quarta-feira, 20 de março de 2019

Um Amor Inesperado



Síndrome do Ninho Vazio

A indústria cinematográfica da Argentina não é a mais recomendável no gênero comédias, tendo nos dramas seu forte, principalmente quando há conotações sociais ou abordagens sobre as relações humanas, os contrastes do amor e o existencialismo como temáticas aprofundadas e sem artificialismos limitadores. O longa-metragem Um Amor Inesperado não foge à regra da comédia de costumes, com ingredientes de romantismo em alta dosagem sobre as convivências amorosas e a perspectiva de um casal de meia-idade já sem o fogo da paixão. A perspectiva de conhecerem novas experiências poderia ser a combustão para dar o clique e acender a luz alta da separação sem grandes motivos aparentes. Eles resolvem dissolver o casamento de 25 anos quando estão literalmente sozinhos e passam a questionar se devem continuar juntos. A crise conjugal se estabelece logo após a partida do único filho para estudos na Espanha, na busca de conhecimentos para qual futuro profissional deseja seguir. Eles irão mergulhar em aventuras para satisfazerem fantasias e fetiches abafados pelo tempo de uma convivência pragmática.

Cria-se uma atmosfera pouco imaginativa para propiciar a satisfação de desejos em tom de drama conjugal em bonitos cenários, no qual os devaneios e indecisões vêm à tona e dialogam com o espectador durante o desenrolar da história. Diante da chamada “Síndrome do Ninho Vazio”, o foco será as dúvidas do marido e da esposa que, embora estejam aparentemente felizes por se darem muito bem, decidem buscar, em caminhos distintos, a velha chama apagada pelo tempo decorrente do abismo matrimonial tranquilo. Sem o apimentado desejo de outrora, tendo em vista o tédio reinante do trabalho, não conseguem escapar da tentação carnal dando asas à concepção inventiva exacerbada com o ingrediente corroído da rotina. Com direção e roteiro de Juan Vera, em seu filme estreia, depois de passar muitos anos escrevendo roteiros cômicos para cineastas conterrâneos, entre eles Diego Kaplan em 2 Mais 2 (2012) e Ariel Winograd em Mamãe Saiu de Férias (2017); também foi produtor dos renomados Pablo Trapero no drama Leonera (2008), Lucrécia Martel na saga histórica Zama (2017) e Juan Jose Campanella no comovente O Filho da Noiva (2001).

O neófito realizador reúne no elenco a dupla central inquestionável: Ricardo Darín e Mercedes Morán, em interpretações sem reparos e dignificantes nos papéis de Marcos e Ana. O relacionamento do casal, que acabará redundando em dois solitários solteiros no mercado, não era mais como antes, diante das dificuldades do gradual deterioramento. Acentua-se quando o único filho vai embora em busca de sua liberdade e eles estão numa festa de amigos, no embalo da trilha sonora com a canção Fogo e Paixão, do cantor brasileiro Wando, morto em 2012. Vera aborda a temática no início de sua obra com o mesmo viés do conterrâneo Daniel Burman, no ótimo drama Ninho Vazio (2008), em que os pais precisavam lidar com a saída de casa dos filhos. Ela resolve retornar à faculdade e à vida social intensa, enquanto que ele, um escritor renomado fica cada vez mais introspectivo, num contraste em que fará se estabelecer uma crise existencial com desdobramentos relevantes e doloridos. Porém, com o desenrolar da trama, Um Amor Inesperado descamba definitivamente para uma adocicada comédia romântica tradicional, com alguma ironia dos personagens centrais, ao melhor estilo portenho. Há nos diálogos sarcásticos sobre a nova vida com seus novos parceiros uma ponta de ciúme com amargura: “Vocês estão bem?”, pergunta Ana, no que responde Marcos: “Estáveis”, no que ela retruca: “Como o dólar”, numa alusão à crise financeira do país.

