quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Mostra de Cinema São Paulo (Correndo Para o Céu)


Correndo Para o Céu

Vem do Quirguistão o perturbador e sensível drama familiar Correndo Para o Céu em exibição on-line  na 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Vencedor do Prêmio da Crítica do Festival Internacional de Busan, realizado anualmente em Haeundae-gu, Coreia do Sul, é um dos festivais de cinema mais significativos da Ásia. A direção é de Mirlan Abdykalykov, em seu segundo longa-metragem, que também assina o enxuto roteiro em parceria com Ernest Abdyjaparov. O jovem diretor de 38 anos teve experiência como ator no protagonismo de três filmes dirigidos pelo pai, Aktan Arym Kubat: The Swing (1993), O Filho Adotivo (1998, exibido na 22ª. Mostra de SP) e O Chimpanzé (2001, presente na 25ª. Mostra de SP). Tem em sua filmografia o curta-metragem Pencil Against Ants (2010), tendo estreado em longa com Nômade Celestial (2015, esteve na 39ª. Mostra).

A trama é uma realização instigante sobre a interação do núcleo familiar desconstruído para a contextualização com a vizinhança e seu cotidiano inerente. Explora as fraquezas sem limites do ser humano, o prazer pela aventura com as digressões amorosas pelos destemperos de uma mãe que foge e vai embora com outro companheiro, além do sofrimento cruel do marido, Erkin (Ruslan Orozakunov), que se lastima diante da separação e se entrega ao vício do alcoolismo sem controle. O trabalho de tratorista puxando um arado acoplado no campo para a plantação remete para uma economia em frangalhos. Já o sócio, um suposto amigo que nada mais é do que uma falsa e perigosa pessoa usurpadora das fragilidades com a bebida do viciado dependente. Rompe com o velho patriarca e a idosa genitora, que ainda tenta a reconciliação com eles. São situações colocadas em xeque para um olhar sem preconceito através da crise de valores dos respectivos papéis ora contaminados pelos descaminhos do destino.

O mote do enredo está na figura angelical do solitário garotinho de 12 anos Jekshen (Temirlan Asankadyrov), residente em um povoado encravado no belo cenário de montanhas, com lindas imagens do fotógrafo Talant Akynbekov, tem o apoio da namoradinha da escola e de alguns adultos da vizinhança. Ele é visto e celebrado por muitos daqueles homens e sua professora de educação física como um corredor excepcional. Eles o encorajam a participar da tradicional grande corrida, um certame que pode mudar sua vida para melhor, sendo o prêmio máximo um potro puro sangue estimado em três mil dólares. Uma disputa que lembra momentos tensos do cultuado filme Carruagens de Fogo (1981), de Hugh Hudson, sobre dois corredores: um filho de imigrantes judeus e o outro um protestante de origem escocesa, que defendem a Inglaterra nas Olimpíadas de 1924, que decidem competir para superar desafios pessoais.

O menino vive com o pai alcoólatra, jogado em qualquer lugar da casa dormindo ou na rua, raramente está lúcido, e um galo de estimação, um fiel escudeiro, que simboliza o lado pitoresco daquele lugarejo rural escondido do mundo, através de uma alegoria de coragem e perseverança da brava criança que sofre bullying dos coleguinhas na escola por não ter dinheiro para honrar com a mensalidade destinada para as despesas e manutenção do estabelecimento de ensino. Ouve gracejos de que o pai gasta tudo com bebida, por isto ele é inadimplente, inclusive com a anuência do áspero professor. A esperança de chegar ao estrelato começa numa primeira corrida, em que um menininho de tenra idade da região terá cortado os grilhões atados aos pés, uma simbólica láurea de estímulo e libertação como metáfora da vida e que faz parte do folclore do povoado através de um cerimonial. Os pesadelos à noite, o pai distante do esforço do filho e entregue à bebida, e o retorno da mãe que não o convence a ir embora com ela, irão dar contornos dramáticos bem equilibrados na narrativa verossímil do cineasta, que busca na andorinha solitária sobrevoando elementos de garra e persistência.

