sábado, 30 de dezembro de 2023

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2023)

 

Os 10 Mais e as 05 Menções Honrosas

Já é final de ano e todos os críticos estão publicando suas listas de melhores filmes vistos nos cinemas e nas plataformas de streaming em 2023. Também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda as 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese (foto acima);

02. Memória, de Apichatpong Weerasethakul;

03. Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho;

04. Afire, de Chistian Petzold;

05. Monster, de Hirokasu Kor-eda;

06. Eo, de Jerzy Skolimoswki;

07. Triângulo da Tristeza, de Ruben Öslund;

08.Meu Nome é Gal, de Lô Politi e Dabda Ferreira;

09. A Noite do Dia 12, de Dominick Moll;

10. Sem Ursos, de Jafar Panahi.

Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Elis & Tom, de Roberto de Oliveira e Tom Job Azulay;

- Os Fabelmans, de Steven Spielberg;

- Close, de Lukas Dhont;

- O Crime é Meu, de François Ozon;

- Holy Spider, de Ali Abbasi.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Puan

Embates Filosóficos

Vem da Argentina em coprodução com o Brasil, Puan, apelido pelo qual é tratada uma instituição universitária que fica perto da estação do metrô em Buenos Aires, que empresta seu nome. Esta comédia dramática com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da boa reflexão da privacidade e das relações em sociedade, que faz uma obra interessante, deixando o enredo correr, para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus realizadores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e amizades. Apesar do emprego de um humor pastelão com excessivas cenas escatológicas na parte inicial, mostra-se atual e esclarecedora do meio para o fim, pela valorização do cotidiano de alguns personagens em conflito, tanto pessoal como profissional. A dupla de cineastas María Alché, do longa de estreia Família Submersa (2018) - é a mesma atriz revelada por Lucrecia Martel em A Menina Santa (2004)- e Benjamín Naishtat, diretor dos admiráveis Bem Perto de Buenos Aires (2014) e Vermelho Sol (2018). Foi laureado com dois prêmios no Festival de San Sebastián, na Espanha: Melhor Ator para Marcelo Subiotto e Melhor Roteiro.

Já se tornaram frequentes as produções do país vizinho terem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade, com abordagens discutidas buscando como mote a simplicidade, deixando os grandes cenários em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e das relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas realizações de Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrecia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro no belíssimo Kamchatka (2002); Paula Hernández no comovente Chuva (2008); e Mariano Cohn e Gastón Duprat com os ótimos O Homem ao Lado (2008) e O Cidadão Ilustre (2016), e outros tantos cineastas comprometidos com o cotidiano singelo. Muitas vezes invadido ou perturbado por problemas familiares, ou pela crise social econômica que ainda perdura. Também se impôs no mercado, entre tantos outros fatores, pela presença do icônico ator Ricardo Darín.

A trama retrata a força cultural do povo argentino diante da crise política e sócio-econômica ao focar a árdua trajetória de um professor de filosofia, aparentemente já ultrapassado. Após a morte por mal súbito do mentor do protagonista, o docente Marcelo Pena (Marcelo Subiotto- em interpretação pouco inspirada) está pronto para assumir a cadeira de professor titular de Filosofia da Universidade de Buenos Aires (UBA). É um homem pouco interessante no dia a dia, com atrapalhações em seu cotidiano com a crise da meia-idade iminente. Embora seja aplicado, demonstra algumas limitações, ainda que se ache apto para a escolha no cargo, seus esforços de anos de labuta podem ter sido em vão. Tudo muda com o retorno inesperado do ex-colega, de Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia- convincente na atuação). O oponente é mais atraente, carismático, dotado de oratória brilhante, leciona na Alemanha, dá cursos em Nova Iorque e namora uma famosa estrela do cinema. Quer a vaga e acaba afetando os planos de Pena, que utiliza exemplos do cotidiano de seus alunos para ilustrar as complexas teorias de Thomas Hobbes, Heidegger e, principalmente, o pensamento do filósofo suíço defensor do iluminismo francês Jean-Jacques Rousseau: “o ser humano é melhor quando está mais próximo da natureza”. A rivalidade entre os dois mestres de filosofia se estabelece para concorrer na substituição do célebre professor titular que morreu. Há as ambições reais que sempre foi e continuará sendo o caminho para discussões e encenações desprovidas de uma boa lucidez.

A comédia é apresentada de forma intercalada por capítulos que se encerram com a câmera com um tempero agridoce na rotina dos dias de ebulição em Buenos Aires que se revelam fragmentos de situações de um caos social com o fechamento prematuro da faculdade por corte de verbas, numa situação bem típica de governantes divorciados do ensino e da educação, que remete para a premonição do governo recém- empossado de Javier Milei. A dupla de realizadores aborda com uma dose de cinismo mesclado de humor escrachado os rancores, os ciúmes e uma pitada de amargura na volta do consagrado intelectual do exterior, que lembra o retorno do escritor no drama O Cidadão Ilustre, visto como um estranho no ninho pela maioria dos habitantes daquele lugarejo distante que parou no tempo. Sujarchuk é um galã vaidoso e suscetível às bajulações que deu asas para sua candidatura ao cargo, faz um discurso exibicionista em alemão. Por tudo isto é visto como um oportunista por alguns, mas para outros como um elemento de salvação para um momento de efervescência política do contexto social na qual está inserida.

A inflação galopante e os cortes nos gastos públicos fazem parte do dia a dia da população, que impulsiona os conflitos da história, exibindo as manifestações dos estudantes que tomam as ruas portenhas diariamente e a luta para manter viva a universidade, símbolo poderoso da realidade pelas distorções apresentadas. Puan aponta as contradições e constatações num cenário construído pela mediocridade e ausência de inteligência, como da fútil idosa milionária que paga bem por aulas de filosofia, mas dorme quando está sendo iniciada numa explanação sobre O Estrangeiro, de Albert Camus. Só acorda com o barulho ensurdecedor do aspirador de pó acionado pela empregada. A mesma personagem que simboliza um cenário de decadência, desprovido de interesse maior, contrata um mágico para seu aniversário que acaba rompendo o contrato, mas logo é substituído por um pensador grego, transformado numa figura caricata. Os defeitos e as virtudes oriundos da pretensão dos donos da palavra final estão embutidos na citação no epílogo da última parte de Fédon, um dos Diálogos de Platão, onde é narrada a morte de Sócrates. Disseca sobre a maturidade que poderia chamar-se “da imortalidade da alma”, ou “das ideias”, ou “dos contrários”. Eis um dos grandes momentos deste instigante filme, quando no encerramento de um ciclo e de uma vida, uma pergunta existencial fica sem resposta, porque nada é definitivo e absoluto.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Pedágio

 

Cura Milagrosa

O cineasta baiano Aly Muritiba em seu último filme, Deserto Particular (2021), contava uma história de amor em tempos de ódio com a recorrente intransigência brutal de nossos dias atuais. A sensibilidade e a ternura deveriam falar mais alto, mas as diferenças culturais entre dois polos distintos retratadas no painel da atmosfera criada entre as duas regiões brasileiras ficaram mais visíveis. Retratava o envolvimento na construção da trama de amor através dos contrastes de cores e alguma melancolia na temática principal. No encontro dos personagens desencontrados pelas circunstâncias, surgiu a mulher trans criada pela avó, diante do pedido do pai, para tentar uma cura gay numa igreja evangélica pentecostal. Trabalhava durante o dia num centro de distribuição de alimentos, sonhava em por o pé na estrada e se libertar das amarras pelos grilhões que o prendiam àquele ambiente retrógrado; à noite se transmutava e vivia um outro mundo da fantasia, a mulher que mora dentro dele, até encontrar um policial pelo WhatsApp, que cometeu um erro grave e o coloca numa situação constrangedora e de iminente risco na carreira.

A promissora diretora e roteirista paulista Carolina Markowicz, conhecida pelo seu elogiado longa-metragem Carvão (2022), retoma e aprofunda a temática da cura gay em Pedágio. Faz uma crítica mordaz à opressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+, onde não faltam os discursos conservadores da moral e dos bons costumes com viés homofóbicos através dos dogmas religiosos, iguais aos da nossa realidade brasileira. No enredo, Suellen (Maeve Jinkings – mais um atuação irrepreensível) é uma mãe que leva uma vida simples trabalhando como cobradora de uma praça pedagiada em Cubatão (SP), onde a solidão e a frieza da vida estão presentes. Sua colega de trabalho, Telma (Aline Marta Maia), é uma religiosa ferrenha e carismática, embora seja uma falsa moralista, facilmente manipulável, fica o tempo todo aconselhando a protagonista a inscrever seu filho, Tiquinho (Kauan Alvarenga), num curso ministrado pelo pastor evangélico Isac (Isac Graça), um estrangeiro que propaga milagres com terapias para converter pessoas fora dos ditos padrões normais. O garoto é um adolescente que trabalha numa lancheria, usa cores vibrantes e se maquia em seus vídeos ao dublar divas com muitas plumas e paetês. Embora ainda não tenha atingido a maioridade, tem o próprio dinheiro para seu sustento e até ajuda a mãe como pode financeiramente. Mesmo que não seja dependente, ele precisa do carinho e do afeto maternal daquela que não aceita o filho como ele é ao depositar toda confiança no milagreiro divino que chegou na comunidade.

A trama aponta as idiossincrasias e as contradições da colega de trabalho e da mãe, que se julgam corretas, mas distantes de colocar alguém em um patamar moral, tanto pela ignorância como pela ingenuidade. Suellen está obsessiva em transformar em heterossexual o filho, que não se abate por essa rejeição, mostra-se firme e convicto do que quer ao lutar pela própria liberdade sexual. Logo percebe que pode usar o emprego como uma maneira de adquirir uma renda extra ilegal ao montar um plano com seu namorado, Arauto (Thomas Aquino), um homem envolvido em uma gangue de assaltos contumazes. Arrisca tudo, inclusive sua dignidade, embora esteja decidida de que fará por um motivo justo, ou seja, arrecadar dinheiro para fazer o caro tratamento para curar o filho. A temática que trata da homofobia e terapia religiosa com um mergulho na criminalidade desemboca na crise do microcosmo familiar, transmitida com uma falsa leveza, mas de uma dura realidade que se torna densa e cruel. Há todos os elementos de uma experiência amarga, sem ser rasa ou apelativa, embora haja alguns exageros na linguagem vulgar, fica distante do melodrama barato, fútil, eivado de clichês, encontrado em obras menos meritórias. Markowicz é ousada e faz questão de mexer nas feridas abertas da homofobia e dos discursos protagonizados por discípulos de seitas oportunistas. Ao mesmo tempo em que provoca, lança soluções como no desfecho, que vai do grave infortúnio pessoal da mãe ao encontro do amor afetuoso e sem mágoas do filho e suas convicções inalienáveis atenuadas pelas imagens do reencontro redentor como luzes para um futuro menos amargo, na reviravolta do roteiro.

