingir e trair. Baptiste (Franck Dubosc) e Olivia (Florence Foresti), formam um casal em crise matrimonial, dando um tempo para a relação conflitada, mas ele torna-se obsessivo por não desgrudar da ex, uma mulher extrovertida e fanática por futebol, mas que tem um passado com um deles, que vem à tona e causa um certo constrangimento. Tem ainda o amigo introvertido, que não se abre com ninguém sobre seus problemas financeiros, diante do quadro instável do setor imobiliário

O enredo da comédia de Lavaine não está voltado diretamente para uma história em relação aos regozijos dos vinhos, como em Sideways- Entre Umas e Outras (2004), de Alexander Payne, ao narrar a história de dois amigos pelas fazendas vinícolas da Califórnia como despedida de solteiro de um deles para o vinho servir como forma de refúgio de todos os problemas: separação, trabalho, mulher e amor; já em Um Bom Ano (2006), de Ridley Scott, o protagonista é obrigado a voltar para França, onde foi educado na arte da elaboração para classificar as uvas por um tio, dono de um vinhedo no país, por conta de seu falecimento.

Um filme sobre a idade que vai passando e a proximidade da terceira idade como iminência do fim, o tom é suave como proposta no desenrolar da trama, mas o tema traz à baila momentos de uma reflexão e uma reavaliação sobre a vida, os modos comportamentais, as mudanças de hábitos e as consequências que poderão advir e as frustrações colocadas em xeque. Sobre Amigos, Amor e Vinhos não é uma realização superior, mas agrada pela elegância simples da empatia dos personagens com a plateia, bem como pela maneira como é focada as difíceis relações humanas, principalmente tentar ser agradável com todos, pode soar falso, e até estourar como uma bolha inflada. Uma boa comédia para ser degustada, curtida como Antoine encarou a nova fase de sua vida, sem se prender a um compromisso maior, pois ela refoge do politicamente correto, o que é um indício alentador.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Sr. Kaplan
















As Reconstruções

Está cada vez melhor o cinema uruguaio em seu típico ritmo minimalista, a continuar assim, logo encostará na melhor escola de América do Sul, a Argentina. Com um início meio tímido, logo engrenou com Coração de Fogo (2002), de Diego Arsuaga; depois conquistou o público com Whisky (2004), de Juan Pablo Rebella- que se suicidou aos 32 anos, em 2006- e Pablo Stoll, para culminar com a mini obra-prima O Banheiro do Papa (2007), dirigido por Henrique Fernández e César Charlone. Pablo Stoll dirigiu seu segundo longa Hiroshima (2009); outro grande sucesso foi Gigante (2009), de Adrián Biniez, que levou o Urso de Prata no Festival de Berlim (2009) e três Kikitos no Festival de Gramado (2009), como de melhor ator, roteiro e o prêmio da crítica. Sem esquecer Tanta Água (2013), uma pequena grande comédia dramática sobre as afetivas relações familiares, escrita e dirigida pelas estreantes Ana Guevara Pose e Leticia Jorge Romero, que causou uma ótima impressão no público e crítica no Festival de Berlim.

Agora vem bater em nossas telas Sr. Kaplan, uma comédia dramática leve e com a suavidade característica do humor judaico autocrítico, num enredo aparentemente simples para um roteiro instigante e delicioso, escrito e dirigido por Álvaro Brechner, que se inspirou no romance El Salmo de Kaplan, de Marco Schwartz. A trama retrata como personagem principal Jacobo Kaplan (Héctor Noguera), aos 76 anos, que sente-se entediado e cansado da rotina. Ansioso em fazer algo para a comunidade e preocupado com os destinos de Israel, quer deixar sua marca para a eternidade, quando por acaso sua neta lhe segreda que conhece um senhor que vive em uma praia distante, que tem o apelido de nazista. É impulsionado pela história da captura na Argentina, anos atrás, de Adolph Eichmann com histórico no holocausto, foi levado para ser julgado no exterior pelos crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial.

O cineasta, em tom de finesse cômica, faz com que o senil ancião acredite que há outro alemão foragido escondido nas praias uruguaias, vendendo refrigerante e peixes para a população. Pede ajuda ao amigo ex-policial Wilson Contreras (Néstor Guzzini- o mesmo de Tanta Água), recém-separado da mulher com os filhos, tem sérios problemas financeiros, por ajudar o cunhado a sair de uma encrenca. Passam então a investigar o suposto nazista para capturá-lo, através de um plano mirabolante. Um quer se notabilizar na história, o outro a recompensa em dinheiro para tirar a família da lama. Não só isto, o longa reflete sobre coisas sérias, mas também mergulha no vazio existencial que acomete os idosos, principalmente os preconceitos na sociedade repressora de quem não é jovem. Primoroso nos detalhes das sutilezas do olhar desorientado e o corpo já debilitado pela idade.