Uma obra que aborda de forma clara e inequívoca o vício, a traição, o bullying, a disputa e as contradições de uma aldeia que refletem uma sociedade em ruínas. Um falso universo de paz nas relações humanas civilizadas num contexto amargo pelas circunstâncias precárias, com poucas condições de dignidade para uma população humilde. Correndo Para o Céu tem um final inusitado após o término da grande corrida com a canção de ninar da mãe distante, por ser revelador de uma criança renegada e sofrida, tanto pelo abandono maternal como pelo pai e seus problemas existenciais num filme seco e direto sem grandes rodeios ou exercícios pirotécnicos. É contagiante na essência cinematográfica pelo simbolismo do descaso e a ausência de um vínculo mais afetivo na relação do microcosmo familiar diante dos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele lugarejo com seus costumes intrigantes de fatos que ocorrem e passam a fazer parte do dia a dia dos habitantes. O drama explicitado comove o espectador, perturba pela boa narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas diferenças que levam para um epílogo pouco comum a ser refletido.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Aos Olhos de Ernesto

Vidas Solitárias

A gaúcha Ana Luiza Azevedo estreou com o longa-metragem Antes Que o Mundo Acabe (2009), uma produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, onde a diretora foi fundadora. Obteve os prêmios de Melhor Direção de Ficção, Figurino, Trilha Sonora, Direção de Arte e Fotografia no II Festival de Paulínia, em 2009. Em uma trama aparentemente simples, embora houvesse complexidade, retratou as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram em suas vidas futuras. Havia similitude em seu conteúdo de questionamento da infância com outras belas obras, tais como: Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho e o magnífico As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky. Inspirou-se na disputa de uma garota pelos dois amigos que se apaixonam pela mesma mulher em Jules e Jim- Uma Mulher para Dois (1962), de François Truffaut. Tem em sua filmografia o curta Dona Cristina Perdeu a Memória (2002), tendo dividido a direção com Jorge Furtado no telefilme Doce Mãe (2012) e o badalado curta Barbosa (1988).

Dez anos depois, a cineasta está de volta com o comovente Aos Olhos de Ernesto, em que divide o roteiro com Furtado, sendo produzido novamente pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Foi lançado recentemente nas plataformas da Net Now, Oi Play, Vivo Play e Looke. Recebeu o prêmio da crítica na Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado e foi laureado pelo público no Festival de Punta del Este, no Uruguai. O drama acompanha o fotógrafo viúvo uruguaio radicado em Porto Alegre, de 78 anos, Ernesto (Jorge Bolani- de ótima atuação, o mesmo ator do cultuado filme uruguaio Whisky, de 2004), que está perdendo a visão por decorrência da idade, mas que tenta dissimular, achando que consegue enganar as pessoas mais próximas. Casualmente, aproxima-se da jovem 23 anos, Bia (Gabriela Poester- convincente no papel), uma cuidadora de cães que apanha do namorado usurpador, que lhe abrirá novos horizontes para o mundo, ao ler e escrever cartas do idoso para Lucía, um amor antigo de 65 anos de espera que acabou de enviuvar no seu país de origem. A improvável amizade dos dois terá uma relação fraternal que possibilitará uma impressionante capacidade de superar as dificuldades existentes no ancião. Uma temática contemporânea sempre latente e difícil de abordar em nossa sociedade atual de consumo com descarte dos mais velhos e a recepção dura para os mais jovens.

Ana Luiza coloca os traumas das perdas e dissabores do envelhecimento com muita sutileza e sensibilidade para uma profunda reflexão. O personagem central não é uma pessoa ressentida, pois tem no vizinho amigo, Javier (Jorge d’Elia), um bom suporte para continuar vivendo, diante das leituras do jornal impresso diariamente pela manhã, mesmo sendo incomodado pela fumaça do charuto. O filho Ramiro (Júlio Andrade) é um recém-separado que vai embora para dar continuidade em sua vida, mas presta ajuda financeira ao pai. A diarista está sempre atenta aos desmandos do patrão e, às vezes, se torna inconveniente pelo seu negativismo. Ele quer viver de forma independente porque tem em mente que ainda pode se divertir e comprar roupas para rejuvenescer, fazer novas amizades e deixar fluir sua paixão de outrora, o que nos remete para o romance O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, lançado em 1985, que depois foi levado para o cinema pelo diretor Mike Newell, em 2007, protagonizado Javier Bardem.