Há referência às redes sociais de namoro, especialmente o Tinder, em que pessoas solteiras buscam relacionamentos instantâneos, sem estabelecer vínculos afetivos, com troca de nomes verdadeiros por pseudônimos. Ao buscarem encontros fortuitos que irão redundar em decepções e frustrações, ambos terão grandes recaídas e as lembranças do passado retornam com mais força. O apartamento à venda e o inventário dos bens são motivos relevantes para que se encontrem, discutam e acabem alimentando um previsível retorno. Vera é um admirador do cinema americano voltado para o puro entretenimento, como afirma em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo: “Gostaria que esse fosse aquilo que os norte-americanos chamam de feel good. Um filme para tornar as pessoas felizes”. Mas o prazer sem amor é pouco explorado numa proposta rasa e simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo iminente da perda da companhia. Evidencia-se a ausência de uma construção sólida dos personagens, quando remete para uma solução conservadora e de cunho moralista, como se depreende do desfecho equivocado e afastado da criatividade enriquecedora do cinema na sua essência.

Um Amor Inesperado é uma realização que estava se desenrolando de forma aceitável até esboroar-se no epílogo. Faltou ao diretor mais aprofundamento qualitativo e menos ambição na bilheteria, que torna sua obra descartável para um espectador mais exigente, embora satisfaça um público que busca apenas uma retórica açucarada e vazia com o viés da moral e dos bons costumes. Afasta-se da elaboração de uma obra meritória que poderia contribuir para uma arte voltada para investigar as complexidades individuais num todo, com o intuito de agradar esta barulhenta parcela minoritária acostumada com futilidades de seriados e realizações televisivas. Deixa de abordar as conotações sobre a solidão pelas fragilidades humanas e suas fantasias, divorciando-se da sutileza e do bom alcance da sensibilidade, sem dissecar por uma lúcida reflexão os atritos das relações no cotidiano amoroso em toda sua extensão pelos vínculos afetivos decorrentes. Além de ignorar os descompassos que levam à procura do sentido do amor e seus princípios subjetivos, tropeça na natureza do prazer instintivo ludibriado. Eis uma comédia romântica com seu convencionalismo pela narrativa de cunho rasteiro pelo medo de perder a posse no fim de uma relação com margem para retrocessos. Mas o filme tem os estelares Ricardo Darín e Mercedes Morán como salvação de um naufrágio maior.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Cafarnaum



Filhos e Pais

Em coprodução com os EUA e a França, vem do Líbano o aceitável drama familiar Cafarnaum, representante deste país na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar de 2019. Este é o terceiro longa-metragem provocante de Nadine Labaki, onde também atua como a advogada do menino protagonista (embora em uma participação meteórica, dá para perceber sua beleza estonteante de grandes olhos verdes e cabelos negros compridos). Ela já havia encantado com a comédia dramática Caramelo (2007), filme de estreia atrás das câmeras sobre os problemas pessoais de cinco mulheres que tinham por referência seus trabalhos e encontros assíduos num salão de beleza, em um aconchegante bairro de Beirute, onde conversam francamente. No segundo longa-metragem, E Agora, Aonde Vamos? (2011), em que venceu o Prêmio do Público no Festival de Cinema de Toronto, abordou seu país devastado pelas constantes guerras como pano de fundo para a reconstrução, sob o abrigo do fanatismo religioso e os conflitos entre cristãos e muçulmanos que desencadeiam situações de beligerância frequente. Lá existia um grupo de mulheres numa aldeia isolada e perigosa que se uniram para pacificar os homens se matando como bestas humanas disfarçados de idiotas guerreiros.

Sempre com uma temática voltada para o Líbano, Labaki é a responsável pelo dinâmico roteiro escrito em parceria com Khaled Mouzanar neste seu terceiro longa-metragem, sobre os perigosos desatinos pelas rupturas dos laços que unem os respectivos membros familiares, além de mostrar os problemas de imigração e o descontrole da natalidade. A trama enfatiza o personagem central Zain (Zain Al Rafeea- de interpretação estupenda, carrega o drama quase que sozinho), um menino de doze anos que leva nos ombros uma gama de responsabilidades. Além de trabalhar numa mercearia, ele cuida de vários irmãos menores no deplorável cortiço em que convive com os pais sempre ausentes. O filme adquire um clímax de beligerância e tristeza, tão logo a irmã dele, uma garotinha de onze anos é vendida pelo pai em troca de algumas galinhas para um pequeno comerciante da região periférica de Beirute. Não há escolha, apesar de todos os esforços do irmão para salvá-la daquele crime brutal, ela é forçada a se casar com aquele asqueroso homem bem mais velho. O menino de temperamento forte e maturidade precoce para a idade não se conforma, esbraveja, explode de raiva, briga com os pais e abandona o núcleo familiar deteriorado pela miséria e da falta de dignidade mínima.