Brechner é uma cineasta autoral que filma com poucos recursos financeiros, gosta de contar histórias enternecedoras e engraçadas, como na estreia em Maus Dias para Pescar (2009). Há similaridade com outro realizador independente, o norte-americano Alexander Payne que brilhou com Nebraska (2013), ao contar uma peripécia muito semelhante, em que um velhinho alcoólatra está convicto de que recebeu um bilhete premiado com prazo limitado para resgatar a fortuna, já com as ideias embaralhadas dando sinais de Alzheimer. Um cinema contemporâneo e incisivo com questões relacionadas à velhice, como nos magníficos argentinos Elsa & Fed (2005), de Marcos Carnevale e Dois Irmãos (2009), de Daniel Burman.

Sr. Kaplan é básica e fundamentalmente uma espécie de reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes para uma amostragem da essência cinematográfica. Talvez seja a última aventura do protagonista, pois sua vida ganha tons de uma paranoia obsessiva, mas com tintas de esperança para o companheiro de investigação, seu fiel escudeiro, cuja vida é repleta de desilusões e tristezas. O que eles querem mesmo é um reconhecimento como pessoas dignas, que sejam valorizados como seres humanos não descartáveis, pelo que já fizeram e ainda podem contribuir. A trajetória da dupla inseparável lembrará os velhos duelos de faroeste quase no desfecho desta comovente comédia dramática contida e bem elaborada nos diálogos, com imagens reveladoras pela fotografia, bem coadjuvada por uma trilha sonora não invasiva que dá o tom certeiro na melodia. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da morte pela jornada de aventuras com uma magia peculiar.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Retorno à Ítaca


Sonhos Utópicos

Inspirado no romance La Novela de Mi Vida (2002, do badalado escritor cubano Leonardo Padura, o cineasta francês Laurent Cantet realizou este estupendo drama social Retorno à Ítaca, vencedor do prêmio de melhor filme na Giornate Degli Autori, mostra paralela do Festival de Veneza de 2014. Um filme sobre os fantasmas do passado que são rememorados no reencontro de cinco amigos adeptos do sonho das mudanças que viraram utopias e desagregações familiares. O diretor que se notabilizou por Entre os Muros da Escola (2008), está de volta em coautoria no roteiro com Padura. Apesar da produção ser francesa, não é um olhar estrangeiro de intromissão sobre a temática da realidade cubana. O filme é falado em espanhol e mantém uma lógica adequada, ao limitar a ação a um terraço com vista para o Malecón- o famoso calçadão de Havana- e as habitações empobrecidas como cenário único que levou mais de dezessete noites para ser filmado, superando a licença governamental, diante do fator climático de muitas chuvas. Cantet já havia filmado anteriormente na ilha um dos episódios de Sete dias em Havana (2012).

Logo após o pôr do sol, o quinteto se reúne para comemorar a volta de Amadeo (Nestor Jimenez), depois de ter passado 16 anos exilado em Madri, retorna para ficar e retomar os vínculos afetivos com os amigos, pretendendo voltar a escrever textos literários. Lembram das transgressões como ouvir os Beatles, por exemplo, todos na faixa dos 50 anos e às vésperas de um novo século, parece ter chegado a hora de um balanço individual e sociopolítico do encontro que se dá no terraço da casa do engenheiro Aldo (Pedro Julio Ferrán), que teve sua fábrica de baterias de carros falida, vive de consertos e reciclagens, mora com a mãe idosa e o filho, um infrator de pequenos furtos. Tania (Isabel Campos) é a única mulher do grupo, uma médica oftalmologista que sobrevive de um pífio salário, recebe mercadorias, animais como forma de pagamento por escambo e se acha uma prostituta, seus filhos e ex-marido se exilaram em Miami, deixando-a solitária e abandonada; Rafa (Fernando Hechavarría) é um pintor fracassado que vive de pinturas para turistas, também é o pivô de um grande segredo entre eles; Eddy (Jorge Perugorría) deixou de ser escritor para tornar-se um chefe de uma empresa estatal e está enrolado com corrupção.

A trama é simples na estrutura, mas profunda pela complexidade do realismo puro de cinema, num tom comovedor de reencontros para colocar em dia as situações abafadas pelo regime castrista, marcado por um medo predominante nos rostos e olhares tristes e amargurados. Passam a noite conversando sobre as farras da juventude, o conjunto musical que embalava as festinhas e a crença que depositaram com as reformas sociais e políticas para um futuro promissor do país. Um doloroso mosaico humano de um país quebrado, no qual os habitantes sofrem com a angústia de ir embora para buscar novos horizontes ou ficar para não serem tachados de traidores da pátria. Remanesce na essência os sinais claros de um projeto coletivo que soçobrou, deixando uma geração sonhadora nitidamente com ônus da perda de valores, mas que carrega na alma uma força de dignidade arranhada por arriscar. O desfecho é sombrio e dilacera coração e mentes.