O ritmo cadenciado e suave da canção de Caetano Veloso remete para o epílogo das sonatas dos violoncelos de Bach, com imagens das ruas da Capital gaúcha, especialmente a Alberto Torres, onde mora o protagonista num apartamento escuro rodeado de livros e lembranças do passado. Há uma madura direção que demonstra controle sobre a narrativa e sobram méritos por não deixar cair em pieguismos ou exageros sentimentais pela eficiência da condução equilibrada dos diálogos ásperos ou ternos entre a jovem e o seu velho protetor que a trata como uma neta. As diferenças gigantescas de suas faixas etárias marcam as conversas e seus duelos de ideias distintas, entrecortadas pelo divertimento que encontram nas poucas saídas pelas ruas, como na manifestação em que Ernesto recita “Por que Cantamos”, do escritor conterrâneo Mario Benedetti, texto oriundo da época da ditadura militar. Existem alguns choques de gerações que se estabelecem quando o personagem central se nega a assistir o clássico Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, pelo celular; enquanto que a jovem acha estranho e impensável colocar na carta de Ernesto para a sua amada o termo “estimada”, bem como escrever na máquina manual de escrever em detrimento da caligrafia.

Eis um mergulho nos confrontos e adversidades da chamada ironicamente "melhor idade" e o espectro da solidão melancólica. A cineasta retrata com dignidade e até com algum otimismo a temática do envelhecimento, assim como já o fizera Daniel Burman em Dois Irmãos (2009), pelo afago final das águas do rio que servem de cenário para o domicílio daquelas idosas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar. Ou pela beleza estética de Laís Bodanzky no notável drama Chega de Saudade (2008), tendo como cenário um clube de São Paulo com suas diversas histórias numa noite de baile, aflorando as ilusões e desilusões, perdas e ganhos, amor e traição, para sintetizar tudo num imenso isolamento social. Ou pelo olhar de Marcos Bernstein no ótimo O Outro Lado da Rua (2004), refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos rumos. Ou ainda com GranTorino (2008), de Clint Eastwood, sobre as perdas hereditárias e os valores dos descendentes colocados em xeque de forma exuberante pelo herói de guerra decadente. Aos Olhos de Ernesto é um jogo de xadrez, metáfora bem utilizada nas partidas realizadas entre os personagens, e a importância pelas nuances das relações de amizade, fio condutor para o desfecho do processo de libertação das emoções e a vazão para o grande amor nunca esquecido pelo longínquo tempo, a ser reconciliado, neste magnífico drama existencial lírico e humano alicerçado com simplicidade sobre o angustiante tema universal da terceira idade.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mignonnes (Lindinhas)

 

Prematura Sexualização

A diretora e roteirista Maïmouna Doucouré, de 35 anos, tem muitos méritos no seu polêmico filme de estreia Mignonnes (Cuties no título em inglês; batizado no Brasil como Lindinhas). Pela temática abordada, afirmou ter recebido ameaças de morte e insere-se como uma promissora cineasta. O lançamento ocorreu em 10 de setembro e está tendo uma controvertida acolhida na plataforma de streaming da Netflix, que se envolveu gratuitamente numa celeuma motivada por um pôster supostamente sexualizado de meninas de 11 anos. Causou ira em uma parcela de assinantes, que entenderam ser um incentivo à pedofilia. O cartaz que anunciou a estreia mundial é bem diferente do usado na França, no qual as menininhas alegremente carregam sacolas de compras. Na divulgação da Netflix, o que elas vendem sugeriu manifestações controversas e induziram a equivocadas interpretações ao posarem com roupas supostamente sensuais, grudadas ao corpo, motivando uma campanha no Twitter para boicotar e até retirar o filme da plataforma. No dia 20 de agosto, houve a substituição do cartaz com pedido de desculpas.