A cineasta libanesa retoma sutilmente a temática feminista, ao retratar a mãe que nada pode fazer para defender a filha menor, por ser totalmente submissa naquele lugar extremamente machista e com ausência de voz à mulher, numa cena comovente e arrebatadora sob o ponto de vista do olhar feminino, características marcantes da realizadora. Tema pelo qual foi enfatizado de maneira mais branda no primeiro ficcional Caramelo. Sem perder o foco do enredo, que é a fuga do garotinho e sua trajetória amarga pelas ruas junto aos refugiados com problemas de documentação e outras crianças que também sofrem, porém por outras contingências, como dos pais que são presos, ficam à mercê perambulando com fome numa caótica situação sem uma luz no futuro. O destino ainda irá colocar um bebê em seu caminho, em que o fará cuidar sozinho dele, tendo em vista o desaparecimento da mãe, uma imigrante ilegal da Etiópia. Na realização anterior, E Agora, Aonde Vamos?, a tragédia libanesa era vista de uma forma não menos cruel, com conflitos permanentes sobre a intolerância viciada dogmática como algo abjeto e inconsequente. Assim como no filme de estreia, as personagens flutuavam e lançavam as conversas sem preconceitos ou mentiras para um questionamento amargo, em que buscavam o sentido do cotidiano da vida num contexto dominado pelos homens.

O ritmo ágil e nervoso da câmera com alguns excessos no prólogo, a fotografia bem caracterizada com a aproximação da câmera nos rostos durante a grande maioria das cenas, fechando as imagens, retrata os espaços adequados e angustiantes da dor, da tristeza e do inconformismo pelo olhar das crianças em maioria na trama. Opta-se por planos curtos e entrelaçados, reforçando a dinâmica da narrativa. Embora haja algumas derrapadas para o melodrama piegas na fase inicial do drama, logo a diretora se recupera e conduz com boa imparcialidade, afastando os proselitismos que rondam. Segue uma linha narrativa que lembra pelas semelhanças, embora bem aquém e distante do genial François Truffaut na obra-prima Os Incompreendidos (1959) sobre as relações familiares de um menino expulso de casa e levado pelo padrasto até um Centro de Correção de Menores. Ou ainda do magnífico O Pequeno Nicolau (2009), de Laurent Tirard, sem esquecer o próprio Truffaut que viria mais tarde com outra obra-prima Na Idade da Inocência (1976). Já antes Ives Robert, com sua memorável comédia dramática explorou com acidez, através do longa Guerra dos Botões (1962), mas foi Jean Vigo que celebrizou a rebeldia com o extraordinário Zero de Conduta (1933), possivelmente o primeiro a tratar com toda a veemência a transgressão e a opressão infantil.

Cafarnaum tem no enredo as imigrações clandestinas sendo apresentadas como uma mazela do caos social de poucas soluções práticas. Um painel de personagens em estado de penúria para uma constatação de miséria, sem que haja algum representante da classe mais abastada neste universo composto de crianças famintas e abandonadas, onde os refugiados não escapam da polícia e são presos aos magotes, além de uma boa parcela de comerciantes traficarem de tudo, inclusive bebês, numa retórica que irá esbarrar na fronteira do maniqueísmo. Apesar de algumas irregularidades, não deixa de ser um drama apreciável pela sensibilidade em retratar a ausência do carinho nos diálogos reveladores, ou o amor esquecido, bem como a ternura minguada, em uma evidente crítica ao sistema e aos métodos machistas superados de uma sociedade. Vislumbram-se as maneiras pouco éticas pela falta de diálogos familiares como elementos básicos e frágeis apontados. É marcante a cena do filho no tribunal se defendendo pelo desatino praticado em nome da dignidade humana. Mas ele não perderá a oportunidade de fazer a denúncia que incriminará os pais pela falta de controle da natalidade. Um desfecho pouco convencional, com boas doses de pieguismos e manifestações positivas, que irão ao encontro dos anseios do espectador sedento por justiça social.