Constrói uma relação de vínculos, bem simbolizada sobre as identidades através de uma obra que espelha as complexidades que habitam os lares brasileiros. Inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo maternal é mantido nesta metamorfose. Eis um drama familiar com pitadas sociais e religiosas que se faz necessário por ser importante em um país com forte influência das igrejas evangélicas, sobretudo pelo enredo para narrar os milagres de um impostor. O objetivo é desconstruir em doses homeopáticas a obsessão doentia da protagonista e, ao mesmo tempo, mostrar as diferenças e contradições de uma sociedade machista e conservadora. A diretora coloca com sutileza empatia à tolerância no improvável relacionamento afetuosos de duas pessoas antagônicas, mãe e filho, mas com capacidade de mudança pela transformação em suas vidas. Uma espécie de alegoria de tempos enraizados no reacionarismo de um futuro cada vez mais sombrio, onde a harmonia familiar pode ser um alento, embora distante por conta de um permanente estereótipo advindo de um mundo tirano do patriarcalismo. O propósito principal é a transformação interior das pessoas diante dos medos e anseios na vida com as conexões e experiências acumuladas no tempo, onde o amor transgride e a mudança interior é o elemento buscado diariamente nos encontros inesperados que aproximam emoções.

Em Pedágio se pode visualizar uma essência humana de personagens psicologicamente bem concebidos dentro de uma realidade brasileira com afetos e desafetos que compõem a existência de pessoas próximas do nosso cotidiano, sem afastar a empatia, para lutar contra a intolerância. Há uma atmosfera social míope de uma prática anacrônica de ideias e imposições ultrapassadas. São situações tóxicas contrastando com o afeto e o carinho dos excluídos nesta espiral de sofrimento de vidas infelizes. Refletem uma sociedade em que há um intenso processo interno de descoberta para tentar lidar com seus sentimentos marcados por uma educação rígida de outrora, em alguns casos. São os mecanismos de manipulação e a culpabilização arraigados que passam despercebidos, no qual a desorientação se estabelece por uma educação típica familiar que entra em choque diante de revelações e experiências raramente vividas em relacionamentos que cruzam do hétero para homossexual. Conceitos que deixam inúmeras perguntas, poucas respostas, para cutucar o espectador mais distraído, sem insultar ou induzir, deixando a meditação livre, diante das consequências apresentadas pela história sem tomar partido ou realizar discursos eloquentes como bandeira de opção sexual. As sutilezas dos diálogos com frases sucintas, mas com um objetivo puramente reflexivo, porém sempre atingindo o alvo como o coração e a lucidez, sem a pretensão do didatismo definitivo. Uma admirável abordagem sobre as diversidades sociais e culturais na busca de um futuro mais tolerante e menos opressivo com as diferenças.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Monster

 

Verdades e Mentiras

O festejado cineasta Hirokasu Kore-eda herdou a sutileza e a sensibilidade dos inspirados diretores japoneses conterrâneos Yusujiro Ozu de Era Uma Vez em Tóquio (1953), Mikio Naruse por Midareru (1964), e o criador do cinema de animação Hayao Miyazaki com temas recorrentes da relação da humanidade com a natureza. Na sua extensa filmografia encontramos o longa Ninguém Pode Saber (2003), com a temática da mãe ausente dos filhos e a falta de afeto aos mesmos que literalmente viviam confinados num apartamento; em Pais e Filhos (2013), conquistou o Prêmio do Júri em Cannes, discutia-se os efeitos futuros dos bebês trocados no berçário com as revelações recebidas, num clima de tensão instalado diante do amor pelo filho de outros pais e a intolerância de um deles; em Nossa Irmã Mais Nova (2014), mostra-se a dolorosa distância de três filhas que não veem o pai há 15 anos, mas ao saberem da morte dele, resolvem ir ao seu enterro, e lá conhecerão a tímida meia-irmã; em Depois da Tempestade (2016), o enredo é traçado com um sabor agridoce para deixar emergir fatos que trarão conflitos sentimentais que envolvem pais que terão de lidar com adversidades repentinas, pois precisam tocar suas vidas. Foi premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em Assunto de Família (2018), sua obra-prima, uma abordagem profunda e sem restrições sobre o conceito propriamente dito do núcleo de uma família, com discussões ácidas e controversas de contornos de grande relevância sobre as regras e o formato que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano. Não faltou singeleza e uma aparente serenidade para buscar a construção dos vínculos afetivos com muita ternura, carinho e amor, afastando-se do julgamento precipitado de normas morais vigentes.

O realizador prima pelas crônicas ambientadas na classe média de seu país, dando um mergulho no microcosmo familiar para contar histórias verossímeis do dia a dia. Segue a trajetória do questionamento primoroso dos velhos mestres para mergulhar no universo peculiar das tradições da cultura japonesa. É um observador das mudanças inerentes que acontecem com o passar dos anos, expondo as feridas não cicatrizadas para lançar luzes ao universo das distorções dos lares desagregados e em ruínas, ou pela violência doméstica ou pela desestruturação financeira. Sempre com uma temática voltada para as perdas, enigmas da vida, a hipocrisia social e os desatinos pelas rupturas dos laços que unem os seus respectivos membros no microcosmo familiar, amizade e amor, o preconceito numa idade em que há tantas mudanças da pré-adolescência para a adolescência colocada de maneira direta, embora haja sutilezas na narrativa. São as construções impostas pela sociedade que nos rege e com elementos fortes de bullying, principalmente entre os grupos de colegas do colégio onde estudam os personagens amigos em foco. Diante da prática sistemática de atos de violência psicológica, intimidação e humilhação, com duras consequências pelo rumo da reviravolta da história, acaba por se tornar uma amarga e cruel realidade. Abordagens estas encontradas no laureado Monster, vencedor na categoria de roteiro no Festival de Cannes deste ano, escrito por Yuji Sakamoto, um quebra-cabeça inspirado na versão do filme Rashomon (1950), do mestre Akira Kurosawa, que realçou as dificuldades inconclusas na análise de fatos quando há vários interesses envolvidos.

Em seu novo filme, o diretor reconstitui o cotidiano e deixa os personagens darem suas versões numa história contada pelos diversos ângulos dos pontos de vista. O espectador faz parte do enredo como uma suposta testemunha dos acontecimentos reconstituídos numa estrutura de mistério que é usada para apontar uma burocracia rígida que tem o viés das hipocrisias latentes e destruidoras de seres humanos para sufocar e humilhar num contexto de submissão de um universo contemporâneo doentio. As versões são intercaladas por flashbacks que tentam reconstituir uma verdade eivada de mentiras. Nada é o que parece e fica pontuada a pressa em julgar. Saori (Ando Sakura) é uma viúva angustiada diante dos entraves burocráticos do mundo dito civilizado. Preocupada com a possibilidade do filho Minato (Soya Kurokawa) estar sofrendo agressões de um professor (Eita Nagayama), tenta resolver na administração da escola. Recebe apenas frases vazias devidamente ensaiadas que não solucionam seu problema, apenas há olhares confusos e elucubrações estéreis. O comportamento do menino apresenta sinais de anormalidades e indícios de bullying, violência física e psicológica que estão aparentemente evidentes. O sistema conservador, representado pela diretora do colégio (Yûko Tanaka), uma mulher fria que repassa a culpa de uma tragédia familiar ao próprio marido para manter a fleuma aristocrática e se passar por vítima do destino. A mãe só recebe pedidos de desculpas num mecanismo social de submissão e concordância para afastar as verdades e desviar o foco das causas originárias dos sofrimentos num cenário da total ausência de lucidez.

Ryuichi Sakamoto, autor da linda música original, falecido após o encerramento das filmagens, teve o filme dedicado nesta narrativa com um eletrizante roteiro repleto de reviravoltas, no qual as aparências enganam e as revelações vão surgindo no tempo certo em doses homeopáticas. Não julgar ninguém ao ouvir uma história, é o recado do diretor, que nos remete na primeira parte de seu longa para o magnífico drama A Caça (2012), do dinamarquês Thomas Vinterberg, na abordagem nua e crua de forma transparente ao colocar em xeque a crença equivocada de que crianças não mentem. Os preconceitos contemporâneos e a pressão de uma casta dentro de uma comunidade conservadora sobre os direitos e princípios morais de um indivíduo acuado e liquidado moralmente numa acusação injusta de pedofilia numa creche. Na segunda parte até o epílogo fica evidente a influência e a similitude com Close (2022), o admirável drama belga sobre amizade e amor, do diretor Lukas Dhont. Retrata o dia a dia com uma delicadeza naturalista marcante registrada com notável sensibilidade poética, que mostra dois meninos de 13 anos, dois amigos inseparáveis, que passam 24 horas juntos. Eles brincam, andam de bicicletas, dividem tudo que gostam, dormem um na casa do outro. Mas logo as insinuações e as provocações dos colegas colocam em xeque a conexão da amizade pueril.

