Irracionalidade
Humana
O filme Dogman tem como destaque o prêmio de melhor ator no Festival de
Cannes do ano passado para Marcello Fonte, ao ser o protagonista também batizado
de Marcello, em uma atuação
antológica. Ele é o filme, embora o bom elenco seja coeso. É a volta do respeitado
diretor italiano Matteo Garrone, que se consagrou internacionalmente com o inesquecível
Gomorra (2008), vencedor do Grande
Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2008. Baseado em reportagens que acabaram
na publicação de um livro de Roberto Saviano, o diretor construiu um poderoso e
contundente longa-metragem sobre os meandros que levaram à violência e à
corrupção promovidas pela temida máfia de Nápoles, através de um relato brutal
e perturbador, de uma das mais lucrativas fontes de renda da Itália. Mostrou
como o crime organizado consegue se infiltrar em todos os aspectos na vida de
uma cidade e espalhar o pânico pelo medo. Pungente, destruidor e acachapante
foram os adjetivos elogiosos mais brandos para aclamar o destemido realizador,
pela sua coragem, sua audácia, e uma garra ímpar ao expor com realismo as
mazelas de uma sociedade deformada e acostumada com os banhos de sangue num cotidiano
de drogas e seu comércio ilegal, porém sempre presente.
Esta última realização de Garrone é espetacular ao mostrar
um cineasta ainda mais maduro e imparcial na concepção de uma trama aparentemente
simples, foi o responsável pelo roteiro em parceria com Ugo Chiti e Massimo
Gaudioso, mas que no desenrolar se mostra profunda, poética, dolorosa,
sentimental e aponta para os relacionamentos éticos e a repulsa aos antiéticos,
ainda que dentro da criminalidade. Vai da racionalidade à irracionalidade de um
homem simplório, de sorriso fácil, ombros caídos pela introspecção, sendo
cercado de cães em seu pet shop num lugarejo abandonado, sujo e corroído de uma
periferia não identificada, muito bem reforçada pela fotografia em tom frio
acinzentado. Lá, ele cuida das unhas dos animais, lava e seca seus pelos com um
secador canino, serve ração, trata todos com imenso carinho e dedicação. Além
disso, é um pai amoroso à filha menor com quem pratica mergulhos contemplativos
na cidade litorânea de Castel Voturno, na região da Campânia. Uma figura estimada
pelos vizinhos com quem joga futebol num modesto campinho próximo ao seu
trabalho, e harmonicamente convive com ternura tanto com marginais e trabalhadores,
até envolver-se com o ex-boxeador Simone (Edoardo Pesce), um brutamonte viciado
em cocaína que age por instinto e resolve tudo na base do soco na cara e pé na
porta de quem atravessa seu caminho. Um legítimo brucutu, odiado e temido pela
vizinhança, espanca e pode matar sem ter um pingo de remorso ou alguma piedade.
Marcello é evolvido num ardiloso plano de roubo, que por medo ou por não ter capacidade
de dizer não, acaba por participar e entra para o mundo do crime, embora já estivesse
vendendo pequenas porções de drogas em seu estabelecimento comercial.
A prisão e a condenação que o levam para a cadeia são
ingredientes que fazem do protagonista um homem transformado num verdadeiro
animal irracional, que perde a lucidez dos misericordiosos por contingência do
tempo em que ficou enclausurado. Dominado por um sentimento de vingança
incontrolável, ele decidiu torturar, durante horas, seu desafeto, até então um
amigo de todas as horas, mas que atormenta todos os moradores daquela
comunidade, e que levou o personagem principal para o precipício. Baseado em um
fato real policial dos anos de 1980, depois de 12 anos lapidado pela produção, Garrone
conduz o enredo, atenuando de certa maneira a brutalidade explícita encontrada
na realização anterior, deixando fluir a tortura psicológica que remeterá para
um dos piores crimes registrados na história da Itália. Aquele homem bonachão
de atitudes convencionais, mas que tem por característica a desenvoltura com cães
de todos os tipos e tamanhos, incluindo os maiores e mais ferozes, irá se
revelar numa fera humana para explodir numa purgação de sentimentos raivosos,
rancor e vingança. Porém, o animal mais bruto que precisa domar é seu comparsa
de poucos recursos de inteligência que será submetido em uma encenação de um
duro realismo social pela experiência agonizante de perversão impactante
induzida por ele mesmo, com reflexos devastadores para um desfecho inusitado de
devaneios por alucinações sombrias pela alteração de humor com a perda parcial
de um mínimo de consciência lúcida. É a simbolização da psicopatologia que
provocará um comportamento impulsivo numa iminente deterioração comportamental
advindas de rastros de ódio para resultados pouco convencionais pela
fragilidade da paz confrontada com a esperança de uma solução pragmática de uma
iminente sociedade em ruínas. Neste diapasão, Garrone aproxima a câmera aos
rostos para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as
angústias dilacerantes que brotam e se espalham pelos olhares desnorteados dos
personagens.
Dogman tem um
contexto narrativo exemplar e fundamental para criar um clímax de horror psicológico
pela barbárie, que torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do
cinema propriamente dito, em que os velhos amigos da vizinhança, a filha, e o
espectador, todos chocados com as circunstâncias, serão surpreendidos no epílogo
que resgatará a dignidade ultrajada pela humilhação inominável de um homem
puro, no qual os efeitos catárticos de libertação irão ao encontro da
contemplação reveladora com a chegada do anti-herói com seu troféu emblemático,
ao melhor estilo dos velhos westerns. Uma realização com amplitude maior pela sutileza
da abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura
social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre a perda do
controle como elementos opressores retratados de uma realidade cruel e selvagem.
É bem construída pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar
no desenlace estampado sem heroísmo, mas pela transformação que traz reflexos
nas mudanças comportamentais de um ser humano sensível, romântico, vilipendiado
e em mutação. O carismático personagem fragilizado é alegoricamente um
representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para
tornar-se uma fortaleza de uma sociedade degradada pelos desdobramentos que
transbordam da civilidade. Eis uma magnífica reflexão sobre a estupidez humana
até a irracionalidade bestial neste drama imperdível para quem aprecia
singularidades com ênfase neste painel arrebatador, que se insere na listagem
dos dez melhores de 2019.
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