terça-feira, 12 de março de 2019

Raiva



A Vingança

O paulistano Sérgio Tréfaut faz carreira em Portugal, onde está há muitos anos. Foi ex-assistente de vários diretores lusitanos, estreou com o curta Alcibiades (1991), realizou os documentários Fleurette (2002), Lisboetas (2004) e A Cidade dos Mortos (2009), tendo no longa-metragem Viagem a Portugal (2011) a primeira experiência na ficção. Voltou para o gênero documental com Alentejo, Alentejo (2014), quando foi devidamente reconhecido internacionalmente ao retratar com dignidade dezenas de grupos amadores que se reuniam regularmente na região que dá nome ao filme, ao sul do Rio Tejo. Ali, ensaiavam antigos cantos polifônicos para improvisar modinhas contemporâneas, numa bela viagem musical por um modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes. Divulgou o “cante” que nasceu nas tabernas e nos campos, entre camponeses e mineiros, repassado ao longo de várias gerações como um criativo e real lamento choroso das canções. Nas últimas décadas, novos grupos apareceram na periferia de Lisboa e em diversos países para onde os alentejanos emigraram. Miguel Gomes realizou o excelente similar Aquele Querido Mês de Agosto (2008), com filmagens em Argamil, na região central, próximo de Coimbra.

Tréfaut retoma à ficção depois da única tentativa com Viagem a Portugal para construir este instigante drama familiar social Raiva, ambientado em 1950, nos remotos campos do Baixo Alentejo, no Sul do país português, pelas lentes de Acacio de Almeida na fascinante fotografia em preto e branco com contrastes no tom acinzentado. Inspirou-se no livro Seara do Vento, lançado em 1958, de autoria do escritor Manuel da Fonseca. O longa acompanha a saga de uma família extremamente pobre na área rural, no qual os campos estão maltratados pelos ventos e a seca, em uma desoladora miséria de fome e humilhação que assolam aquela comunidade em frangalhos. A violência brota pelos conflitos entre camponeses e os poderosos donos da terra. O prólogo, que já antecipa o epílogo e afasta a expectativa sobre o desfecho, é uma exposição arrebatadora com dois violentos assassinatos em apenas uma noite de brutal descarga emocional após uma grande injustiça social decorrente de outra inusitada morte.

O mistério que se espalha pelo lugarejo é quanto à origem do crime que toma conta daquele inóspito lugar de repressão. A vingança não é gratuita, logo o enredo começa a desenrolar o grande novelo do enigma. Diz o narrador: “nas terras mortas onde não há pão, os pobres nascem pobres e os ricos nascem ricos”, que até poderia ser um resumo da narrativa da proposta sobre o realismo cru desta trama arrebatadora. No centro da família patriarcal de camponeses, sem trabalho e sem alimentos, está Palma (Hugo Bentes), um homem taciturno e com boa autoestima, acaba por envolver-se em pequenos contrabandos para dar sustento à família. É um inconformado com as injustiças e as perseguições ali existentes, principalmente contra ele. Por isto anda sempre com uma espingarda para se defender, já sua mulher (Leonor Silveira) sofre com o filho deficiente físico e mental, além das incursões da filha (Catarina Wallenstein), uma ativista sindical em busca de condições melhores para a criação de trabalhos, diante dos infortúnios que se espalham pelos lares de desempregados em confronto aberto às oligarquias representativas do poder.

Uma obra que tem o mérito de obter algum lirismo, porém sem cair na armadilha melodramática, com harmonia de equilíbrio na difícil construção sem pieguismos baratos. Em ritmo de faroeste contido enfatiza as autoridades sendo manipuladas pelo ricaço e vilão da história, Reis (Diogo Dória), o pivô das desavenças com amplo domínio e influência na região pela sua posição socioeconômica abastada. Responsável pelo cerco ao protagonista contestador que irá deteriorar as relações e tornar iminente a luta de classes naquela região. Nos diálogos secos e diretos, com alguns rastros nos cânticos da trilha sonora, percebe-se o ardor com muita dor, ao falar das necessidades prementes para matar a fome e escapar da morte que se aproxima, sempre com as imagens pelos olhares perdidos no horizonte à procura de quimeras no universo. Manoel de Oliveira também fazia pequenas elucubrações pela cantoria folclórica como se vê no longa O Estranho Caso de Angélica (2010), em que a música era cantada em forma de fado pelo capataz para os lavradores num trabalho subalterno e arcaico. Determinados em aplainar as terras dos vinhedos com as foices para carpir e ceifar vidas, estampadas nas fotografias que emolduravam o painel, através do canto melódico e triste por uma melancolia prenunciando o instinto da partida definitiva. Tréfaut segue o mestre inspirador ao criar um clima hostil e pouco saudável, misturando o realismo com o imaginário, num exercício mental delicioso dos limites propostos da ficção para um tensionado e abrangente drama social.