Retorno à Ítaca tem mágoas, revelações pessoais e profissionais que se entrelaçam pelas experiências obtidas. O painel traçado pelo diretor tem uma Cuba amorosa, realista e abrangente, com seus bons charutos e o rum como a bebida predileta, contrapondo com um regime que trouxe rupturas, dissabores e contradições, revisto de um local privilegiado, mas paradoxalmente está fincado num dos tantos prédios arruinados do centro velho da Capital. A câmera foca um porco sendo morto como um espetáculo dantesco desagradável, dito pela médica; vai ao encontro da intimidade dos personagens agoniados para mostrar a dor. É impossível não associar ao inesquecível drama Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), uma genuína obra-prima de Ettore Scola. Cantet traz o mar da ilha para a visão do grupo e dos espectadores, para atenuar o olhar e as respostas dos amigos que ficaram tanto tempo distantes. Há uma sólida ternura ao longo da história contundente de amores perdidos, empregos truncados, projetos interrompidos e amizades desfeitas involuntariamente. Mas há uma luz no fim do túnel com o recente anúncio do fim dos embargos econômicos.

A fotografia de Diego Dussuel é um artifício para imprimir um tom quase documental ao desabafo do entardecer ao amanhecer, com a segura direção de Cantet, ao montar um elenco primoroso, prevalecendo o todo, sem um destaque ou fracasso individual, pelo espírito, alma e coração empenhados nos personagens em reavaliar o passado, sem oscilar, com muita raiva, amargura, alegria e compaixão, para dar uma sensível e sutil naturalidade aos fatos que desfilavam. A manutenção da língua local deu autenticidade para capturar o peculiar humor e a ternura dos cubanos. Um painel fascinante de um filme realizado com maturidade de um retrato melancólico pela decepção, como uma crônica reconciliatória das ilusões perdidas. Desde já se credencia a ser um dos 10 melhores de 2015.

Festival Varilux Cinema Francês (Diário de Uma Camareira)















Diário de Uma Camareira

Outro aguardado lançamento neste Festival Varilux de Cinema Francês era o drama Diário de Uma Camareira, dirigido por Benoit Jacquot, reconhecido pela crítica internacional por Uma Garota Solitária (1995), depois se solidificou com O Sétimo Céu (1997) e Tosca (2001), mas seu último filme com repercussão foi Adeus, Minha Rainha (2013), com sua nova musa Léa Seydoux, antes dirigira Isabelle Adjani, Isabelle Huppert e Catherine Deneuve. Agora em seu último longa, o filme revisita o universo do romance escrito em 1900, por Octave Mirbeau. A primeira transposição para a tela ocorreu em 1946, por Jean Renoir, sendo batizado no Brasil com o nome de Segredos de Alcova.

Coube, porém, a Luís Buñuel realizar a melhor adaptação, em 1964, fotografada em preto e branco, com o título original Diário de Uma Camareira abordou a forma como a protagonista manipulava os homens que a deseja. Por vezes os provoca e quando estes fazem investidas, os recusa. Assim, esta mulher sádica tem a forma bem buñuelesca, que brinca com o fetiche e satiriza a sociedade francesa e seus delírios. Jeanne Moreau encarna com perfeição a camareira para criticar a burguesia, ao trabalhar para a família Monteil, que tem certas peculiaridades: a patroa é frígida, o marido sempre caçando animais ou mulheres, o pai tem um fetiche por sapatos femininos e há um trabalhador que se sente atraído pela moça, que contorna a situação e faz amizade com um ex-oficial. Quando o pai de Madame Monteil falece, a empregada deixa o emprego, pois pensava em voltar para Paris, mas logo altera seus planos ao saber que uma meiga garotinha da região foi morta e estuprada. Acredita que o criminoso seja o jardineiro, que ironicamente diz que quer se casar com ela, logo vira seu noivo, mas há indícios que o incriminam.

Jacquot não foge muito da temática nesta adaptação que segue uma linha já conhecida pelos cineastas que o antecederam com brilhantismo, em especial Buñuel, um crítico social ácido pela singularidade que criou dentro de um contexto exótico. Há uma sensação do déjà vu desde o início do drama, pelo cenário e a referência ao século XIX. Aborda novamente Célestine (Léa Seydoux- de boa interpretação), uma jovem camareira que é muito desejada pelos homens sedentos de prazer, tendo em vista ter uma radiante beleza, com um glamour de uma parisiense recém-chegada, desperta um clima de moça festeira e avançada para sua época. Há um rebuliço entre o público masculino e com um frisson, contrastando com as dúvidas, apreensão e temor pelas mulheres enciumadas pelas suas fragilidades e falta de encantos. Ou pela repressão familiar, ou por uma maldade oriunda de uma crise latente de autoestima.

O drama avança lentamente, com a câmera acompanhando a chegada da protagonista da Cidade Luz. Vem trabalhar para a família Lanlaire, mas logo sofrerá um assédio do patrão com suas botas imundas, que a faz retirá-las, já insinuando dias de tormento. Ao fugir dos avanços implacáveis do senhor todo poderoso, esbarra na perseguição da mulher dele, a megera Madame Lanlaire (Clotilde Mollet), uma patroa com uma ferrenha personalidade e de difícil relacionamento, beirando um estado emocional doentio, que governa a casa com um rigor excessivo e humilhante. Mas parece que nem tudo está perdido, pois logo faz amizade com Joseph (Vincent Lindon), um misterioso jardineiro que se apaixona por ela, promete casamento, mas tem uma condição, terá que se submeter numa cidade portuária aos prazeres dos famintos marinheiros por sexo. Ou seja, ele propõe uma parceria de prostituição explícita, desde que fujam dali para bem longe.

