Ascensão de uma Estrela
Meu Nome é Gal se
justifica como uma das melhores realizações que estrearam neste ano em que o
cinema brasileiro atinge o ápice meritório de obras indiscutíveis. Fica ao lado
de outros dois excelentes documentários indicados ao Oscar de 2024: Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você
(2022), de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay e Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho. Eis uma
cinebiografia extraordinária sobre a ascendência aos píncaros da glória de Maria
da Graça Penna Burgos Costa, ou Gracinha como era chamada pela mãe protetora,
que virou a grande estrela Gal Costa (26/09/1945 - 09/11/2022). A protagonista acanhada
é desnudada desde sua chegada ao Rio de Janeiro no início dos anos de 1960,
oriunda de Salvador (BA), e está longe de ser uma obra chapa branca. Retrata a
mutação da tímida jovem cantora que a transformaram tanto esteticamente como
sua participação, embora discreta, na efervescência da política brasileira sob
o regime ditatorial do golpe de 1964, na promulgação do AI-5 e as prisões por atacado
de quem contestava o estado de exceção instaurado no Brasil. Sentiu na pele e
passou por um período de depressão, pois sofreu muito com os exílios em Londres
de seus melhores amigos e incentivadores Gilberto Gil (Dan Ferreira), Caetano
Veloso (Rodrigo Lelis, muito idêntica a personificação, tanto na semelhança
física, quanto na linguagem) e sua mulher Dedé Gadelha (Camila Márdila).
As diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira (que também assina
o documentário O Nome Dela é Gal, em
2017) passam em revista com sutileza a vida pessoal, artística e a trajetória da
renomada artista biografada, num recorte de 1966 a 1971. Talvez o público saia
da sessão sem sentir que conseguiu conhecê-la de forma total. Porém, percebe
com clarividência a timidez como uma característica que vinha atrelada em sua personalidade,
quando se falava sobre ela, mas a artista tinha muitas outras nuances que foram
bem encarnadas pela perfeita interpretação. Uma cena marcante é quando a mãe (Chica
Carelli) descobre que a filha não se relaciona apenas com homens. As sequências
que envolvem as duas mostram a sensibilidade de Gal e a vontade de se libertar.
Um filme para todas as gerações, que humaniza a protagonista num momento
difícil pela árdua superação que resulta no profundo desabrochar pela
metamorfose em direção ao renascimento, como afirma seu empresário bem humorado
Guilherme Araújo (Luis Lobianco) -sem o estereótipo do cafajeste já visto em
vários filmes, e responsável pelo nome artístico Gal Costa- sobre a jovem
talentosa de 20 anos de idade como a “borboleta que sai do casulo”.
Cabe ressaltar que a música servia de fresta para a
libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania
antidemocrática que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para
deixar na tela como reflexão aquele período sombrio, onde as canções mais
famosas de sua trajetória são mostradas dentro de um contexto social perigoso
para o artista, como bem retrataram os documentários Chico-Artista Brasileiro (2013), de Miguel Faria Jr., e Elis (2015), de Hugo Prata. Além de Gil,
Caetano e Dedé, ela teve o apoio de Maria Bethânia (Dandara Ferreira), mas
sofreu zombarias do diretor de televisão (Fábio Assunção), em seus primeiros
passos para a música profissional até atingir a fama. Formam o icônico movimento
da Tropicália em que ela é uma das principais vozes, onde se realçava as roupas
coloridas e diferentes das que ditavam a moda na época, com resistência pela
introdução da guitarra elétrica, logo associada ao rock and roll dos EUA e Inglaterra. Uma quebra de paradigmas de
comportamentos, cultura, subversão e evolução.
Merece um capítulo à parte a magistral atuação de Sophie
Charlotte, conhecida por personagens secundárias insossas em novelas e seriados.
Atinge o apogeu com o maior papel de sua carreira, mesmo que tenha dublado a
lendária canção Baby num dos
festivais da época, de Caetano Veloso, gravada no histórico álbum Tropicália
(1968), composta para a irmã Bethânia, que optou por não participar do disco (Você precisa saber da piscina, Da margarina,
da Carolina, da gasolina, Você precisa saber de mim, Baby, baby, eu sei que é assim, Baby, baby, eu sei que é
assim, Você precisa tomar um sorvete na lanchonete, Andar com a gente, me ver
de perto, Ouvir aquela canção do Roberto...). A maioria das outras músicas
da trilha sonora interpretou com elegância e finesse. Atua com uma
impressionante dramaturgia, muito além da expectativa. Não é fácil encarnar uma
gigante como Gal Costa, que deu seu aval à atriz por considerar o timbre de voz
muito próximo do dela. Demonstrou soberbo vigor físico e psicológico para uma
construção despojada que atinge a exuberância com seus cabelos encaracolados e
sua voz meiga, os trejeitos, o sorriso, a afinação, sem tentar imitar, com o
gestual marcante e intimista da emblemática artista baiana sensível, resguardada
e poética.
Com a bela fotografia de Pedro Sotero, bem montado por
Eduardo Serrano, o dinâmico roteiro de Maira Bühler, Lô Politi e Mirna
Nogueira, as diretoras primam pela sensibilidade e as sutilezas sugeridas com
algumas revelações. Em entrevistas, Gal já havia contado que, quando criança,
costumava cantar com a cabeça enfiada dentro de panelas em sua casa, com a
intenção de se ouvir e treinar a própria voz, os tons e a respiração. Além dos
aspectos convulsivos da política abordado na época, quando se faz um pontual
panorama através de um resumo sobre o anacrônico regime ditatorial que passou
sem deixar saudades, é um filme para ser degustado com as doces e saborosas
melodias com o gosto e a marca brasileira, bem compilado no desfecho junto aos
créditos finais. O resultado não poderia ser melhor para deleite do espectador
nesta imersão que beira ao sensorial pelos caminhos da melhor cantora dos
Brasil, pelas palavras de João Gilberto, também para grande parte da crítica e
do público, embora haja uma disputa acirrada com a não menos notável Elis
Regina. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos como poemas profundos.
É proibido levantar o volume da voz para não atrapalhar o êxtase. Apesar das tensões
advindas do período em que se passava de iminente ameaça aos artistas musicais,
a história faz estes registros para contar a turbulência da ditadura em
sincronia com a importância do legado da estrela. Um passeio pela trajetória de
fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e
dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história
recheada de futilidades de uma estrela, por isto se insere como uma
cinebiografia singular, que certamente estará entre os 10 melhores filmes no
final do ano.