sexta-feira, 26 de junho de 2015

Segunda Chance


Filhos Disputados

Thomas Vinterberg e Lars von Trier, em março de 1995, lançaram um manifesto cinematográfico internacional denominado Dogma 95, um movimento estético, exatamente no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague. Susanne Bier era integrante do grupo rebelde da Dinamarca, mas aos poucos desvencilha-se, como já o fizera no excelente drama Em um Mundo Melhor (2010), ao ganhar o Oscar de filme estrangeiro, por ter uma produção bem mais arrojada com um custo mais elevado, longe dos princípios norteadores de cunho técnico restritivo ao uso de tecnologias nas realizações cinematográficas.

Na mesma esteira do cultuado longa antecessor, Segunda Chance aborda duas famílias que o destino fará que se cruzem por linhas tortas, ao questionar os limites da ética confrontados com as normas da lei vigente, diante da ação de um policial que leva para sua casa um recém-nascido pelos maus tratos dos pais drogados. O investigador Andreas (Nikolaj Coster-Waldau) tem uma vida serena ao lado da esposa (Maria Bonnevie) e do filho bebê. Em um dia qualquer de trabalho, seu cotidiano é quebrado por um telefonema para intervir numa briga doméstica de um casal com histórico de violência e viciados em drogas. Aciona o amigo e parceiro, o detetive Simon (Ulrich Thomsen), para realizar a ação na residência em litígio, mas lá descobrem algo com gravidade, uma criança em estado deplorável está presa num armário. O protagonista perde o equilíbrio, manda o bom senso para bem longe com o que vê, fica indignado com o tratamento desumano dos pais brigões, mas encontra entraves na falha legislação que não permite a perda da guarda dos desajustados.

Bier é uma realizadora atenta que observa a dura realidade, se debruça com elegância e eloquência na ideia da sobrevivência, ao conduzir com um instigante clímax a narrativa da história, posicionando o defensor da lei para o lado tido como infrator, quando este decide sequestrar o menor maltratado, levando-o para a sua casa. As investigações começam a ser realizadas sobre o paradeiro do desaparecido, enquanto isto tragédias pessoais ocorrem no seio familiar de Andreas. Eis um primoroso filme policial de bom suspense que faz um apanhado dos valores éticos corrompidos por força do instinto de defesa do ser humano, onde a razão dá lugar para o sentimento das emoções com vínculo de proteção da espécie, sobressaindo a infalível percepção materna que não se engana. Afloram as vísceras expostas do ressentimento, na qual as aparências enganam para levar a um desfecho sublime, mas com um com o olhar de preocupação apontando para o preconceito das diferenças sociais.

Tudo é possível se consertar no enunciado explícito do magnífico longa anterior, com consequências trágicas no final e também com a libertação do personagem central, tal qual em Segunda Chance, um filme um pouco abaixo e menos corrosivo ao antecessor, mas superior às mediocridades que pululam nos cinemas nos dias atuais. Um cinema distante da grandiloquência, que procura nos pequenos gestos e imagens transmitir sinais de conflitos não solucionados, dando evidências do caminho pelo amor para conciliações nas intransigências refletidas das emoções obsessivas que levam para a perda do equilíbrio, enraizados na filmografia arrebatadora da cineasta, sempre voltada para as constantes questões sensíveis e humanas, assim como Assuntos de Família (1994), Corações Livres (2002), Depois do Casamento (2006) e Coisas que Perdemos pelo Caminho (2007).

Assiste-se paradoxalmente com prazer, dor e angústia ao mesmo tempo, pois os contrapontos do roteiro são perturbadores e dão reviravoltas plausíveis, ao refletir os problemas dos pais em consonância com os das crianças no meio do estopim. Há mágoas devastadoras e virulentas, que se encaixam na perda da razão pela loucura dos adultos em manter a prole a qualquer custo, num painel com tintas fortes e objetivas da insensatez que atordoa o absurdo das mentes perturbadas, sem deixar de cutucar com sutileza a vingança. São disfarces de uma fragilidade reprimida para controlar a violência das criaturas, interpretados por um elenco homogêneo que dá vida própria aos personagens.

Os irmãos Dardenne são mestres na temática infantil: O Filho (2002) e A Criança (2005), mas ainda que não seja um filme maior, pois os temas são abordados com relativa profundidade, sem incorrer no discurso barato e vazio, insere-se num mundo acostumado aos atos violentos e chocantes de pessoas cada vez mais distanciadas das coisas que ficam pelo caminho, como na indicativa cena da ponte, para trazer consequências bombásticas. À medida que expõe quem tem a missão de apontar culpados, registra-se um flagrante retrocesso de valores burlados dentro de uma engrenagem, para satisfazer caprichos de personagens com personalidades distorcidas, carregam o sentimento da culpa sem concessões de um drama pessoal sigiloso com revelações completas nas derradeiras sequências, numa sombria amostragem do céu escuro de nuvens negras com silhuetas, que remetem para as sementes germinando de uma maldade incontida, diante da forte influência da obra-prima de O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, através do carrinho escuro e o sacrifício como redenção.

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