Em Monster, os vínculos que unem são fortes ao revelar um cotidiano de intenso afeto e sentimento de apreço, solidariedade humana, e liberdade para uma reflexão humanista pelo despojamento de falsos tabus do pai preconceituoso do melhor amigo do protagonista. O cineasta tem como marca registrada as histórias familiares tradicionais e suas gerações, mas agora se detém nas transformações de uma composição ampla e irrestrita, para retratar estas novas situações diárias de simples coisas que irão ao encontro de relações intrincadas e modificações relevantes. O drama é marcante pelo equilíbrio, embora seja sombrio com alguns momentos de felicidade para os jovens personagens. O desfecho traz cenas comoventes, como o renascer diante da foto do pai morto. O desenlace é fascinante e poético entre os destroços de um trem como processo de deterioração. Mas iluminados pela liberdade do lindo cenário das imagens de um outro mundo, como se uma luz alentadora brilhasse para uma nova realidade substituindo as ruínas, como uma alegoria sob os acordes da trompa e do trombone. Eis uma temática universal sobre angústias humanas num mundo ameaçado pelo fogo e pela dissimulação. Um extraordinário filme sobre as sutilezas dos laços de ternura com suas ligações se esboroando, que remanescem entre verdades e mentiras. Emociona por ser intenso na complexidade das relações conceituais de uma provável nova sociedade, por isto é uma obra madura e completa na carreira de Kore-eda.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Assassinos da Lua das Flores

 

Extermínio Indígena

Adaptado do best-seller homônimo do escritor David Grann, também baseado em uma história real, Assassinos da Lua das Flores é um faroeste épico do veterano cineasta Martin Scorsese, de 79 anos. Provavelmente o melhor filme de toda sua filmografia, com um roteiro fabuloso escrito a quatro mãos por Eric Roth e o diretor. Uma antiga parceria é retomada com Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, que sempre rendeu bons frutos ao longo da carreira do realizador, mas o trio nunca tinha trabalhado junto. DiCaprio está impecável, cada vez melhor e mais maduro, com desempenho em alto estilo, devendo ser creditados os méritos também ao diretor nesta sexta parceria, no papel do protagonista Ernest Burkhart, lembrou os melhores momentos do Marlon Brando pelos movimentos faciais, arrasou. Antes, estiveram juntos em Gangues de Nova Iorque (2002), O Aviador (2004), Os Infiltrados (2006), Ilha do Medo (2010), e O Lobo de Wall Street (2013), que lhe rendeu o Globo de Ouro. Em 2016, finalmente conseguiu levar o Oscar de Melhor Ator no filme O Regresso (2015), de Alejandro González Iñárritu. Já De Niro, quase sempre sóbrio, impressiona magistralmente como um personagem desprezível e estúpido, frio e calculista, ao interpretar William Hale, tio de Ernest. Encarna um pecuarista ambicioso que sempre quer mais financeiramente, que se porta publicamente como um cavalheiro, uma pessoa bondosa, pragmática, respeitado na cidade do povo indígena Osage. De Niro completou agora dez filmes em parceria com o diretor, iniciando com Caminhos Perigosos (1973), passou por Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995), O Lobo de Wall Street (2013), sendo o mais recente O Irlandês (2019).

Scorsese firmou seu nome como um dos realizadores mais influentes e cultuados da história, não apenas em Hollywood, mas também no cenário mundial. Um legítimo artesão do cinema que impacta mais uma vez pela importância da obra, e que demonstra ainda ter muito para dar. Pelas suas lentes retrata a verdadeira faceta ambiciosa e preconceituosa com que Hale sente e nutre pelos nativos, além de sua busca incessante por dinheiro e o envolvimento direto com uma engrenagem obscura. Usa o sobrinho que retornou da Primeira Guerra Mundial, como um típico fantoche de seus planos diabólicos para se apropriar da riqueza das terras indígenas como uma grande riqueza em Fairfax, na região norte-americana de Oklahoma. Para melhorar ainda mais seu patrimônio, como símbolo poderoso de um patriarcado, convence o rapaz a se casar com Mollie Kile, uma grata surpresa positiva pela irrepreensível interpretação da atriz descendente indígena Lily Gladstone, no papel mais importante de sua carreira. Rouba as cenas com sua presença marcante e seu poder de falar através do olhar penetrante de uma eloquência poucas vezes vistas numa narrativa, tem uma delicadeza agradável peculiar. Herdeira de terras ricas em petróleo, ela e sua família logo despertam interesse e cobiça dos homens brancos aventureiros.

A trama se passa num recorte do ano de 1920, em que a tribo de Osage é forçosamente deslocada de Arkansas e Missouri para se estabelecer em Oklahoma, quando diversos assassinatos acontecem a partir de circunstâncias misteriosas. Diante de denúncias, o caso acaba desencadeando uma grande investigação envolvendo o poderoso J. Edgar Hoover, considerado o primeiro diretor do FBI, agência que tinha acabado de ser criada na época, sendo representado pelo investigador Tom White (Jesse Plemons). Os crimes são enfocados por um duro realismo, mas com requintes de crueldades numa história com componentes ardilosos campeando por todos os lados, extrapola todos os limites de princípios e regras normativas. A exposição dos fatos é abrangente e colocada com boa intensidade, buscando um humor sutil, onde a ambição é o elemento essencial como mola propulsora para manter a fleuma da canalhice e seus excessos de desumanidade, ausente de qualquer ética pelo tio espertalhão. É inegável o envolvimento complexo bem explorado dessa história de amor entre duas pessoas, mas também de traição, culpa e submissão do sobrinho.

Assassinos da Lua das Flores incrivelmente passa rápido em suas 3h26min de duração, sem ser arrastado, distante do entediado, através de uma narrativa com clímax dinâmico e inspirado, a conspiração e a tensão constante são elementos apropriados para prender o espectador desde o início até o desfecho com a aparição do cineasta ao melhor estilo do mestre Alfred Hitchcock, pelas lentes fascinantes da fotografia de Rodrigo Prieto e a cativante trilha sonora de Robbie Robertson. O épico contextualiza e coloca para reflexão as relações de poder em conluio com a maçonaria para retratar com contundência os abusos oriundos da violência, principalmente da traição famigerada, do homem branco em relação ao povo indígena. Uma abordagem que atinge um resultado singular ao mostrar a importância do cinema para desnudar, perturbar e apontar os crimes pela humanidade e o extermínio de um povo indefeso. Eis um novo olhar para aqueles faroestes estereotipados, preconceituosos e reducionistas, por serem avessos aos índios colonizados e dizimados pelos governos dos Estados Unidos. A desconstrução se faz necessária e Scorsese pontua uma crítica ao materialismo do homem branco ganancioso, nefando, e sem limites pelo descontrole abissal, assim como já o fizera em O Lobo de Wall Street.

O questionamento da moralidade do sobrinho e seu amor confuso e pouco honesto pela mulher são colocados em xeque. Exterioriza o caráter deturpado e minguado ao concordar com o tio na armação para assassinar membros da própria família para lucrar. É devidamente revelador ao optar pelas suas próprias escolhas, como apresenta na essência um sintoma nauseante. Não tem bom moço diante das circunstâncias em que se apresentam os caminhos tomados, ainda que sob uma coação afetiva familiar do maléfico tio, não há posição de ingenuidade ou inexperiência. Sobra realismo para os atos cruéis nefastos, as abjetas armações, comandados pelo inescrupuloso Hale, elemento dominador na figura portadora da autoridade paternalista, no seu universo selvagem e desenfreado, dito civilizado. A tirania opressora dos Estados Unidos é denunciada em relação à cultura dos povos indígenas subjugados e humilhados dentro de seu território. Um notável documento histórico de conhecimento obrigatório sobre relacionamentos humanos que refletem os combates covardes sobre os mais fragilizados que desvendam segredos e mostram as verdades mantidas ocultas diante da máscara que cai para lançar luzes sobre as sombras do passado. Um monumental relato cinematográfico, uma verdadeira obra-prima no sentido mais genuíno da palavra, que deverá estar no topo das listas dos críticos de melhores filmes do ano de 2023.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Tia Virgínia

As Irmãs

O longa-metragem de estreia do roteirista e diretor goiano Fabio Meira foi As Duas Irenes (2017), que abocanhou quatro prêmios no Festival de Gramado daquele ano: roteiro, ator coadjuvante, direção de arte e melhor filme da crítica. Agora, o cineasta nos brinda com o segundo longa, Tia Virgínia, que ganhou cinco Kikitos no Festival de Gramado em agosto deste ano: roteiro, atriz (Vera Holtz), prêmio da crítica, direção de arte e desenho de som. Bem que poderia ter saído com a láurea de Melhor Filme, mesmo que Mussum, O Filmis (2022), de Silvio Guindane, tenha ficado em boas mãos. Em uma trama aparentemente simples, embora haja muita complexidade nas relações familiares, retrata as dúvidas e os caminhos nas vidas presentes e futuras. Conta com muita sensibilidade e perspicácia a história de uma mulher que dá nome ao título (Vera Holtz, de estupenda atuação para uma construção despojada que atinge uma exuberância impressionante na dramaturgia) aos 70 anos, que não tem nenhum filho e nunca se casou. Acaba sendo convencida pelas irmãs, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso) a se mudar para outra cidade com a tarefa de cuidar dos pais. Uma temática contemporânea, sempre latente e difícil de abordar em nossa sociedade de consumo com descarte dos mais idosos e a recepção dura, às vezes, principalmente para os mais jovens.

Eis uma comédia dramática honesta e cativante que se passa em apenas um dia numa casa e acompanha a preparação da ceia pela protagonista para receber as irmãs que estão chegando para celebrar o Natal, após a morte do patriarca. Vanda é casada com Tavares (Antônio Pitanga) e mãe da doce Ludmila (Daniela Fontan); já Valquíria tem um filho entediado que está se formando em Medicina (Iuri Saraiva). A situação de Virgínia é melancólica, que por codependência se vê obrigada na sua rotina em cuidar da mãe de 99 anos (Vera Valdez), uma anciã em adiantado estado de demência, que não interage, de corpo esquálido e que precisa de cuidados especiais, como no banho sentado numa cadeira, medicação, alimentação na boca e o uso constante de fraldas geriátricas. O cenário retrata um ambiente típico da classe média brasileira, onde o tempo parece estar estático, com a indissolúvel presença de um relógio de parede que anuncia a troca de horas, uma rústica cristaleira antiga com as taças e os pratos do casamento da matriarca, e um presépio para iluminar a chegada da pseudonoite festiva. Um mergulho nos confrontos e adversidades da irônica chamada "melhor idade" e o espectro da triste solidão, tanto da protagonista, a “tia solteirona”, enquanto as outras constituíram suas próprias famílias, bem como da mãe decrépita rumo ao ocaso.