O abutre destroçando o coelho e a tentativa de proteção do roedor pelo cunhado alcoólatra soa como uma antecipação alegórica da tragédia anunciada prestes a explodir. São sinalizações indicadas ao espectador numa linguagem quase que teatral para os grandes espaços ornamentados de raros objetos e móveis, exceto os pequenos tocos de madeira representando cadeiras e uma frigideira para elaboração das poucas refeições. Raiva é um filme preocupado com o povo que sofre com o desemprego torturante que reina naquela região em estado de penúria ultrajante. Num formato clássico e austero, ao melhor estilo de Manoel Oliveira, com planos fixos e simétricos, além de usar minimamente os recursos da trilha, com o intuito de não induzir na reflexão da plateia mais atenta e comprometida com o bom cinema, exceto em momentos propícios e pontuais da narrativa que focou na vingança. Há os questionamentos nas entrelinhas sobre as muitas terras improdutivas que poderiam dar o pão advindo do solo, ressaltado os cânticos tradicionais enaltecedores de uma situação caótica, através de uma crítica ao sistema de governo desumano implantado sem dar alternativas às crises recentes na Europa, embora o cenário seja dos anos de 1950, o tema é atual. Esta é uma realização de resultados plenamente satisfatórios e acima da média que contribui neste registro admirável sobre os descalabros sociais da história dos alentejanos. Capta as belas imagens e os poucos diálogos dos locais que giram em torno dos desmandos e das situações peculiares regionais lusitanas de um povo sofrido e injustiçado pelas paupérrimas condições de sobrevivência.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Yomeddine- Em Busca de um Lar



Preconceitos Arrasadores

Vem do Egito em coprodução com a Austrália e o EUA o fabuloso e perturbador drama Yomeddinne- Em Busca de um Lar, do roteirista e diretor estreante Abu Bakr Shawky. Foi o digno representante egípcio na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar deste ano. Um filme road movie com a dinâmica narrativa inspirada nos cineastas iranianos Abbas Kiarostami de Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999), bem como de Mohsen Makhmalbaf com o admirável A Caminho de Kandahar (2001), em que os detalhes são fundamentais de um realismo puro que reflete uma sociedade atrasada e completamente arcaica de pensamentos e comportamentos retrógrados. Eis um retrato cruel que persiste de uma doença degenerativa que ainda leva os familiares a internar em uma colônia as vítimas de hanseníase, mais conhecida no popular como lepra, uma doença infecciosa causada por uma bactéria chamada mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen.

A trama gira em torno de um homem pobre, Beshay (Rady Gamal- o ator foi portador da doença na infância, mas ficou curado), um catador de lixo que decide sair pela primeira vez do confinamento da colônia de leprosos de uma comunidade isolada onde foi abandonado quando criança, logo após o falecimento de sua esposa em um hospital. Já restabelecido da moléstia, abandona aquela comunidade de más lembranças para embarcar numa jornada pelo Egito, até sua cidade natal, à procura da família e saber o motivo pelo qual seu pai nunca cumpriu a promessa de voltar para buscá-lo. Irá na companhia de um jumento e do menino órfão Obama (Ahmed Abdelhafiz), um fiel escudeiro que faz de tudo para não ficar para trás sem seu grande amigo do lixão e companheiro de todas as horas, praticamente um pai adotivo. A dupla enfrentará os problemas existentes no mundo real e desconhecido, unidos pela amizade fraternal de dois seres excluídos pelo destino implacável. Ao longo da peregrinação há várias passagens, entre elas as supostas pirâmides milenares do Egito e seus encantos misteriosos. Mas o que mais incomoda mesmo o protagonista é o preconceito que se acentua por onde passa, ao ser hostilizado com deboches e grosserias que calam fundo naquele ser humano, que num grito de desabafo pedirá um mínimo de respeito e dignidade em uma cena comovedora.