O drama contemporâneo atualíssimo, baseado em fatos reais, mostra as publicações que se tornaram eficientes na internet voltadas para a maldade cibernética. A realizadora franco-senegalesa venceu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Sundance (Estados Unidos) e a obra está focada numa crítica à hipersexualização de meninas, diante da fase de transição que passa pela pré-adolescência e adolescência. Na realidade, é uma abordagem aprofundada em defesa da criança decorrente de fatos relevantes que aceleram a passagem pelas descobertas nas redes sociais e suas armadilhas encontradas facilmente nos celulares e os perigos que deles rondam. A trama gira em torno de Amy (Fathia Youssuf- impecável em seu papel), que mora com a mãe (Maïmouna Gueye), uma tia e dois irmãos menores num conjunto habitacional em um subúrbio da França. A protagonista é uma francesa de ascendência senegalesa, de 11 anos, que está emocionalmente abalada e chora embaixo de uma cama ao ver a mãe conflitada com o pai retornando do Senegal com outra mulher para se casar e morar com elas. Seus hormônios estão em ebulição e a sexualidade aflora precocemente com a primeira menstruação. Sofre rejeição de colegas no novo colégio por não saber dançar. A adaptação é difícil e as mudanças na vida familiar causam impactos relevantes.

A diretora coloca com habilidade elementos de discórdia no microcosmo da família, como na cena em que a mãe reserva um quarto da casa para o marido que está por chegar com a futura esposa. A menina ouve como consolo que “a água lava os pecados”, porque não admite o pai bígamo. A mãe, mesmo contrariada, aceita a situação atípica por motivos da religião que permitem a poligamia e o dever de obediência ao esposo. A tia acusa a protagonista de prostituta e de usar um vestuário fora dos patrões comportamentais. As situações conflitantes existentes são fatores que registram a hipocrisia suprema de uma sociedade tolerante por dogmas religiosos. Amy vê na dança a liberdade de expressão pela sua coreografia ousada e tem na vizinha Angelica (Médina El Aidi-Azouni) uma aliada que a estimula a participar do concurso pelo grupo de amigas que dá o título ao filme. É uma válvula de escape para afogar as mágoas e enfrentar o reinante conservadorismo advindo da religião islâmica seguida pelos imigrantes senegaleses. É um filme que não explora o corpo infantil, mas contextualiza a exploração num sentido amplo da mulher precocemente submissa. A cena da filha e da mãe vestidas para o segundo casamento do pai e marido é outro indicativo de resignação ao mundo masculino.

Mignonnes (Lindinhas) não é somente um filme ostensivamente antidogmático, mas uma realização que mergulha em um novo contexto para reescrever sem preconceitos e tabus pregados pelo falso moralismo. Indica um norte para um olhar atento da prematura sexualização como sintoma dos perigos disseminados que brotam das redes sociais. Soa como um alerta geral para pais interessados em resolver problemas e não fazer campanhas para proibir um filme que denuncia uma dolorosa realidade, como na instigante cena em que a personagem central aproveita por estar coberta com o véu durante um encontro religioso coletivo para ver clipes eróticos. Retrata a exposição potencializada de crianças no ambiente digital sem o acompanhamento dos pais, no qual há um território que estimula o exibicionismo excessivamente competitivo. A pré-adolescente se insurge pela cultura de liberdade irradiada da dança contra a permissividade religiosa concedida e principalmente pela opressão às mulheres. A pecha da suposta culpa não é das garotas dançarinas que nada mais fazem do que imitar as coreografias escancaradas ao público de vídeos musicais protagonizados por adultos.

Doucouré faz com veemência um exemplar libelo através de uma realização sem concessões da sexualização precipitada e uma “adultização” antecipada com caras e bocas erotizadas, decorrentes do palco em que se realiza o concurso promovido somente por pessoas adultas. O objetivo é de perturbar o espectador com uma proposta consistente para um alerta com horizontes amplos para afastar aquele olhar mirrado do conservadorismo predominante de nossos dias. A pior cegueira é aquela do tapar os olhos através de uma visão míope da proibição imposta. O redentor epílogo surpreende ao remeter a menina vitimada pelo contexto para um momento lúdico da criança alegre e inocente pulando cordas na rua como uma metáfora de libertação do estigma da falsa adulta perdida no palco. Um admirável drama intimista de denúncia com muito equilíbrio e humanismo carreados para um questionamento verossímil na turbulência das contradições que o universo feminino sofre e carrega, estando muitas vezes num isolamento de cobranças diárias sem limites e impostos pelo fechado espaço machista com reflexos no complexo núcleo familiar.