Há alguma similitude em seu conteúdo de questionamento de vida com outras belas obras, tais como: A Partilha (2001), de Daniel Filho, quando quatro irmãs estão reunidas para o enterro da mãe discutem a divisão entre elas de um amplo apartamento em Copacabana e os móveis contidos nele. Passam a confrontar entre si suas opções de vida, já que todas seguiram caminhos bem diferentes. Fazem um balanço do passado e dos bons momentos que tiveram juntas, sendo obrigadas ainda a enfrentar as novas situações que o cotidiano impõe. Também em Feliz Natal (2008), de Selton Mello, o protagonista de 40 anos trabalha em um ferro-velho no interior, tem uma companheira e uma ocupação constante, mas no passado levou uma vida de grande irresponsabilidade, da qual saiu vivo por sorte. A proximidade do Natal faz um levantamento de sua vida, decidindo retornar à capital, enquanto que ele próprio está em busca de sua identidade.

Quem não conhece ou não teve no seio familiar, ou de amigos próximos, uma situação semelhante tão envolvente e humana apresentada? A dignidade de ambas, da filha no papel de cuidadora da mãe, é colocada em xeque pelo tempo e seus estragos existenciais do envelhecimento, pelo diretor. Há uma madura direção que demonstra controle sobre a narrativa e sobram méritos por não deixar cair em pieguismos ou exageros sentimentais baratos pela eficiência da condução equilibrada dos diálogos ásperos entre as irmãs. Os conflitos vão desde o engraçado para revelações dolorosas, com uma tensão constante na inveja, na chantagem emocional, muita hipocrisia, em que não falta a discussão do patrimônio, dinheiro, e até o assédio do futuro médico à empregada grávida. Assim já o fizera o argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (2009), pelo afago final das águas do rio que servem de cenário para o domicílio daquelas idosas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar. Ou pelo olhar do diretor carioca Marcos Bernstein no ótimo O Outro Lado da Rua (2004), refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos rumos. Ou com GranTorino (2008), de Clint Eastwood, sobre as perdas hereditárias e os valores dos descendentes colocados em risco pelo herói de guerra decadente, e ainda em Aos Olhos de Ernesto (2017), de Ana Luiza Azevedo, que mostra os traumas das perdas e dissabores do envelhecimento com muita sutileza para uma profunda reflexão.

O cenário único funciona como um grande teatro do realismo familiar estampado, no qual a protagonista pretende usar seu vestido de formatura no jantar como metáfora de uma vida que se perdeu no tempo, e o sonho de ser atriz talvez se esvaíra para sempre. A penumbra da virada da noite de Natal será marcada pela revelação de um grande segredo sob os acordes do clássico Bolero, de Ravel. Ela armazena ressentimentos, tristeza imensa, solidão e o sentimento de ingratidão das irmãs. Guarda em seu íntimo um sofrimento silencioso. Como num jogo de xadrez, a importância pelas nuances das relações de familiares fragilizadas ao extremo, fio condutor para o desfecho do processo de libertação da mulher sufocada pela dor do tempo e as frustrações advindas dos insucessos amordaçados pela estagnação e conformismo de uma realidade como um beco sem saída. Culpa, responsabilidade e liberdade de escolha se misturam nos ingredientes agridoces. Um magnífico drama existencial humano em formato de comédia dramática alicerçado com simplicidade sobre o angustiante tema universal do envelhecimento e suas idiossincrasias do tempo em seus dias próximos da finitude. Tia Virgínia soa como uma luz de força e equilíbrio, com suas mágoas e alegrias, mas nada definitivo no horizonte. As emoções e a vazão para o grande amor profissional de uma ilusão nunca esquecida pelo longínquo tempo, a ser reconciliado pela rebeldia da rotulada irmã louca, com a revelação do sigilo numa sequência singular da narrativa que leva para a metamorfose redentora.


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Afire

 

Juventude Angustiada

O cineasta e roteirista Christian Petzold é considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo da Alemanha, possivelmente o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim. Autor da trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), tendo recebido o prêmio Urso de Prata por melhor direção no Festival de Berlim. Ambientado nos anos de 1980, num bucólico vilarejo, ao Leste de Berlim, em pleno regime comunista instalado na Alemanha Oriental, numa análise sobre a divisão do país antes de cair o muro, no constrangimento da protagonista em ser vigiada e passar por humilhantes revistas íntimas no seu local de trabalho sob o autoritário regime sem liberdade de expressão, onde a reunificação era completamente descartada. No segundo longa, Phoenix (2014), centralizou a história na judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração em Auschwitz, que retorna à sua cidade natal em escombros na busca de um cirurgião plástico para recuperar a imagem deformada, mesmo que o passado lhe traga perseguições. Reencontra o marido e recebe a ajuda de uma militante solidária com seus compatriotas, orientando-os para viajarem em definitivo ao recém-criado Estado de Israel. Fechou a trilogia com Em Trânsito (2018), uma realização ao melhor estilo da escola de seu país, com um roteiro dinâmico, com cortes certeiros e precisos, concessões moderadas para o espectador, num tom seco e direto com artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das aflições políticas contemporâneas em um mundo de dúvidas constantes.

Está de volta com mais uma obra instigante, Afire, título que pode ser traduzido livremente para Em Chamas, último filme do realizador e ganhador do Prêmio do Júri no Festival de Berlim de 2023. Venceu também o prêmio de Melhor Filme Internacional para a Crítica na 47ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, suplantando por um voto Ervas Secas (2023), do festejado diretor turco Nuri Bilge Ceylan. No seu penúltimo longa, Undine (2020), Paula Beer interpreta uma historiadora abandonada pelo namorado que busca a vingança, conforme o mito que inspirou seu nome. Novamente a atriz brilha e dá toda sua magia numa atuação inspirada que dá vida à despojada personagem central Nadja, uma estudiosa em letras, que tem papel importante na trama, quando os personagens se referem à literatura alemã do século 19. Ela disfarça bem como vendedora de sorvete, e ainda cuida a casa dos pais de Felix (Langston Uibel), um fotógrafo que quer criar um portfólio, amigo de Leon (Thomas Schubert- atuação impecável), rapaz formal e sério, desconfiado, com dificuldade para dormir diante do barulho das relações sexuais no quarto ao lado, escritor em crise existencial e de criação para seu próximo romance, que aguarda a visita do seu editor (Matthias Brandt). O outro personagem é Devid (Enno Trebs), o salva-vidas do local, que tem um affaire com Nadja. Estes são os personagens do ótimo enredo construído num roteiro versátil, que se passa numa pequena casa de férias na região da Pomerânia, entre a Polônia e a Alemanha, ambientado às margens do Mar Báltico, com proximidade de uma imensa floresta em chamas com ameaças intensas pelos focos frequentes de incêndio, contígua a uma praia, onde os dias são muito quentes e não chove há semanas.

Petzold menciona com precisão certeira no roteiro Pompeia e o desastre romano com a erupção do Vesúvio, em uma das cenas em que os animais estão morrendo queimados ou sufocados pela fumaça. Já no prólogo, o carro enguiçado e a busca do caminho para se chegar até o destino, evidencia e antevê os problemas naquele lugar em que os jovens irão se reencontrar com os novos amigos. O diretor traz à baila os problemas ambientais climáticos do aquecimento global como pano de fundo para se aprofundar nas emoções em que estão relacionadas à felicidade, à luxúria e o amor que brota no desenrolar da história. Há pitadas de ciúmes e ressentimentos que trarão em doses homeopáticas as tensões geradas no grupo. Os incêndios florestais próximos funcionam como metáforas de um processo das relações humanas dentro de um panorama de solidão, na qual os personagens se aproximam por instinto dentro da casa, até que os focos amorosos são iminentes dentro de um contexto que é impossível ser ignorado.

Um cineasta instigante de filmes intimistas com fundo social, que aborda temas históricos e identitários para iluminar a consciência dos alemães pelo passado nazista. Tanto nos dramas anteriores como no atual, há uma densidade fascinante sobre a reconstrução da vida. Contextualizado dentro de um clímax equilibrado e coerente, através de uma história contada com suavidade contraditória dentro da angústia e das fragilidades de Leon, porém embrutecida por um panorama claustrofóbico oriundo dos incêndios que devastam as florestas. Permeia pela melancolia intercalada com momentos líricos, embora doloridos, neste impactante drama profundamente atual. Um filme de imagens e diálogos com força de grande expressividade pelos rostos e olhares. Mencionado por alguns críticos a similitude temática de Afire com Contos das Quatro Estações (1990-1998), dirigido pelo renomado francês Eric Rohmer, Três Formas de Amar (1993), de Andrew Fleming e Deus Sabe Quanto Amei (1958), de Vincente Minnelli. Já o diretor confessou nos debates da Mostra de Cinema de São Paulo que entre outros filmes de verão, Mônica e o Desejo (1953), de Ingmar Bergman, preferido de Jean-Luc Godard, foi sua grande fonte de inspiração.

