segunda-feira, 11 de março de 2019

Dogman



Irracionalidade Humana

O filme Dogman tem como destaque o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes do ano passado para Marcello Fonte, ao ser o protagonista também batizado de Marcello, em uma atuação antológica. Ele é o filme, embora o bom elenco seja coeso. É a volta do respeitado diretor italiano Matteo Garrone, que se consagrou internacionalmente com o inesquecível Gomorra (2008), vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2008. Baseado em reportagens que acabaram na publicação de um livro de Roberto Saviano, o diretor construiu um poderoso e contundente longa-metragem sobre os meandros que levaram à violência e à corrupção promovidas pela temida máfia de Nápoles, através de um relato brutal e perturbador, de uma das mais lucrativas fontes de renda da Itália. Mostrou como o crime organizado consegue se infiltrar em todos os aspectos na vida de uma cidade e espalhar o pânico pelo medo. Pungente, destruidor e acachapante foram os adjetivos elogiosos mais brandos para aclamar o destemido realizador, pela sua coragem, sua audácia, e uma garra ímpar ao expor com realismo as mazelas de uma sociedade deformada e acostumada com os banhos de sangue num cotidiano de drogas e seu comércio ilegal, porém sempre presente.

Esta última realização de Garrone é espetacular ao mostrar um cineasta ainda mais maduro e imparcial na concepção de uma trama aparentemente simples, foi o responsável pelo roteiro em parceria com Ugo Chiti e Massimo Gaudioso, mas que no desenrolar se mostra profunda, poética, dolorosa, sentimental e aponta para os relacionamentos éticos e a repulsa aos antiéticos, ainda que dentro da criminalidade. Vai da racionalidade à irracionalidade de um homem simplório, de sorriso fácil, ombros caídos pela introspecção, sendo cercado de cães em seu pet shop num lugarejo abandonado, sujo e corroído de uma periferia não identificada, muito bem reforçada pela fotografia em tom frio acinzentado. Lá, ele cuida das unhas dos animais, lava e seca seus pelos com um secador canino, serve ração, trata todos com imenso carinho e dedicação. Além disso, é um pai amoroso à filha menor com quem pratica mergulhos contemplativos na cidade litorânea de Castel Voturno, na região da Campânia. Uma figura estimada pelos vizinhos com quem joga futebol num modesto campinho próximo ao seu trabalho, e harmonicamente convive com ternura tanto com marginais e trabalhadores, até envolver-se com o ex-boxeador Simone (Edoardo Pesce), um brutamonte viciado em cocaína que age por instinto e resolve tudo na base do soco na cara e pé na porta de quem atravessa seu caminho. Um legítimo brucutu, odiado e temido pela vizinhança, espanca e pode matar sem ter um pingo de remorso ou alguma piedade. Marcello é evolvido num ardiloso plano de roubo, que por medo ou por não ter capacidade de dizer não, acaba por participar e entra para o mundo do crime, embora já estivesse vendendo pequenas porções de drogas em seu estabelecimento comercial.

A prisão e a condenação que o levam para a cadeia são ingredientes que fazem do protagonista um homem transformado num verdadeiro animal irracional, que perde a lucidez dos misericordiosos por contingência do tempo em que ficou enclausurado. Dominado por um sentimento de vingança incontrolável, ele decidiu torturar, durante horas, seu desafeto, até então um amigo de todas as horas, mas que atormenta todos os moradores daquela comunidade, e que levou o personagem principal para o precipício. Baseado em um fato real policial dos anos de 1980, depois de 12 anos lapidado pela produção, Garrone conduz o enredo, atenuando de certa maneira a brutalidade explícita encontrada na realização anterior, deixando fluir a tortura psicológica que remeterá para um dos piores crimes registrados na história da Itália. Aquele homem bonachão de atitudes convencionais, mas que tem por característica a desenvoltura com cães de todos os tipos e tamanhos, incluindo os maiores e mais ferozes, irá se revelar numa fera humana para explodir numa purgação de sentimentos raivosos, rancor e vingança. Porém, o animal mais bruto que precisa domar é seu comparsa de poucos recursos de inteligência que será submetido em uma encenação de um duro realismo social pela experiência agonizante de perversão impactante induzida por ele mesmo, com reflexos devastadores para um desfecho inusitado de devaneios por alucinações sombrias pela alteração de humor com a perda parcial de um mínimo de consciência lúcida. É a simbolização da psicopatologia que provocará um comportamento impulsivo numa iminente deterioração comportamental advindas de rastros de ódio para resultados pouco convencionais pela fragilidade da paz confrontada com a esperança de uma solução pragmática de uma iminente sociedade em ruínas. Neste diapasão, Garrone aproxima a câmera aos rostos para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as angústias dilacerantes que brotam e se espalham pelos olhares desnorteados dos personagens.

Dogman tem um contexto narrativo exemplar e fundamental para criar um clímax de horror psicológico pela barbárie, que torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do cinema propriamente dito, em que os velhos amigos da vizinhança, a filha, e o espectador, todos chocados com as circunstâncias, serão surpreendidos no epílogo que resgatará a dignidade ultrajada pela humilhação inominável de um homem puro, no qual os efeitos catárticos de libertação irão ao encontro da contemplação reveladora com a chegada do anti-herói com seu troféu emblemático, ao melhor estilo dos velhos westerns. Uma realização com amplitude maior pela sutileza da abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade cruel e selvagem. É bem construída pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar no desenlace estampado sem heroísmo, mas pela transformação que traz reflexos nas mudanças comportamentais de um ser humano sensível, romântico, vilipendiado e em mutação. O carismático personagem fragilizado é alegoricamente um representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para tornar-se uma fortaleza de uma sociedade degradada pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. Eis uma magnífica reflexão sobre a estupidez humana até a irracionalidade bestial neste drama imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase neste painel arrebatador, que se insere na listagem dos dez melhores de 2019.

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