O veterano diretor francês coloca alguns acontecimentos em meio da trama, como um estupro seguido de morte, um assalto simulado na residência do casal Lanlaire, deixando claro o antissemitismo exacerbado do rude trabalhador e seu plano de fuga bem planejado. Não há um questionamento ou reflexão sobre aversão cultural, étnica e social aos judeus, sequer há uma crítica social pontual ou qualquer sátira à aristocracia francesa, na qual foi exemplarmente registrado pelo mestre espanhol na versão de 1964, que também foi fundo na visão dos empregados e seus problemas particulares. Jacquot ficou bem distante de uma análise mais aprofundada, ao traçar um painel raso, pouco eficiente e inconsistente. A fotografia tem destaque relevante no cenário pouco inspirado, para um roteiro de situações recorrentes de clichês repetitivos. Deixou de lado uma boa abordagem sobre o tema, caso avançasse para uma adaptação mais criativa e crítica.

domingo, 14 de junho de 2015

A Lição
















Valores Corrompidos

Vem da Bulgária o longa de estreia dos diretores Kristina Grozeva e Petar Valchanov, A Lição, premiado no Festival San Sebastián, na Espanha, em 2014. Para contar uma dolorosa história real, a inspiração dos realizadores veio por uma notícia estampada na página de um jornal, em que um professor búlgaro comete um desatino. É a primeira parte de uma trilogia que seguirá a proposta de transformar notícias na imprensa em produção para o cinema. A trama acompanha a saga de Nadezhda (Margita Gosheva- estupenda interpretação), uma metódica professora certinha de ensino fundamental de uma escola pública, que descobre um furto de dinheiro dentro da sala de aula, cria-se uma obsessão em descobrir quem foi o culpado.

Com um elenco basicamente de amadores, eis um primoroso drama social que faz um retrato profundo dos valores éticos corrompidos num país deteriorado pela corrupção policial no leste europeu, como metáfora de um regime arcaico comunista em vias de extinção pelas fragilidades de uma burocracia emperrante de um sistema totalmente superado. Os cineastas colocam no meio deste turbilhão a protagonista na tentativa de solucionar o caso e seu envolvimento com uma série de situações inverossímeis que a faz questionar os limites éticos e morais, numa meditação sobre o que é certo ou errado, tendo como mote a ilicitude praticada em plena sala de aula por uma criança. Há um encaminhamento de maneira magnífica para o epílogo sintomático estampado no olhar de cumplicidade entre mestre e aluno.

A Lição se passa na cidade interiorana de Blagoevdrad, numa abordagem austera sobre as circunstâncias relevantes e as justificativas que levaram os personagens para o crime, como metáfora de um país da antiga cortina de ferro dentro de um continente em crise sócioeconômica. A ética e o bom senso estão literalmente estraçalhados por um motivo maior e enobrecedor da professora com seu olhar fulminante, aspecto sombrio, com uma caminhada nervosa, deixando o barulho dos saltos dos sapatos retumbando nos ouvidos da plateia agoniada e envolvida pela luta tenaz e desesperada para manter a posse de sua casa na iminência de ser leiloada, diante de um vacilo do marido alcoólatra e fracassado que não consegue fazer rodar seu trailer, sempre estragado e com dificuldades de manutenção. Gastou o dinheiro da prestação, não resolveu o problema e ainda colocou a família no olho do furacão, inclusive a filha menor, numa situação delicada e complicada. Há um esforço apreciável da câmera para acompanhar a sobrecarga física e mental da dura jornada da protagonista no seu cotidiano intrincado.

Nadezhda é o retrato do tédio dos recorrentes problemas na sala de aula e o retrocesso político vigente, vive os dramas familiares comuns, sustenta a casa, tem que resolver as trapalhadas do parceiro e arriscar a pele com agiotas perigosos em conluio com policiais corruptos, num momento de extrema dificuldade financeira. A busca contra o tempo para solucionar o imbróglio, tendo no banco um opositor à sua felicidade, ao mudar as regras durante o jogo, aplicando juros escorchantes e taxas e mais taxas que levam a professora à suprema humilhação de catar moedas dentro de um chafariz, para evitar o pior no prazo que está expirando inapelavelmente.