Uma obra densa num encontro aparentemente agradável entre bons amigos, embora alguma ameaça sombria esteja rondando no ar, como o fogo da floresta ou da paixão que se aproxima. Com o escritor relutante em se relacionar tentando encerrar seu segundo livro, sente a vida mais pesada como um fardo, frisa de forma recorrente: "O trabalho não (me) permite". Afire está entre as melhores realizações do cineasta pelas suas qualidades indiscutíveis e meritórias de grande artesão. Um drama que não cai na caricatura e nem nas armadilhas fáceis do maniqueísmo contumaz de alguns filmes pouco consistentes. Há tensão, amor e intensidade elaborados sem exageros, com cenas de construções de personagens aparentemente fortes, mas psicologicamente fragilizados, bem alicerçados por uma direção autoral magnífica, através de uma amostragem pela beleza dos detalhes, marcante no olhar revelador, segurando até o desfecho inusitado de um enredo recheado de realismo de um cinema perturbador na essência. Os acontecimentos deixam sequelas que irão marcar as vidas desses jovens. A reflexão indica que há motivos para uma admirável aprendizagem. O desfecho em aberto deixa margem para interpretações do espectador, por ser sensível e comovente como na última cena deste fabuloso filme, um dos que deverá constar nas listas dos críticos de melhores do ano.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Meu Nome é Gal

Ascensão de uma Estrela

Meu Nome é Gal se justifica como uma das melhores realizações que estrearam neste ano em que o cinema brasileiro atinge o ápice meritório de obras indiscutíveis. Fica ao lado de outros dois excelentes documentários indicados ao Oscar de 2024: Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você (2022), de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay e Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho. Eis uma cinebiografia extraordinária sobre a ascendência aos píncaros da glória de Maria da Graça Penna Burgos Costa, ou Gracinha como era chamada pela mãe protetora, que virou a grande estrela Gal Costa (26/09/1945 - 09/11/2022). A protagonista acanhada é desnudada desde sua chegada ao Rio de Janeiro no início dos anos de 1960, oriunda de Salvador (BA), e está longe de ser uma obra chapa branca. Retrata a mutação da tímida jovem cantora que a transformaram tanto esteticamente como sua participação, embora discreta, na efervescência da política brasileira sob o regime ditatorial do golpe de 1964, na promulgação do AI-5 e as prisões por atacado de quem contestava o estado de exceção instaurado no Brasil. Sentiu na pele e passou por um período de depressão, pois sofreu muito com os exílios em Londres de seus melhores amigos e incentivadores Gilberto Gil (Dan Ferreira), Caetano Veloso (Rodrigo Lelis, muito idêntica a personificação, tanto na semelhança física, quanto na linguagem) e sua mulher Dedé Gadelha (Camila Márdila).

As diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira (que também assina o documentário O Nome Dela é Gal, em 2017) passam em revista com sutileza a vida pessoal, artística e a trajetória da renomada artista biografada, num recorte de 1966 a 1971. Talvez o público saia da sessão sem sentir que conseguiu conhecê-la de forma total. Porém, percebe com clarividência a timidez como uma característica que vinha atrelada em sua personalidade, quando se falava sobre ela, mas a artista tinha muitas outras nuances que foram bem encarnadas pela perfeita interpretação. Uma cena marcante é quando a mãe (Chica Carelli) descobre que a filha não se relaciona apenas com homens. As sequências que envolvem as duas mostram a sensibilidade de Gal e a vontade de se libertar. Um filme para todas as gerações, que humaniza a protagonista num momento difícil pela árdua superação que resulta no profundo desabrochar pela metamorfose em direção ao renascimento, como afirma seu empresário bem humorado Guilherme Araújo (Luis Lobianco) -sem o estereótipo do cafajeste já visto em vários filmes, e responsável pelo nome artístico Gal Costa- sobre a jovem talentosa de 20 anos de idade como a “borboleta que sai do casulo”.

Cabe ressaltar que a música servia de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para deixar na tela como reflexão aquele período sombrio, onde as canções mais famosas de sua trajetória são mostradas dentro de um contexto social perigoso para o artista, como bem retrataram os documentários Chico-Artista Brasileiro (2013), de Miguel Faria Jr., e Elis (2015), de Hugo Prata. Além de Gil, Caetano e Dedé, ela teve o apoio de Maria Bethânia (Dandara Ferreira), mas sofreu zombarias do diretor de televisão (Fábio Assunção), em seus primeiros passos para a música profissional até atingir a fama. Formam o icônico movimento da Tropicália em que ela é uma das principais vozes, onde se realçava as roupas coloridas e diferentes das que ditavam a moda na época, com resistência pela introdução da guitarra elétrica, logo associada ao rock and roll dos EUA e Inglaterra. Uma quebra de paradigmas de comportamentos, cultura, subversão e evolução.

Merece um capítulo à parte a magistral atuação de Sophie Charlotte, conhecida por personagens secundárias insossas em novelas e seriados. Atinge o apogeu com o maior papel de sua carreira, mesmo que tenha dublado a lendária canção Baby num dos festivais da época, de Caetano Veloso, gravada no histórico álbum Tropicália (1968), composta para a irmã Bethânia, que optou por não participar do disco (Você precisa saber da piscina, Da margarina, da Carolina, da gasolina, Você precisa saber de mim, Baby, baby, eu sei que é assim, Baby, baby, eu sei que é assim, Você precisa tomar um sorvete na lanchonete, Andar com a gente, me ver de perto, Ouvir aquela canção do Roberto...). A maioria das outras músicas da trilha sonora interpretou com elegância e finesse. Atua com uma impressionante dramaturgia, muito além da expectativa. Não é fácil encarnar uma gigante como Gal Costa, que deu seu aval à atriz por considerar o timbre de voz muito próximo do dela. Demonstrou soberbo vigor físico e psicológico para uma construção despojada que atinge a exuberância com seus cabelos encaracolados e sua voz meiga, os trejeitos, o sorriso, a afinação, sem tentar imitar, com o gestual marcante e intimista da emblemática artista baiana sensível, resguardada e poética.

Com a bela fotografia de Pedro Sotero, bem montado por Eduardo Serrano, o dinâmico roteiro de Maira Bühler, Lô Politi e Mirna Nogueira, as diretoras primam pela sensibilidade e as sutilezas sugeridas com algumas revelações. Em entrevistas, Gal já havia contado que, quando criança, costumava cantar com a cabeça enfiada dentro de panelas em sua casa, com a intenção de se ouvir e treinar a própria voz, os tons e a respiração. Além dos aspectos convulsivos da política abordado na época, quando se faz um pontual panorama através de um resumo sobre o anacrônico regime ditatorial que passou sem deixar saudades, é um filme para ser degustado com as doces e saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira, bem compilado no desfecho junto aos créditos finais. O resultado não poderia ser melhor para deleite do espectador nesta imersão que beira ao sensorial pelos caminhos da melhor cantora dos Brasil, pelas palavras de João Gilberto, também para grande parte da crítica e do público, embora haja uma disputa acirrada com a não menos notável Elis Regina. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos como poemas profundos. É proibido levantar o volume da voz para não atrapalhar o êxtase. Apesar das tensões advindas do período em que se passava de iminente ameaça aos artistas musicais, a história faz estes registros para contar a turbulência da ditadura em sincronia com a importância do legado da estrela. Um passeio pela trajetória de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades de uma estrela, por isto se insere como uma cinebiografia singular, que certamente estará entre os 10 melhores filmes no final do ano.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você

 

Dois Gênios

O veterano Nelson Pereira dos Santos dividiu a direção com a neta de Tom Jobim, Dora Jobim, ao realizar com méritos o documentário A Música Segundo Tom Jobim (2012). Optou pela boa música e o acervo fotográfico da carreira deste cultuado cantor e compositor brasileiro que conquistou o mundo musical e se consagrou como um dos ícones de todos os tempos, cantando em português e muitas vezes também em inglês, num formato de videoclipe essencialmente com música nas diferentes vozes e interpretações em vários idiomas, entre eles o italiano, o francês e o inglês, inclusive em parceria com Frank Sinatra. Já o diretor Hugo Prata quando começou a trabalhar no longa-metragem Elis (2015), encontrou algumas dificuldades para concluir esta magnífica cinebiografia sobre a maior cantora do Brasil de todos os tempos, para maioria da crítica e parte do público. Elis Regina cantou samba, disco music e consagrou-se definitivamente na MPB. Detentora de uma voz afinadíssima e cristalina, colocava muita emoção na interpretação com seus gestos coreográficos no palco, que a tornou uma cantora completa pelos seus recursos técnicos. Mulher de personalidade forte, por isto o apelido de “Pimentinha”, logo se impôs no universo machista para viver paixões arrebatadoras. Sempre quis ser a melhor, batalhou lutou, foi debochada, espezinhada e chamada de “Hélice Regina”- alusão pelos movimentos de braços girando como pás para o eixo no espaço- pelo seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), um mulherengo inveterado, em um casamento conturbado por brigas violentas e algumas baixarias.

Agora Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay dividem a direção para unir em Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você estas duas estrelas do mundo musical. Contam através de vídeos caseiros e imagens da gravação do histórico álbum lançado em 1974, que juntou a cantora Elis Regina com Antonio Carlos Jobim (popularmente conhecido como Tom Jobim). Gravado em mais de cinco horas por quase 50 anos pelo produtor e empresário da cantora, à época, Oliveira apresenta os registros em Los Angeles, nos Estados Unidos e diz: "Chegando lá eu percebi que eu tinha que filmar aquilo. Percebi que eu estava diante de um evento histórico". O filme retrata uma variedade de materiais inéditos, que permaneceram guardados, e que mostram todos os bastidores com os conflitos e as diferenças da dupla de gênios. Por muito pouco o álbum não foi interrompido, mas que só foi até o fim graças aos diálogos ásperos, às vezes rancorosos e em outros com sorrisos amarelos para obter algumas concessões dos dois. O resultado não poderia ser melhor nestes momentos maravilhosos para deleite do espectador nesta imersão sensorial, com a bela fotografia de Fernando Duarte e o ótimo roteiro de Nelson Motta. Apesar das tensões musicais, a história fez estes registros singulares de uma das mais belas interpretações que dá para classificar como extraordinária, em um momento divino e satânico, onde Tom manipulava as peças com seu estilo clássico, por vezes intransigente, como nos arranjos das canções realizadas por César Camargo Mariano, marido à época da cantora, que não aceitava o piano elétrico do músico.

Eis um dos maiores, se não o melhor documentário musical de todos os tempos realizado no Brasil. Entre tapas, beijos e ciúmes se fez um histórico disco com a obra-prima Águas de Março, interpretada com elegância sóbria pelos dois titãs em um dueto antológico, é uma das canções brasileiras mais regravadas. O filme conta o início turbulento dos trabalhos, os acertos e a consagração final de um trabalho impecável. Os diretores conseguem com habilidade fugir da realização chapa branca. Para isto, dá o direito da plateia sentir a fogueira de vaidades nos bastidores. Em uma das cenas,Tom aparece num programa de televisão onde é perguntado, mas nega, se é verdade que teria dito: “Esta gaúcha ainda cheira a churrasco”. No contraponto, Elis teria sugerido a Tom que: “Bossa Nova é para quem não sabe cantar”. Um filme que instiga e arrepia, pois ninguém levanta da sessão de cinema até o último crédito ao som da inesquecível canção. Fica a sensação de lembrar com sensibilidade as sutilezas sugeridas, os antagonismos, e por fim o êxtase. Para lavar a alma e deixar os ombros mais leves, e sorver as doces e saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira deste filme que conquistou a crítica e foi reconhecido como o Melhor Filme Brasileiro na 46ª. Mostra de São Paulo do ano passado, onde recebeu elogios e aplausos merecidos. Sua jornada começou com exibições especiais no Festival do Rio 2022. A produção também atraiu atenção internacional ao ser apresentada no Marché du Film do Festival de Cannes. Representará o Brasil no Oscar de 2024 na categoria de Melhor Documentário.

Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você mostra com elegância admirável as alfinetadas, ironias, sarcasmos, irreverências e até lágrimas, tudo com delicadezas essenciais. André Midani, Roberto Menescal, João Marcelo Bôscoli Filho, filho de Elis, e Beth Jobim, filha de Tom, manifestaram suas opiniões sinceras ao serem entrevistados. Uma obra para todas as gerações, tendo como marco histórico a gravação do célebre disco em 1974, que humaniza os dois personagens centrais diante da magnânima superação que resulta no profundo apaixonamento artístico entre eles. Vale ressaltar que a música servia de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para deixar na tela como reflexão aquele período sombrio. Não é um documentário somente para os fãs de Tom e Elis, mas para todos os apreciadores do refinamento da música de qualidade, sem gritos e histerias, apelações ou grotescas baixarias. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos. Para os que não gostam deles, ao assistir poderão ter a grande chance de mudar alguns conceitos equivocados. Sobre os que estão em dúvida se gostam ou não, dificilmente deixarão de aderir e cantarolar. Ainda que não ganhe festivais, talvez nem ousasse tal intenção, mas ficará registrado na memória o inesgotável poder de criação, pois os gênios nunca deixam secar a fonte e estão sempre presentes para seus admiradores contumazes e até possíveis detratores.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Retratos Fantasmas

 

Viagem ao Passado

O cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho estreou com o cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio. Refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belas moradias bem protegidas. Depois viria causar polêmica com Aquarius (2016), diante do protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes. Virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O terceiro longa, Bacurau (2019), dividiu a direção com Juliano Dornelles, e ganhou o prêmio do Júri no Festival de Cannes daquele ano. Mostrou arrojo ao criar um inusitado faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata.

Mendonça está de volta com este extraordinário documentário Retratos Fantasmas, que dialoga com a ficção quando divide em capítulos, faz incursões num roteiro ficcional, e flerta com uma obra de características de puro ensaio. Reflete a preocupação do cinema autoral com a temática do cotidiano das salas de cinema de calçada sendo invadidas pelas farmácias, igrejas e a especulação imobiliária no desenvolvimento urbano acelerado. Ambientado no centro de Recife como uma espécie de personagem principal através do imaginário e das muitas memórias, durante o século XX. Ao longo de uma hora e meia, faz colagens de 60% de imagens de arquivos públicos, fotografias, vídeos e registros impressionantes em movimento, sendo a grande maioria de seu próprio acervo. Explora a história humana e o histórico centro da cidade ao pontuar seu enredo a partir das salas que eram pontos de referência e atraíam a população ditando comportamentos de uma época. Levou sete anos para o trabalho de pesquisa até concluir a obra e fazer sua estreia internacional no Festival de Cannes deste ano, com o lançamento nacional se efetivando ao abrir, fora da competição, o 51º. Festival de Gramado. Foi selecionado para participar dos festivais de Toronto e Nova Iorque, sendo também forte candidato para representar o Brasil na disputa do Oscar Internacional de 2024.

O filme tem como ponto de partida a vista da janela da casa do cineasta que retrata com delicadeza o lado familiar e carinhoso, onde morou por mais de quarenta anos, desde a infância com seus pais até se casar, e lá permaneceu por mais um bom tempo. No prólogo, o diretor convida o espectador para entrar dentro do imóvel em que viveu, filmou, e produziu várias de suas realizações. Enfatiza as farmácias, igrejas e as novas construções desenfreadas que só visam lucros, pouco se importando com a cultura, tomando o lugar das salas de cinema de rua. A narrativa traz no bojo um novo realismo da cidade onde nasceu, do cinema regional e do nacional. Uma temática universal dos grandes centros urbanos do mundo, porque ali estão estampados os novos tempos de qualquer capital do país- Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e as demais- que se renovam para uma adequação de novas demandas. Deixa para trás um cotidiano retrô que virou fantasmas de lugares e pessoas que por lá passaram e ficaram suas lembranças que se eternizaram nesta comovente viagem que traz um pouco de amargura nostálgica até para as gerações mais novas que não vivenciaram estes tempos vistos como um momento especial dos cinemas de calçada.

As realizações anteriores de Mendonça já abordavam com sensibilidade e sutileza a importância dos lugares nas histórias, tanto em Som ao Redor no dia a dia de uma dona de casa cansada com seus dois filhos, típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha. Já Aquarius retratava a especulação imobiliária pela ganância especulativa sem limites. Trazia a exacerbação pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio. Chegou ao cúmulo de plantar ninhos infestados de cupins para demonstrar a força do poder como ameaça explícita à integridade física da proprietária. A realocação e a modernização ditadas como regras de soluções pragmáticas chocam-se com o bem-estar e o sagrado direito da livre definição, ainda que seja tachada de retrógrada para simbolizar sua liberdade de decisão, contrapondo-se ao que é salutar para o destino da protagonista traumatizada pelas cicatrizes decorrentes de um câncer. Retratos Fantasmas é uma maneira continuada dos enredos destes dois magníficos filmes anteriores de Mendonça, como o fechamento de uma trilogia notável sobre uma cidade que perde sua identidade. Aponta para a imposição do progresso desvairado dominando o contexto ao demonstrar que os áureos tempos ficaram para trás num retrato dos contrastes de uma realidade de anomalias e distanciamentos ao nosso redor num filme que simboliza o resgate da história.

Os sonhos convulsivos de outrora das salas de cinema de calçada que perderam seus espaços estão nesta estrutura narrativa em off do diretor de inspirada criatividade, que sai ileso ao não cair na obviedade do lugar comum e nas armadilhas melodramáticas. Ainda que haja um viés saudosista pelos elementos caracterizadores envolventes de memórias individuais e coletivas das imagens dos letreiros premonitórios da política brasileira, bilheterias acanhadas e os velhos projetores com rolos de fitas, fica uma contundente marca plástica de rara qualidade neste paradigmático documentário sobre o contraste dos novos tempos com o passado dos espaços das salas de cinema de rua que deixaram uma lacuna emocional ao serem transferidos para dentro de shoppings. Há sugestões, em algumas cenas, que lembram o clássico Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, como na cena admirável com os lamentos do projecionista. O epílogo nos remete para dois filmes do cineasta iraniano Jafar Panahi: Taxi Teerã (2015) e Sem Ursos (2022), bem como o motorista angustiado em Taxi Driver (1975), dirigido por Martin Scorsese, onde Mendonça aparece dentro de um carro, em frente às câmeras, faz um personagem ao lado de um ator interpretando um motorista de aplicativo e suas travessuras invisíveis, numa incrível sequência ficcional com insinuações de realidade na essência. Registra com delicadeza e uma dose bem-humorada para suavizar o peso melancólico cortante e doloroso até o desfecho destes densos fantasmas pretéritos. Uma abordagem explorada profundamente como uma obra maior no cenário nacional, que deverá estar nas listas dos críticos nos 10 melhores filmes do ano.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Casa Vazia

 

Solidão no Pampa

O primeiro longa-metragem do diretor gaúcho Giovani Borba, Casa Vazia, que também assina o roteiro, é uma agradável surpresa no cenário nacional, nesta coprodução com o Uruguai. Foi vencedor no Festival de Gramado do ano passado nas categorias de melhor ator, roteiro, trilha sonora, desenho de som e a fascinante fotografia com cores desidratadas, assinada por Ivo Lopes Araújo, que também ganhou no Festival do Rio de 2021. Uma exemplar construção de uma encenação que reflete as perdas do cotidiano na medida em que os sentimentos dão a transição do dia para o anoitecer e as expectativas que reservam. O realizador segue os passos da conterrânea Cristiane Oliveira, no drama familiar Mulher do Pai (2015), bem como há também uma boa similitude com Rifle (2016), de Davi Pretto. Em ambas as obras existe um universo taciturno do Pampa gaúcho, onde a solidão salta aos olhos dentro de um contexto desolador do trabalho rural em franca decadência ao migrar para o plantio de soja nos grandes latifúndios, na qual a pecuária perde espaço e ruma para uma provável extinção, causando um sério constrangimento social pelo desemprego.

São escassos os filmes que retratam as paisagens dos pampas no Rio Grande do Sul, um dos maiores biomas do Brasil, com suas vicissitudes e idiossincrasias características. Além dos já mencionados, há épicos sobre a vida dos heróis da Revolução Farroupilha, como o de Beto Souza e Tabajara Ruas em Netto Perde Sua Alma (2001), Netto e o Domador de Cavalos (2008), de Tabajara Ruas, e Anahy de las Misiones (1997), de Sérgio Silva, interpretada pela estupenda atriz Araci Esteves, que agora encarna a mãe do protagonista em Casa Vazia. O cenário de aventuras agora dá lugar para os campos extensos, antes usados somente como pastagens e criação de gado, porém cedeu seu território para a monocultura do grão. É nesse lugar que vive Raúl (Hugo Nogueira - ator estreante de convincente atuação), um peão desempregado de meia-idade, pai de família, que vive em uma isolada casa humilde, ou seja, uma legítima tapera com paredes sem tinta, raros móveis, sem água potável e internet, com energia elétrica gerada pelos cataventos, na imensidão solitária dos campos. O cineasta aponta para a mão de obra tradicional da lida com bois, vacas e ovelhas que já não serve mais aos novos padrões dos donos das terras. Assolado pela pobreza e a falta de trabalho, o personagem central se junta a outros indivíduos para a prática do abigeato -roubar gado- durante a escuridão das noites nas estâncias. Ao retornar de mais uma madrugada de ilicitudes, encontra sua casa vazia, tendo sua mulher e seus filhos desaparecidos.