O promissor Bakr Shawky retrata com sensibilidade a cena da morte, diante da indagação do garoto se haveria um julgamento final do jegue, com uma resposta simples e lacônica, porém profunda na reflexão de um homem humilde, ao afirmar que os animais vão direto para o paraíso, numa alusão de decepção, mágoa e pessimismo quanto aos compatriotas ditos humanos. Mas o reencontro com o pai e as revelações deste irão trazer novas luzes no que o fará repensar quanto à ideia de voltar às origens. O descalabro e a vergonha são fatores que permanecem incrustados naquela inusitada figura humana pelo físico deformado pelas circunstâncias de uma moléstia aniquiladora. Restam marcas indeléveis pelo corpo mutilado de uma doença terrível, com seus efeitos nefastos e devastadores, resultantes de uma reflexão pontual, faz com que as cenas que desfilam tenham o caráter da dor daquela criatura humilhada sem piedade.

Yomeddinne- Em Busca de um Lar não faz concessões e aponta com clarividência a pessoa atingida pelo mal que o estigmatizará como a própria morte em vida decretada pela sociedade ou pelos ancestrais da família da vítima. Um filme doloroso, mas com uma realização sensível, sutil e profunda sobre os efeitos do preconceito e a degradação imposta ao doente, exceto pelos demais excluídos. É alentadora a bela cena em que os mendigos deixam aflorar seus sentimentos humanitários e revelam as causas relevantes que os levaram às ruas para sobreviverem de esmolas e ajudas espontâneas. Um drama com efeitos sociais que impacta pela abundante falta de solidariedade no geral mesclada com o riso debochado e arrogante, através de atitudes deploráveis a pessoas realmente vitimizadas pelo infortúnio do destino. Eis um relato cru e fascinante de uma manifestação pelo cinema que rasga o coração, abala a alma e revela o caráter dizimante de uma casta de pessoas com medo de ser contagiada, importando-se muito pouco com os doentes próximos. Além da paupérrima vida do protagonista, tem ainda que conviver com a segregação devido à lepra da infância curada. Um filme magnífico e chocante, digno e eloquente pela sua grandeza de abordar e retirar o véu de um tabu ainda enraizado no seio de uma sociedade preconceituosa de um tema universal.

Dogman



Irracionalidade Humana

O filme Dogman tem como destaque o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes do ano passado para Marcello Fonte, ao ser o protagonista também batizado de Marcello, em uma atuação antológica. Ele é o filme, embora o bom elenco seja coeso. É a volta do respeitado diretor italiano Matteo Garrone, que se consagrou internacionalmente com o inesquecível Gomorra (2008), vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2008. Baseado em reportagens que acabaram na publicação de um livro de Roberto Saviano, o diretor construiu um poderoso e contundente longa-metragem sobre os meandros que levaram à violência e à corrupção promovidas pela temida máfia de Nápoles, através de um relato brutal e perturbador, de uma das mais lucrativas fontes de renda da Itália. Mostrou como o crime organizado consegue se infiltrar em todos os aspectos na vida de uma cidade e espalhar o pânico pelo medo. Pungente, destruidor e acachapante foram os adjetivos elogiosos mais brandos para aclamar o destemido realizador, pela sua coragem, sua audácia, e uma garra ímpar ao expor com realismo as mazelas de uma sociedade deformada e acostumada com os banhos de sangue num cotidiano de drogas e seu comércio ilegal, porém sempre presente.

