Preconceitos Arrasadores
Vem do Egito em coprodução com a Austrália e o EUA o
fabuloso e perturbador drama Yomeddinne-
Em Busca de um Lar, do roteirista e diretor estreante Abu Bakr Shawky. Foi
o digno representante egípcio na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar
deste ano. Um filme road movie com a
dinâmica narrativa inspirada nos cineastas iranianos Abbas Kiarostami de Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a
obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999), bem como de
Mohsen Makhmalbaf com o admirável A
Caminho de Kandahar (2001), em que os detalhes são fundamentais de um
realismo puro que reflete uma sociedade atrasada e completamente arcaica de
pensamentos e comportamentos retrógrados. Eis um retrato cruel que persiste de
uma doença degenerativa que ainda leva os familiares a internar em uma colônia
as vítimas de hanseníase, mais conhecida no popular como lepra, uma doença
infecciosa causada por uma bactéria chamada mycobacterium
leprae ou bacilo de Hansen.
A trama gira em torno de um homem pobre, Beshay (Rady Gamal-
o ator foi portador da doença na infância, mas ficou curado), um catador de
lixo que decide sair pela primeira vez do confinamento da colônia de leprosos de
uma comunidade isolada onde foi abandonado quando criança, logo após o
falecimento de sua esposa em um hospital. Já restabelecido da moléstia, abandona
aquela comunidade de más lembranças para embarcar numa jornada pelo Egito, até
sua cidade natal, à procura da família e saber o motivo pelo qual seu pai nunca
cumpriu a promessa de voltar para buscá-lo. Irá na companhia de um jumento e do
menino órfão Obama (Ahmed Abdelhafiz), um fiel escudeiro que faz de tudo para
não ficar para trás sem seu grande amigo do lixão e companheiro de todas as
horas, praticamente um pai adotivo. A dupla enfrentará os problemas existentes
no mundo real e desconhecido, unidos pela amizade fraternal de dois seres
excluídos pelo destino implacável. Ao longo da peregrinação há
várias passagens, entre elas as supostas pirâmides milenares do Egito e seus
encantos misteriosos. Mas o que mais incomoda mesmo o protagonista é o
preconceito que se acentua por onde passa, ao ser hostilizado com deboches e
grosserias que calam fundo naquele ser humano, que num grito de desabafo pedirá
um mínimo de respeito e dignidade em uma cena comovedora.
O promissor Bakr Shawky retrata com sensibilidade a cena da
morte, diante da indagação do garoto se haveria um julgamento final do jegue,
com uma resposta simples e lacônica, porém profunda na reflexão de um homem
humilde, ao afirmar que os animais vão direto para o paraíso, numa alusão de
decepção, mágoa e pessimismo quanto aos compatriotas ditos humanos. Mas o
reencontro com o pai e as revelações deste irão trazer novas luzes no que o fará
repensar quanto à ideia de voltar às origens. O descalabro e a vergonha são
fatores que permanecem incrustados naquela inusitada figura humana pelo físico
deformado pelas circunstâncias de uma moléstia aniquiladora. Restam marcas
indeléveis pelo corpo mutilado de uma doença terrível, com seus efeitos
nefastos e devastadores, resultantes de uma reflexão pontual, faz com que as
cenas que desfilam tenham o caráter da dor daquela criatura humilhada sem
piedade.
Yomeddinne- Em Busca
de um Lar não faz concessões e aponta com clarividência a pessoa atingida
pelo mal que o estigmatizará como a própria morte em vida decretada pela
sociedade ou pelos ancestrais da família da vítima. Um filme doloroso, mas com
uma realização sensível, sutil e profunda sobre os efeitos do preconceito e a
degradação imposta ao doente, exceto pelos demais excluídos. É alentadora a
bela cena em que os mendigos deixam aflorar seus sentimentos humanitários e
revelam as causas relevantes que os levaram às ruas para sobreviverem de
esmolas e ajudas espontâneas. Um drama com efeitos sociais que impacta
pela abundante falta de solidariedade no geral mesclada com o riso debochado e
arrogante, através de atitudes deploráveis a pessoas realmente vitimizadas pelo
infortúnio do destino. Eis um relato cru e fascinante de uma manifestação pelo
cinema que rasga o coração, abala a alma e revela o caráter dizimante de uma
casta de pessoas com medo de ser contagiada, importando-se muito pouco com os
doentes próximos. Além da paupérrima vida do protagonista, tem ainda que
conviver com a segregação devido à lepra da infância curada. Um filme magnífico
e chocante, digno e eloquente pela sua grandeza de abordar e retirar o véu de
um tabu ainda enraizado no seio de uma sociedade preconceituosa de um tema universal.
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