A realização mostra o microcosmo familiar sendo abalado pela desgraça, por isto Raul procura uma benzedeira, onde é evocada a lenda do negrinho do pastoreio, segundo reza a lenda, ele ajuda a recuperar algo perdido. Além do desemprego recorrente nacional, agora tem outro problema a enfrentar: tentar reencontrar seus familiares naquela paisagem de tristeza e desolação, na qual é retratada uma vida sem dignidade com conflitos pessoais pela depressão e o alcoolismo latente. Da ação vem a reação dos fazendeiros da região que se unem à polícia local para cercar os transgressores da lei - embora vítimas de um contexto social pela degradação gritante- e realizam vigílias armadas na caça aos larápios. Enquanto isso, a trajetória do protagonista fica cada vez mais repleta de incertezas, está pressionado pelo líder do bando (Roberto Oliveira), que teme perdê-lo e faz intimidações. Do outro lado, está seu cunhado (Nelson Diniz), chefe da equipe de segurança dos estancieiros que faz uma oferta para trabalhar na repressão aos abigeatários. Concorda com os dois lados, sem convicção, e se vê num beco sem saída para a busca da altivez. As imagens dizem tudo, nem é preciso diálogos, de acordo com o lado em que esteja, é matar ou morrer.

O diretor mostra a emblemática dúvida de um peão solitário perdido no universo da ética e da dignidade em confronto com uma situação caótica, onde terá de lidar com a realidade das perdas familiares pelo abandono, as diversas transformações que cercam o rumo de um homem, até então, sempre digno e trabalhador. As peculiaridades típicas do interior, mais precisamente nas pastagens da campanha, onde o cavalo é trocado pela bicicleta, num disruptivo gaúcho com suas tradições elementares, no qual ainda preserva o velho e bom chimarrão nas manhãs e nos finais de tarde. Observa o longínquo horizonte do prado sendo engolfados por outra cultura de trabalho. Embora haja um vazio circunstancial elementar pela dramaticidade dos personagens nas inerentes artimanhas, o roteiro deixa transparecer uma tristeza existencial profunda. Borba realça o olhar perdido daquele cenário de imensa solidão com a câmera apontada para aquele rosto sulcado. Há uma aparente indiferença quando o peão examina detidamente seu passado e a nova paisagem rural contrastando com uma inversão dos atuais valores que levaram aos píncaros da glória e do orgulho, mas que ficaram perdidos pelos caminhos tortuosos do passado, através do recurso apropriado de longos planos-sequência.

Um drama magnífico que dialoga com o suspense em que o silêncio é marcante, com imagens reveladoras e poucos diálogos, por serem necessários. Com sutileza e habilidade rara, o promissor cineasta acerta em cheio em sua estreia nesta sensível opção de abordar a temática do Pampa. Estamos diante de uma produção minimalista notável pelo esmero e zelo da construção do enredo e os personagens que desfilam com sobriedade. Há méritos na condução do espectador para acompanhar um vínculo de importância dos personagens, especialmente do protagonista, envolvidos pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquela paisagem sóbria que lá atrás foi mais fértil e alvissareira, com seus usos e costumes cultuados no dia a dia. Casa Vazia é um filme peculiar e instigante que provoca conflitos que giram em torno do orgulho e da dignidade; sobrevivência, ética e honra; trabalho e desemprego. Cria contrastes de uma realidade caótica que compreende as necessidades de um Pampa fragilizado, outrora mitológico. Embora confabule com o naturalismo, passa por um realismo singular e cruel, transmite a melancolia com suavidade nesse cenário amplo, às vezes claustrofóbico, da fronteira com o Uruguai. Há méritos por não apelar para o melodrama rasteiro folhetinesco, deixando o sentido do existencialismo aflorar para a reflexão do espectador, num desfecho contemplativo pelo fogo em consonância com a liberdade metafórica na sua essência.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

A Noite do Dia 12

 

Feminicídio

Vem da França o perturbador suspense psicológico mesclado com thriller policial A Noite do Dia 12, com direção do alemão de nascimento e de nacionalidade francesa Dominik Moll. Tem em sua filmografia Harry Chegou Para Ajudar (2000), O Monge (2011), Más Notícias Para o Sr. Mars (2016), Only The Animals (2019), entre suas realizações anteriores. Reaparece com seu novo longa-metragem vencedor de melhor filme no César do ano passado, o Oscar francês, direção, ator revelação (Bastien Bouillon), ator coadjuvante (Bouli Lanners), roteiro adaptado e som. Enriquece o cinema pela intensa dramaticidade nesta exemplar narrativa de um crime hediondo praticado contra uma bela jovem ao retratar os desdobramentos dos elementos ocultos da natureza humana e o feminicídio recorrente contra a mulher. Retrata os desmandos de parte de uma polícia com viés machista demonstrada ao longo da situação apresentada sem a solução corriqueira. Segue os caminhos abertos da possibilidade de se transformar num relato sobre a agressividade humana, sempre gerada pelos enigmas apresentados e desconhecidos, algo sugerido pelo cenário da sequência do enredo.

Baseado em fato verídico ocorrido em 12 de outubro de 2016, o filme foi inspirado no livro de Pauline Guéna, que passou um ano acompanhando policiais parisienses para escrever sua obra, adaptado por ela mesma em parceria com o diretor e o roteirista Gilles Marchand. A trama, em seu prólogo, mostra a celebração de duas festas, a despedida de um chefe da repartição policial que se aposenta, o veterano e desiludido Marceau (Bouli Lanners), com seus problemas existenciais diante do rompimento do casamento após a revelação da gravidez da esposa. Assume seu posto o protagonista Yohan Vivès (Bastien Bouillon), um investigador da polícia perseguido por um caso que lhe causa um incômodo obsessivo marcante em sua carreira, neste início de uma nova etapa na vida como o novo capitão. A contagiante alegria de confraternização com sua equipe será substituída pelo crime antecedido pelas imagens da noite num cenário de solidão, apenas com um gato preto e toda a superstição advinda do passado medieval, na referência da queima das bruxas. Concomitante, uma nova alegria surge de uma casa em um vilarejo no sudeste da França, decorrente de uma festinha familiar finalizada com a presença de algumas amigas, surge a jovem Clara (Lula Cotton-Frapier), de 21 anos, usando descontraidamente um celular, grava um recado para sua melhor amiga, Nanie (Pauline Serieys), e acaba por ser assassinada de maneira cruel ao ser queimada viva com gasolina por um desconhecido, vira uma tocha humana.

O roteiro enxuto, mas com grandes reviravoltas, dá uma dinâmica de um clímax dolorido e preocupante, sendo que o filme é dominado por uma forte dramaticidade pela habilidade meritória do cineasta de forma sensível. Nanie, em flagrante fragilidade, dá um testemunho relutante para a investigação, profere uma frase marcante ao afirmar que Clara “morreu por ser mulher”. Outra voz contrária aos comentários sexistas é da policial Nadia (Mouna Soualem), ressalta que “os homens matam e os policiais que investigam são os homens”. Perigosamente, os encontros e desencontros da vítima com vários ex-namorados são vistos como uma espécie de culpabilização por parte dos investigadores para que haja motivos para seu assassinato. A partir deste ponto enviesado, segue um rumo inesperado, pois há um afastamento visível do empenho em busca do criminoso, no qual se revela o ciclo perverso da violência que se torna rotina ao retratar o crime porque “qualquer um poderia tê-lo cometido”. Porém, há uma resistência comovente do novo capitão Yohan, que tem como hobby, todas as noites, depois do expediente, andar em sua bicicleta de corrida numa pista oval, embalado pela canção de Olivier Marguerit. Pedala em círculos intermináveis, com a expressão compenetrada, como uma válvula de escape das imagens da moça que não lhe sai da cabeça, visando atenuar o estresse do cotidiano. Faz dessas corridas noturnas, que não levam a nenhum lugar, uma metáfora frustrante do crime que está tentando colocar um desfecho, quase desesperador do mistério indecifrável. Cada vez mais obcecado em solucionar o caso, embarca em uma espiral interminável de segredos obscuros em busca de pistas e sinais que possam levá-lo até o culpado do crime brutal.

Com sutileza e imparcialidade, o diretor foca a trama nas oitivas dos policiais com os suspeitos que surgem conforme destrincham a vida social e amorosa de Clara. As reações violentas diante de figuras e fatos são associadas a forças ameaçadoras contemporâneas, bem acentuadas no desenrolar da história. A violência contra a mulher está bem demonstrada na agressividade diante da resistência no comportamento e na chegada de valores pouco dignos de uma sociedade machista neste instigante relato sobre os preconceitos e a violência cultuada. Um retrato singular sobre o feminicídio através da misoginia encravada com cenas impactantes, capazes de despertar a repulsa desta realidade desprezível do ódio às mulheres, que reforça os efeitos do machismo incrustado. Os interrogatórios envolvem deboches e julgamentos pré-concebidos de uma cultura avessa ao gênero oposto, exceto as demonstrações de empatia advinda dos pais, da amiga, além do investigador que abraçou a causa com ardor. Há zombaria do rapper criador de letras, do primitivo homem orgulhoso que cultua sua força física como um agressor impiedoso, entre tantos outros investigados.