Um drama com foco nos problemas universais, num cenário que contrasta o urbano com o abandono rural, através de uma narrativa de realismo seco e eletrizante, com momentos de um clímax de puro suspense pela surpresa sequencial das cenas da vida comum de uma pessoa conflitada pelas circunstâncias alheias ao desejado. Uma análise profunda da crise de emprego, como visto recentemente no provocador Dois Dias, Uma Noite (2014), dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne; bem explorado pelo diretor francês Robert Guédiguian, em As Neves do Kilimanjaro (2011). Guédiguian busca no abandono familiar de uma mãe tresloucada e de um pai omisso dar o tom certo pelos problemas sociais do desemprego de uma França enfraquecida pelos desmandos de uma burguesia ultrapassada. Os irmãos Dardenne miram na ética profissional e o preço de cada trabalhador fragilizado pelo sistema competitivo: bastante para alguns e pouco para outros. A dupla Grozeva e Valchanov se debruça nos valores éticos degenerados pela corrupção e juros bancários sem controle. Um mergulho dolorido sobre a crise sem precedentes e as consequências nefastas que advirão pela humilhação que arrasará com o objetivo mínimo de uma pessoa íntegra, ou seja, sua dignidade colocada em xeque.

Apontado por boa parte da crítica como um digno representante do movimento neorrealismo italiano, o filme mostra a solidão pela perda da mãe de sólido vínculo afetivo rompido com a intromissão da madrasta, a submissão do pai e a relação cada vez mais distante pela sua ausência, como símbolo metafórico de um Estado desatento de suas obrigações precípuas e inerentes para com seus filhos. A tensão, o medo e a humilhação para pagar a dívida são elementos notáveis deste drama singular pelos questionamentos e a exposição de cicatrizes ainda abertas do processo transitório financeiro, que remete para uma reflexão imparcial e impactante, com um desfecho revelador para sair do cinema sem fôlego.

sábado, 13 de junho de 2015

Festival Varilux Cinema Francês (De Cabeça Erguida)


De Cabeça Erguida

O mais aguardado dos lançamentos neste Festival Varilux de Cinema Francês era o drama social De Cabeça Erguida, dirigido por Emmanuelle Bercot, primeiro filme com direção feminina numa abertura do Festival de Cannes, além de ser intitulada como a melhor atriz por Mon Roi, foi coautora do roteiro de Polisse de Maïwenn no papel principal ora premiado. Em seu longa-metragem de estreia, Clément (2011), também foi a protagonista e esteve na Seleção Oficial em Un Certain Regard, dirigiu ainda Ela Vai (2013), no bom começo de parceria com Catherine Deneuve estrelando.

A juventude convalescente e sem rumo em busca do ingresso social, além do tema da redução da maioridade ou o acompanhamento por mais anos pelo Estado, eis uma temática recorrente, polêmica e de soluções discutíveis pelo calor das opiniões antagônicas. Na recente realização canadense Vic+Flo Viram Um Urso (2013), o diretor Denis Côté trouxe para o debate o difícil processo da busca da ressocialização de duas ex-prisioneiras que acabaram de sair da cadeia. Já a estreante em longas, a paulista Caru Alves de Souza, abordou o mesmo tema com o viés da criança em De Menor (2013), com boa acolhida nos festivais internacionais, foi premiada com o troféu de melhor filme no Festival do Rio de Janeiro de 2013, dividindo as láureas com O Lobo Atrás da Porta (2013), de Fernando Coimbra.

De Cabeça Erguida é uma produção francesa que mergulha de corpo e alma no tema do menor infrator, suas consequências e a importância do contexto da família como causa para um efeito devastador, triste e doloroso, trazendo com amargura uma discussão antiga e pouco eficiente nos dias atuais, no aspecto prático, no mundo globalizado e em crise econômica, moral e ética. Bercot centraliza na juíza da Vara da Infância Florence Blaque (Catherine Deneuve- discreta e sóbria) que conhece numa audiência o jovem infrator Malony (Rod Paradot- de muito boa atuação) com várias passagens por delegacias, iniciando sua trajetória de delinquência quando tinha apenas seis anos. Rouba e dirige sem carteira os carros, agride as vítimas e os transeuntes, tanto verbal quanto fisicamente. Diante deste histórico, há uma convincente exploração das explosões de raiva do protagonista em conflito contumaz com o sistema de reabilitação.

A cineasta é feliz e demonstra conhecimento de causa, embora não critique com contundência as instituições de seu país, deixando-se levar mais para uma análise mais velada. Aborda o microcosmo familiar em ebulição, personificado na figura da mãe negligente (Sara Forestier) que foge do filho, abstendo-se de maiores cuidados, além da perda do pai pelo adolescente aos quatro anos. O encaminhamento para um centro recuperatório faz com que tenha no educador Yann (Benoît Magimel- impecável no papel) um apoio moral, como substituição tácita da figura paterna ausente, embora haja alguns percalços pelo caminho, como o estremecimento de vínculos, mas quase sempre pela intromissão materna de forma infantil e descompromissada. Malony tem surtos e recaídas contrárias às regras impostas para manter a liberdade, ainda que surjam algumas situações de intransigência de parte a parte, o desfecho é lançado como um olhar para um futuro esperançoso, pelo amor com a namorada e o fruto intempestivo e indesejado num primeiro momento, traz tintas de superação para uma nova realidade.

