Filhos Disputados
Thomas Vinterberg e Lars von Trier, em março de 1995,
lançaram um manifesto cinematográfico internacional denominado Dogma 95, um movimento estético,
exatamente no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação
de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como
objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial,
anterior à exploração industrial de Hollywood. Foi a mais inventiva escola,
depois da celebrizada Nouvelle Vague.
Susanne Bier era integrante do grupo rebelde da Dinamarca, mas aos poucos
desvencilha-se, como já o fizera no excelente drama Em
um Mundo Melhor (2010), ao ganhar o Oscar de filme
estrangeiro, por ter uma produção bem mais arrojada com um custo mais elevado,
longe dos princípios norteadores de cunho técnico restritivo ao uso de
tecnologias nas realizações cinematográficas.
Na mesma esteira do cultuado longa antecessor, Segunda Chance aborda duas famílias que
o destino fará que se cruzem por linhas tortas, ao questionar os limites da
ética confrontados com as normas da lei vigente, diante da ação de um policial
que leva para sua casa um recém-nascido pelos maus tratos dos pais drogados. O
investigador Andreas (Nikolaj Coster-Waldau) tem uma vida serena ao lado da esposa
(Maria Bonnevie) e do filho bebê. Em um dia qualquer de trabalho, seu cotidiano
é quebrado por um telefonema para intervir numa briga doméstica de um casal com
histórico de violência e viciados em drogas. Aciona o amigo e parceiro, o detetive
Simon (Ulrich Thomsen), para realizar a ação na residência em litígio, mas lá
descobrem algo com gravidade, uma criança em estado deplorável está presa num armário.
O protagonista perde o equilíbrio, manda o bom senso para bem longe com o que
vê, fica indignado com o tratamento desumano dos pais brigões, mas encontra
entraves na falha legislação que não permite a perda da guarda dos desajustados.
Bier é uma realizadora atenta que observa a dura realidade,
se debruça com elegância e eloquência na ideia da sobrevivência, ao conduzir
com um instigante clímax a narrativa da história, posicionando o defensor da
lei para o lado tido como infrator, quando este decide sequestrar o menor
maltratado, levando-o para a sua casa. As investigações começam a ser
realizadas sobre o paradeiro do desaparecido, enquanto isto tragédias pessoais
ocorrem no seio familiar de Andreas. Eis um primoroso filme policial de bom
suspense que faz um apanhado dos valores éticos corrompidos por força do
instinto de defesa do ser humano, onde a razão dá lugar para o sentimento das
emoções com vínculo de proteção da espécie, sobressaindo a infalível percepção
materna que não se engana. Afloram as vísceras expostas do ressentimento, na
qual as aparências enganam para levar a um desfecho sublime, mas com um com o
olhar de preocupação apontando para o preconceito das diferenças sociais.
Tudo é possível se consertar no enunciado explícito do
magnífico longa anterior, com consequências trágicas no final e também com a libertação
do personagem central, tal qual em Segunda Chance ,
um filme um pouco abaixo e menos corrosivo ao antecessor, mas superior às
mediocridades que pululam nos cinemas nos dias atuais. Um cinema distante da
grandiloquência, que procura nos pequenos gestos e imagens transmitir sinais de
conflitos não solucionados, dando evidências do caminho pelo amor para
conciliações nas intransigências refletidas das emoções obsessivas que levam
para a perda do equilíbrio, enraizados na filmografia arrebatadora da cineasta,
sempre voltada para as constantes questões sensíveis e humanas, assim como Assuntos de Família (1994), Corações Livres (2002), Depois do Casamento (2006) e Coisas que Perdemos pelo Caminho (2007).
Assiste-se paradoxalmente com prazer, dor e angústia ao mesmo
tempo, pois os contrapontos do roteiro são perturbadores e dão reviravoltas
plausíveis, ao refletir os problemas dos pais em consonância com os das
crianças no meio do estopim. Há mágoas devastadoras e virulentas, que se
encaixam na perda da razão pela loucura dos adultos em manter a prole a
qualquer custo, num painel com tintas fortes e objetivas da insensatez que
atordoa o absurdo das mentes perturbadas, sem deixar de cutucar com sutileza a
vingança. São disfarces de uma fragilidade reprimida para controlar a violência
das criaturas, interpretados por um elenco homogêneo que dá vida própria aos
personagens.
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