segunda-feira, 11 de março de 2019

Yomeddine- Em Busca de um Lar



Preconceitos Arrasadores

Vem do Egito em coprodução com a Austrália e o EUA o fabuloso e perturbador drama Yomeddinne- Em Busca de um Lar, do roteirista e diretor estreante Abu Bakr Shawky. Foi o digno representante egípcio na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar deste ano. Um filme road movie com a dinâmica narrativa inspirada nos cineastas iranianos Abbas Kiarostami de Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999), bem como de Mohsen Makhmalbaf com o admirável A Caminho de Kandahar (2001), em que os detalhes são fundamentais de um realismo puro que reflete uma sociedade atrasada e completamente arcaica de pensamentos e comportamentos retrógrados. Eis um retrato cruel que persiste de uma doença degenerativa que ainda leva os familiares a internar em uma colônia as vítimas de hanseníase, mais conhecida no popular como lepra, uma doença infecciosa causada por uma bactéria chamada mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen.

A trama gira em torno de um homem pobre, Beshay (Rady Gamal- o ator foi portador da doença na infância, mas ficou curado), um catador de lixo que decide sair pela primeira vez do confinamento da colônia de leprosos de uma comunidade isolada onde foi abandonado quando criança, logo após o falecimento de sua esposa em um hospital. Já restabelecido da moléstia, abandona aquela comunidade de más lembranças para embarcar numa jornada pelo Egito, até sua cidade natal, à procura da família e saber o motivo pelo qual seu pai nunca cumpriu a promessa de voltar para buscá-lo. Irá na companhia de um jumento e do menino órfão Obama (Ahmed Abdelhafiz), um fiel escudeiro que faz de tudo para não ficar para trás sem seu grande amigo do lixão e companheiro de todas as horas, praticamente um pai adotivo. A dupla enfrentará os problemas existentes no mundo real e desconhecido, unidos pela amizade fraternal de dois seres excluídos pelo destino implacável. Ao longo da peregrinação há várias passagens, entre elas as supostas pirâmides milenares do Egito e seus encantos misteriosos. Mas o que mais incomoda mesmo o protagonista é o preconceito que se acentua por onde passa, ao ser hostilizado com deboches e grosserias que calam fundo naquele ser humano, que num grito de desabafo pedirá um mínimo de respeito e dignidade em uma cena comovedora.

O promissor Bakr Shawky retrata com sensibilidade a cena da morte, diante da indagação do garoto se haveria um julgamento final do jegue, com uma resposta simples e lacônica, porém profunda na reflexão de um homem humilde, ao afirmar que os animais vão direto para o paraíso, numa alusão de decepção, mágoa e pessimismo quanto aos compatriotas ditos humanos. Mas o reencontro com o pai e as revelações deste irão trazer novas luzes no que o fará repensar quanto à ideia de voltar às origens. O descalabro e a vergonha são fatores que permanecem incrustados naquela inusitada figura humana pelo físico deformado pelas circunstâncias de uma moléstia aniquiladora. Restam marcas indeléveis pelo corpo mutilado de uma doença terrível, com seus efeitos nefastos e devastadores, resultantes de uma reflexão pontual, faz com que as cenas que desfilam tenham o caráter da dor daquela criatura humilhada sem piedade.

Yomeddinne- Em Busca de um Lar não faz concessões e aponta com clarividência a pessoa atingida pelo mal que o estigmatizará como a própria morte em vida decretada pela sociedade ou pelos ancestrais da família da vítima. Um filme doloroso, mas com uma realização sensível, sutil e profunda sobre os efeitos do preconceito e a degradação imposta ao doente, exceto pelos demais excluídos. É alentadora a bela cena em que os mendigos deixam aflorar seus sentimentos humanitários e revelam as causas relevantes que os levaram às ruas para sobreviverem de esmolas e ajudas espontâneas. Um drama com efeitos sociais que impacta pela abundante falta de solidariedade no geral mesclada com o riso debochado e arrogante, através de atitudes deploráveis a pessoas realmente vitimizadas pelo infortúnio do destino. Eis um relato cru e fascinante de uma manifestação pelo cinema que rasga o coração, abala a alma e revela o caráter dizimante de uma casta de pessoas com medo de ser contagiada, importando-se muito pouco com os doentes próximos. Além da paupérrima vida do protagonista, tem ainda que conviver com a segregação devido à lepra da infância curada. Um filme magnífico e chocante, digno e eloquente pela sua grandeza de abordar e retirar o véu de um tabu ainda enraizado no seio de uma sociedade preconceituosa de um tema universal.

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