Um filme com uma sombria história de um infrator problemático pela instabilidade emocional e de personalidade impulsiva, cercado por garotos que cometem pequenas infrações, logo se verá numa cadeia de adultos, sentirá o preconceito racial e a xenofobia escancarados, sem meias palavras. Tudo é um aprendizado ou uma lição paradoxal do que imaginava como um dilema intransponível. Surgem dúvidas e inseguranças como marcas registradas de uma infância ingressando na adolescência, vindo à tona as dificuldades de uma crise de identidade da criança para a fase adulta recheada de incertezas. É bem retratado com as nuances para uma reflexão desapaixonada, como visto na recente realização colombiana La Playa (2012), de Juan Andrés Arango Garcia.

Há um questionamento com boa margem de desapego para quem cometeu pequenos ilícitos, como demonstrado pela intolerância acentuada da falta de visão panorâmica do promotor público, um típico mão de ferro e nada afeito a concessões, que irá encontrar respeito à igualdade do direito de cada um pelo sentimento justo das causas e intenções na comedida magistrada, uma pessoa mais afável e conhecedora da causa dos desajustes infantis, embora sem perder o senso do limite jurídico e protetivo previsto nas leis que regem os menores. A punição entra em choque com os ensinamentos da corriqueira lição dos métodos restritivos da liberdade como forma de aprender as regras da vida. Um debate com visões diferentes é lançado aos espectadores.

Bercot aborda o tema com equilíbrio e equidistância razoável os transgressores, sem deixar de pinçar a importância fundamental do âmbito familiar como fator de desagregação nas tristes consequências da deliquência infantil, com a dose certa da alucinada trilha sonora no ritmo do vigor juvenil. A fotografia capta com esmero a emoção e as desavenças dos personagens para um roteiro enxuto que aos poucos vai elucidando os fatos por uma narrativa segura e objetiva, com poucos rodeios e distante de sofismas e alegorias baratas para atingir no âmago o espectador atento que observa o enredo de soluções adequadas aos que cometem desatinos ilícitos. Sem ser definitivo, o bom drama social não propõe conclusões terminantes, mas deixa o dilema aberto como uma ferida perigosa rumo à infecção disseminada, ao provocar e instigar.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Festival Varilux Cinema Francês (Papa ou Maman)













Papa ou Maman

O Festival Varilux de Cinema Francês deste ano está marcado pela predominância das comédias. Entre elas, a esperada Papa ou Maman, dirigida por Martin Bourboulon, em seu primeiro longa-metragem que alcançou grande sucesso na França, com mais de três milhões de espectadores. O neófito realizador iniciou carreira como assistente de direção de Mathieu Kassovitz, no longa Les Rivières Pourpres (2000); depois com os festejados diretores Jean-Paul Rappeneau e Bertrand Tavernier. Seu primeiro curta-metragem, Sale Hasard, foi selecionado no Festival do Filme Policial de Cognac.

A trama parte do casamento frustrado e em crise existencial, criando-se o estopim que faltava para uma plêiade de acontecimentos caóticos com reflexos nos três filhos adolescentes, que vão minar aos poucos e definitivamente os laços familiares, mas sempre tem um porém e fatos inesperados geram uma história de amor, ou até mesmo duas. Florence e Vincent (Marina Foïs e Laurent Lafitte) formavam um casal invejado pela notoriedade. Ele era um médico obstetra bem-sucedido, logo foi convidado para realizar um trabalho social no Haiti, por um período de sete meses; ela uma engenheira promissora que acaba de receber uma promoção dos sonhos, ou seja: mudar-se para a Dinamarca e dirigir uma filial da empresa.

Bourboulon exagera na dosagem e faz de sua obra uma trapalhada típica das comédias estilo pastelão. Parte da mudança de vida do casal em suas atividades profissionais, associada com a iminente separação que transformará em pesadelo a notícia que terá que ser comunicada aos três filhos. A guerra proporcionada pelos dois irá refletir nas crianças, pois ambos farão de tudo para não ter a guarda dos menores. No início, discutem se será compartilhada, alternada ou exclusiva, sob os olhos atentos da magistrada, mais confusa e alheia que os próprios divorciandos. O fogo inusitado da residência e os desdobramentos futuros irão pontilhar encontros e desencontros de membros de uma família heterogênea pelos traços marcantes de ser sui generis.

A comédia retrata um momento complicado para o casal e os filhos, num clima tenso de ruptura familiar. Há momentos simplórios, como as questões inverossímeis levantadas, como as tentativas de eliminar, machucar ou agredir com contundência odiosa a própria prole, física e moralmente, na busca ingênua de livrar-se dos estorvos juvenis, jogando-os para a guarda definitiva do pai ou da mãe. Tudo pensado e efetivado por uma causa específica arraigada ao futuro de ambos, sem estofo, pouca inspiração e muita gritaria, correria, tapas e beijos, ao melhor estilo dos blockbusters hollywoodianos.