Esta última realização de Garrone é espetacular ao mostrar um cineasta ainda mais maduro e imparcial na concepção de uma trama aparentemente simples, foi o responsável pelo roteiro em parceria com Ugo Chiti e Massimo Gaudioso, mas que no desenrolar se mostra profunda, poética, dolorosa, sentimental e aponta para os relacionamentos éticos e a repulsa aos antiéticos, ainda que dentro da criminalidade. Vai da racionalidade à irracionalidade de um homem simplório, de sorriso fácil, ombros caídos pela introspecção, sendo cercado de cães em seu pet shop num lugarejo abandonado, sujo e corroído de uma periferia não identificada, muito bem reforçada pela fotografia em tom frio acinzentado. Lá, ele cuida das unhas dos animais, lava e seca seus pelos com um secador canino, serve ração, trata todos com imenso carinho e dedicação. Além disso, é um pai amoroso à filha menor com quem pratica mergulhos contemplativos na cidade litorânea de Castel Voturno, na região da Campânia. Uma figura estimada pelos vizinhos com quem joga futebol num modesto campinho próximo ao seu trabalho, e harmonicamente convive com ternura tanto com marginais e trabalhadores, até envolver-se com o ex-boxeador Simone (Edoardo Pesce), um brutamonte viciado em cocaína que age por instinto e resolve tudo na base do soco na cara e pé na porta de quem atravessa seu caminho. Um legítimo brucutu, odiado e temido pela vizinhança, espanca e pode matar sem ter um pingo de remorso ou alguma piedade. Marcello é evolvido num ardiloso plano de roubo, que por medo ou por não ter capacidade de dizer não, acaba por participar e entra para o mundo do crime, embora já estivesse vendendo pequenas porções de drogas em seu estabelecimento comercial.

A prisão e a condenação que o levam para a cadeia são ingredientes que fazem do protagonista um homem transformado num verdadeiro animal irracional, que perde a lucidez dos misericordiosos por contingência do tempo em que ficou enclausurado. Dominado por um sentimento de vingança incontrolável, ele decidiu torturar, durante horas, seu desafeto, até então um amigo de todas as horas, mas que atormenta todos os moradores daquela comunidade, e que levou o personagem principal para o precipício. Baseado em um fato real policial dos anos de 1980, depois de 12 anos lapidado pela produção, Garrone conduz o enredo, atenuando de certa maneira a brutalidade explícita encontrada na realização anterior, deixando fluir a tortura psicológica que remeterá para um dos piores crimes registrados na história da Itália. Aquele homem bonachão de atitudes convencionais, mas que tem por característica a desenvoltura com cães de todos os tipos e tamanhos, incluindo os maiores e mais ferozes, irá se revelar numa fera humana para explodir numa purgação de sentimentos raivosos, rancor e vingança. Porém, o animal mais bruto que precisa domar é seu comparsa de poucos recursos de inteligência que será submetido em uma encenação de um duro realismo social pela experiência agonizante de perversão impactante induzida por ele mesmo, com reflexos devastadores para um desfecho inusitado de devaneios por alucinações sombrias pela alteração de humor com a perda parcial de um mínimo de consciência lúcida. É a simbolização da psicopatologia que provocará um comportamento impulsivo numa iminente deterioração comportamental advindas de rastros de ódio para resultados pouco convencionais pela fragilidade da paz confrontada com a esperança de uma solução pragmática de uma iminente sociedade em ruínas. Neste diapasão, Garrone aproxima a câmera aos rostos para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as angústias dilacerantes que brotam e se espalham pelos olhares desnorteados dos personagens.

Dogman tem um contexto narrativo exemplar e fundamental para criar um clímax de horror psicológico pela barbárie, que torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do cinema propriamente dito, em que os velhos amigos da vizinhança, a filha, e o espectador, todos chocados com as circunstâncias, serão surpreendidos no epílogo que resgatará a dignidade ultrajada pela humilhação inominável de um homem puro, no qual os efeitos catárticos de libertação irão ao encontro da contemplação reveladora com a chegada do anti-herói com seu troféu emblemático, ao melhor estilo dos velhos westerns. Uma realização com amplitude maior pela sutileza da abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade cruel e selvagem. É bem construída pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar no desenlace estampado sem heroísmo, mas pela transformação que traz reflexos nas mudanças comportamentais de um ser humano sensível, romântico, vilipendiado e em mutação. O carismático personagem fragilizado é alegoricamente um representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para tornar-se uma fortaleza de uma sociedade degradada pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. Eis uma magnífica reflexão sobre a estupidez humana até a irracionalidade bestial neste drama imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase neste painel arrebatador, que se insere na listagem dos dez melhores de 2019.