Papa ou Maman é um retrato pouco fiel de um casamento que chega ao fim pelo estremecimento das relações, diante da quebra do vínculo afetivo entre um homem e uma mulher, bem como dos pais com os filhos. Há um marco no filme de definições do casal perturbado pelas frustrações e cinismos enrustidos, causando uma surpresa pouco sutil na busca derradeira de reconciliação alavancada pelos pimpolhos enfurecidos até o fim, embora os animais de estimação hamsters causem o fato mais inusitado, que sequer os filhos chegaram a pensar. É uma bisonha piada de mau gosto, talvez fosse boa na França, aqui não surtiu efeito e causou um frio na gélida sessão frustrada de uma expectativa bem alentadora.

Como o cineasta é estreante, se faz necessário um desconto desta comédia da inexistência de profundas reflexões e de resultados abaixo da média das produções cômicas, onde a fotografia tem um destaque relevante num cenário de razoável inspiração, para um roteiro nada instigante de situações recorrentes e de velhos clichês das cenas com toques recheados de um humor longe do refinado pelas piadas pouco inteligentes. Deixou de lado uma boa abordagem sobre o tema da guarda e do vazio do cotidiano das vidas corrompidas pelo desgaste do tempo e da fadiga dos metais, idiossincrasias, mentiras, traições e revelações de lado a lado, no esboço de um quadro cênico de realismo deturpado por sentimentos perdidos.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Festival Varilux Cinema Francês (Samba)
















Samba

O aguardado filme que não decepcionou no Festival Varilux de Cinema Francês foi a comédia dramática Samba, dirigido por Eric Toledano e Olivier Nakache, reconhecidos internacionalmente pelo festejado Intocáveis (2011), que abocanhou nove prêmios César (o Oscar francês), entre eles o ator Omar Sy, primeiro negro a ganhar o troféu. Foi um estrondoso fenômeno de público com mais de 20 milhões de espectadores na França, sendo a segunda maior bilheteria de todos os tempos em seu país, numa adaptação para o cinema de uma história real de uma inesperada amizade genuína, entre um milionário tetraplégico e um ex-assaltante de uma joalheria, um imigrante senegalês que busca seu reingresso social na conservadora casta social europeia.

Samba tem um toque de humor cáustico na busca pela igualdade dos imigrantes recém-chegados com o povo francês. O protagonista que empresta o nome ao longa é interpretado magistralmente por Sy- em nova parceria com a dupla de diretores-, que migrou há 10 anos também do Senegal, tal como na obra anterior. Mantém-se financeiramente por pequenos biscates, mora de favor com um tio, faz o possível para obter os documentos para arrumar um emprego honesto, mas esbarra na burocracia emperrante com tons kafkianos. O caprichoso destino determina o encontro por acaso com Alice (Charlotte Gainsbourg- de impecável interpretação), uma executiva experiente que recruta novos funcionários, vive estressada e com alta fadiga, toma muitos remédios para uma saúde debilitada e faz um trabalho dignificante numa ONG para imigrantes, buscando ajudá-los de uma forma ou de outra. Tem contato direto no centro de imigração com aquelas pessoas maltrapilhas, sem documentação, à procura de colocações no mercado e de sonhos para uma nova realidade, quase sempre decepcionante, triste e trágica, como no epílogo.

A comédia retrata um momento difícil, tanto para o forasteiro como para o país que o recebe. A crise institucional, religiosa e econômica não poupa ninguém. A falta de identidade das pessoas, como no personagem Wilson (Tahar Rahim- melhor revelação e melhor ator no César pela atuação em O Profeta, de 2009), um argelino que virou brasileiro, com o pretexto de obter sucesso junto às mulheres, além disso, intitula-se um artífice, mas obtém alguns resultados desastrosos. O filme tem uma coloração levemente abrasileirada, tanto pelo rapaz espertinho, como na trilha pelas canções de Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, além do protagonista que tem no nome o orgulho de ser um gênero musical derivado de um tipo de dança com raízes africanas consagradas no Brasil.

Intocáveis aborda um tema universal que é o reingresso na sociedade de um ex-apenado, tendo agravada a situação por ser um negro naturalizado, oriundo de um país africano e ex-colônia francesa. Samba é leve e provocativo concomitantemente. Às vezes, desliza na simplicidade de um olhar com ternura para uma amizade do protagonista com Alice, através de uma relação próxima que estreita os vínculos e busca uma naturalidade para a aproximação, ou uma causa específica arraigada ao futuro de ambos. Há situações de risos desbragados contrastando com um silêncio preocupante de vidas na busca da felicidade efêmera, com situações do cotidiano que as tornam vazias e sem sentido.

O filme é simples na sua estética, deixando as metáforas afastadas do enredo, indo direto ao ponto como o choque migratório numa nova cultura. Não há grandes rodeios ou simbologias das desgraças sociais com a perda objetiva de uma identidade. As piadas são razoáveis, às vezes beira a tênue linha divisória do pastelão para uma sutileza mais apropriada, sem estigmatizar pela rudeza, mas no contexto funciona como um elemento de descontração e bom humor para analisar um triste e doloroso contexto enfrentado pelo mundo globalizado e em crise de referências éticas, marcado por uma recessão extraordinária em todos os continentes.

O longa não tem a profundidade de um filme como O Porto (2011), do finlandês Aki Karismäki, que aborda o sofrimento e a ojeriza de uma casta que vira as costas, fruto da xenofobia racial, com um olhar de misericórdia e esperança; nem de Claire Denis no instigante Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo do Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do contundente Cachê (2003), de Michael Haneke. Samba tem méritos inegáveis ao abordar como mote uma relação de duas pessoas opostas que se conhecem fortuitamente. Embora a inclusão social para um trabalho digno de um imigrante seja o tema principal, não há uma profundidade acentuada, distante de um resultado reflexivo além do razoável na abordagem da superação e do conflito, nesta boa obra cômica, que repele dogmas normativos pela visão crítica da falência das instituições e pela arrogância fleumática de uma sociedade conservadora, ao mostrar o desequilíbrio diante do preconceito racial que faz emergir o ódio e o repúdio aos não nativos que buscam se estabelecerem em solo francês.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Bem Perto de Buenos Aires


Muros Inseguros

Vem da Argentina em coprodução com outros quatro países o suspense experimental Bem Perto de Buenos Aires (Historia del Miedo, no original), com direção do jovem estreante Benjamín Naishtat, filme que se fez presente no Festival de Berlim de 2014. A fotografia é primorosa, o enquadramento reflete o domínio de câmera pelo neófito cineasta de apenas 28 anos. Já no prólogo mostra-se um helicóptero da polícia sobrevoando uma área vizinha na periferia de Buenos Aires de um condomínio horizontal luxuoso, dando o aviso de desocupação aos invasores. Logo se percebe a intenção e o foco da trama, em retratar a luta de classes e a estratificação social, através da captação das imagens na sequência das cenas.

Há vários personagens que transitam, entram e saem sem muitas explicações na trama. O protagonista Pola (Jonathan Da Rosa) é um jovem de poucas palavras e de pouca expressão. Ele mora nas proximidades, trabalha no subúrbio, tem na namoradinha Tati (Tatiana Giménez) o elo com os moradores dali. A aparição de um buraco na cerca que protege a propriedade deixa todos os habitantes em pânico. O longa retrata o isolamento daquele lugar, na qual sua população fica aos poucos desconfiada e atônita. Cria-se um painel de medo e tensão, deixando claro que poderão ser atacados, num clima de ansiedade e um terror pelo desconhecido, através de um sentimento de êxtase que beira ao primitivismo.

O diretor admite inspiração no soberbo O Pântano (2001), da compatriota Lucrecia Martel, mas na realidade sua realização deriva mais como um genérico do badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, ao abordar classes sociais diferentes, personagens de lados opostos da cerca da pobreza. Ou seja: de um lado a doméstica e seu sobrinho, de outro a arquiteta empregadora e a namorada do rapaz que trabalha na residência dos amigos da ricaça. A história é um mosaico de situações paralelas que se interligam por alguma circunstância. Naishtat faz uma radiografia de uma cidade dividida pela desigualdade econômica, porém fica no meio do caminho por não aprofundar-se, sobra a pretensão como objetivo, deixando como resultado um registro confuso pelo roteiro inconsistente e sem rumo, embora houvesse muito mais para ser extraído.

Bem Perto de Buenos Aires é uma obra que não chega a afundar, pois deixa bons ensinamentos e propostas válidas como a metáfora do blackout no condomínio durante um jantar de pessoas vazias e distraídas, que sequer sabem o destino dos filhos que brincam jogando bombinhas na rua, numa alusão ao desconhecido invisível que poderia estar rondando suas casas, numa visão caolha de um imaginário criado pela aversão ao vizinho empobrecido, redundando em medo e pânico. O silêncio quebrado pela simulação do jogo da verdade no jantar é mais um elemento de hipocrisia contida e o desprezo com a classe menos favorecida, na qual foi magistralmente captado pelo estreante carioca Fellipe Barbosa, no drama brasileiro Casa Grande (2014) que retrata sem demagogia os contrastes pela visão social da sociedade representada por uma classe média alta que tenta manter valores superados. Já Mendonça Filho mostra fundamentalmente um filme silencioso que capta os barulhos externos, além dos símbolos de uma brutal realidade de belos lugares com moradias bem protegidas.

O diretor argentino usa a câmera para acompanhar as ações cotidianas dos personagens que transitam ou moram num cenário de dúvidas pela perda da tranquilidade de um local costumeiramente pacato, que se deixa abalar pelo instinto e pelo sentido sensorial repassado para a plateia como sugestão de fatos estranhos que poderiam se desenrolar trazidos pela escuridão, mas com o viés da insegurança pela luta de classes. Falta, porém, o clímax no contexto da estrutura de dramaticidade da narrativa que se mostra pouco eficiente e tediosa pela apatia de um conflito fático inexistente. Apesar do experimentalismo artificial, vale como provocação da natureza ameaçadora, além da reflexão de uma dualidade social pela onda de violência e dos contrastes inerentes de uma realidade perversa e presente.