O longa, entre tantos méritos apontados, além de oferecer uma plêiade de personagens construídos de carne e osso com seus aspectos psicológicos marcantes, afasta os recursos apelativos, tanto da violência explícita, quanto dos recursos lacrimejantes superados, ainda escapa com habilidade do maniqueísmo ao retratar o processo com suas derrocadas. A violência dá o tom das interações entre os gêneros, mas ao ser naturalizada, torna impossível de identificar, isolar e punir pelo pragmatismo simbólico. Há uma imensa desilusão desta teia de mistérios de uma realidade melancólica que se esconde na sociedade dominada pela irracionalidade. Mostra as mulheres sendo desumanizadas e culpabilizadas pelos crimes dos quais elas são vítimas, na qual não é a mesma situação aos homens, bem exemplificado no brutamonte com histórico de violência doméstica que continua vivendo normalmente. Eis um ensaio das inerentes dificuldades nos relacionamentos humanos diferentes de gêneros, onde a essência da hipocrisia machista do macho alfa é apontada para contrastar com a dignidade do outro possível novo homem solidário e cortês com suas dores e obsessões de um futuro, quem sabe promissor, sinalizado pelo protagonista. Há elementos indispensáveis que contribuem para as angústias de um imenso sofrimento que restam como sombras permanentes. Fica uma dolorosa sensação de insegurança pela falta de equidade que traz as diversas desconfianças transmitidas. Uma cumplicidade com o silêncio, ou a sátira, de personagens que deveriam se preocupar mais com o possível culpado ao invés da vida pregressa da vítima, com desculpas facilitadas para esconder a triste realidade mantida por uma sociedade ainda dominada e amordaçada pelo pensamento patriarcal. Um mergulho sobre as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham a violência contra as mulheres neste extraordinário suspense, que deverá estar nas listas dos críticos dos 10 melhores filmes no final do ano.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

O Crime é Meu

 

Verdades e Mentiras

François Ozon é um dos mais célebres e prolíficos cineastas franceses de sua geração, por ser nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. Assim como Woody Allen, alcança a marca de quase uma produção por ano. Sua filmografia, entre curtas e longas, é formada por 46 títulos e está recheada de realizações com temáticas diversas, tais como: O Refúgio (2009); Potiche-Esposa Troféu (2010); Dentro de Casa (2012); Jovem e Bela (2013); o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a linda Paula Beer; o ótimo O Amante Duplo (2017); o polêmico Graças a Deus (2019), baseado em fatos reais ocorridos em Lyon, na França, no qual retratou de forma imparcial, nua e crua, a pedofilia velada na Igreja Católica, com denúncia de requintes psicológicos nefastos na sua mais pura essência; no controvertido Está Tudo Bem (2021), constrói um painel doloroso para contar uma amarga história de um industrial idoso acometido de um AVC irreversível que o deixa semiparalisado, numa temática polêmica por retratar o suicídio assistido; fez releituras para o cinema de referência com Peter von Kant (2022), assim como já o fizera com Frantz.

A última obra do realizador producente é O Crime é Meu, uma comédia escrachada, fora do convencional, que origina situações inesperadas, onde o farsesco é um elemento indispensável como linguagem para a criação desta apreciável radiografia amarga sobre as hipocrisias de uma sociedade pequeno-burguesa. O próprio diretor escreveu o roteiro livremente baseado na peça teatral estreada em 1934 Mon Crime, de Georges Berr e Louis Verneuil, terceira adaptação para o cinema. Os figurinos e a cenografia estão bem adequados e exemplarmente construídos com o rigorismo formal para uma charmosa Paris dos anos de 1930. Tudo lembra um grande teatro burlesco, com críticas incisivas ao sistema judiciário, transformado num julgamento encenado com os devidos artificialismos da época. Os desmandos de uma polícia atrapalhada e com o viés de se livrar logo da situação apresentada de um crime para uma solução imediata. Porém, tudo começa a desandar quando a autêntica história vem à tona, no surgimento em cena da suposta legítima assassina, não para preservar a integridade ética dos fatos verdadeiros, mas por nutrir uma inveja intensificada da atenção recebida pela jovem acusada que assumiu a autoria criminal, sendo absolvida por legítima defesa, acaba celebrada como heroína na mídia e obtém uma consagração artística de um sucesso estrondoso.

A trama gira sobre Madeleine (Nadia Tereszkiewicz), uma atriz jovem, pobre e sem talento, acusada de assassinar um famoso produtor de teatro. Conta com a ajuda da melhor amiga, Pauline (Rebecca Marder), uma advogada desempregada, que a defende com alguns métodos pouco éticos. Elas moram juntas e estão endividadas, inclusive pressionadas pela cobrança do locador que não suporta mais as desculpas para justificar cinco meses de aluguel atrasado. As relações humanas então se revelam tanto para o bem quanto para o mal. Quando a verdade é deslindada, o filme ganha uma nova dinâmica no eclético roteiro, com a aparição vivaz de uma diva esquecida do cinema mudo (Isabelle Huppert) que reivindica para si a autoria do delito. Uma cena marcante é quando ela procura o delegado (Fabrice Luchini), dando uma dimensão maior com a troca abrupta dos rumos da investigação. Embora o tempo seja os anos de 1930, o enredo aborda uma época absolutamente moderna e atual em que as mulheres se unem contra o poder corporativo dos homens num verdadeiro choque de gêneros dentro de uma complexa trama criminal bem humorada. Instiga a plateia a entender as diferenças e os conflitados avanços para a mulher empoderada que surge como um vulcão. Buscam seus direitos inalienáveis de ambição justa para ter o domínio da sua própria vida, pelos ventos que sopram para um norte sem retrocesso.

A narrativa traz um curioso desenrolar da história contada com elegância e sem artifícios de compaixões rasteiras. Uma comédia lunática com repletos diálogos beirando o inverossímil, mas apesar dos absurdos lançados, o foco nunca sai da tela e as nuances de construção são dignas de uma realização meritória que acentua o ridículo das situações onde as pessoas que formam a sociedade burlesca estão rigorosamente dentro de um contexto de conveniências e interesses escusos. Às vezes, com característica da Era de Ouro da Indústria de Hollywood; em outras, se nota a inspiração no mestre francês Alain Resnais, como por exemplo, em Ervas Daninhas (2009). Ozon não deixa de trazer os elementos que são caros e reveladores por perturbar através do cinema a investigação da vida íntima, ocasionalmente até acrescenta um tom de fábula adulta para apresentar as dores e as intrínsecas necessidades de personagens inseridos num mundo em transformação, mesmo que o sucesso venha a qualquer preço, como “os fins justificam os meios”, defendido por Maquiavel, no best seller O Príncipe, no qual conquistar e manter o poder justificariam manipular as leis ou usar a força.

O Crime é Meu transforma o julgamento numa espécie de teatro através de uma crítica ácida aos preconceitos, fobias e idiossincrasias inerentes mostrados, como o narcisismo do promotor, o delegado atrapalhado, a pavonice do juiz, o noivo avesso ao trabalho, e a defensora com suas carências e anseios, numa época voltada para o exercício da repressão, onde a mulher era submissa. A exposição visceral retrata a dureza moralista de uma sociedade machista contrária aos interesses do sexo oposto de maneira nefasta. São os elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado sobre a sufocante batalha das duas personagens centrais reclusas da opinião pública. A farsa transforma uma picante história de um crime como resistência e redenção do feminismo revolucionário, muito bem articulada pela marca de um diretor atento aos problemas sociais, que cria uma digna realização humanista, com tintas satíricas para retratar uma realidade obsoleta. Sem a preocupação em definir verdades e mentiras, mas extrair um painel jocoso e risível de uma coletividade que fabrica figuras traiçoeiras. Ozon segue fiel à ironia fina nesse grandiloquente blefe alimentado por extravagâncias através de uma grande brincadeira. Uma narrativa pela ótica da mulher, para mesclar situações presentes com um futuro que almeja ao tentar driblar as adversidades. Uma reflexão admirável sobre a condição humana feminina e suas perspectivas com uma pujança feroz estimulante de ser livre e se impor diante das hipocrisias de uma sociedade burguesa retrógrada.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Cinema Victoria Reabre Atividades

 

Cinema Victoria Reabre Atividades

Uma ótima notícia para os cinéfilos: reabriu hoje o charmoso Cinema Victoria de Porto Alegre. Está ali, bem localizado no Centro Histórico, com entrada pela Av. Borges de Medeiros e pela Travessa Engº. Acilino de Carvalho (Rua 24 horas). Reaparece no cenário cinematográfico uma lenda do patrimônio da arte, um dos últimos cinemas de rua que foi empurrado nos últimos tempos para dentro de uma galeria. A trajetória começou com o cinema originalmente se chamando Vera Cruz, tendo sua primeira sessão em 04 de setembro de 1940, com a exibição do longa-metragem A Mulher Faz o Homem (1939), de Frank Capra. No início da década de 1950, fechou pela primeira vez, mas voltou a reabrir em 12 de setembro de 1953, com o nome de Victoria, exibindo A Dupla do Barulho (1953), de Carlos Manga, com Grande Otelo e Oscarito. Fechou novamente em 1998, reabriu em maio de 1999, vindo a fechar outra vez em 2018.

Foi ali que assisti meu primeiro filme na Capital gaúcha, o longa Um Certo Capitão Rodrigo (1971), de Anselmo Duarte, com Francisco Di Franco, Elza Prado e Pepita Rodrigues. Meu tio me levou pela primeira vez naquele suntuoso cinema, com uma entrada principal ao estilo de um teatro, todo atapetado em vermelho para um pisar macio, dois andares de cadeiras de madeiras chiques para se apreciar as películas da época, com uma sala de espera repleta de sofás e poltronas de couro, portarias com funcionários engravatados e nas laterais bilheterias com moças bonitas, elegantes e educadas, de cabelos presos e um sorriso afetuoso nos lábios pintados de um batom luzidio.

Havia uma bomboniere com as insuperáveis balas azedinhas e as imperdíveis gomas açucaradas e barras de chocolate ao melhor estilo da Neugebauer. Pipoca não era recomendável, não ficava de bom tom, lembrava pessoas ruminando. À vezes, os filmes paravam de repente para serem trocados os rolos, era um apetitoso momento para uma troca de beijos discretos e um tocar de mãos no escurinho da sala. Um bom local de referência para esperar a namorada e assistir em Cinemascope naquela imensa telona Tubarão (1975), de Steven Spielberg, O Vento Levou (1939), de Victor Fleming, Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille e o badalado O Exorcista (1973), de William Friedkin.

No Cinema Victoria levava meus filhos para assistir comédias, suspense, dramas, aventuras, e quase sempre os infantis da Walt Disney, entre os quais Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Cinderela (1950), A Bela Adormecida (1959), além de filmes de piratas, ilhas de tesouros, entre tantas opções. Reminiscências das lembranças à parte, fica o regozijo da reabertura de um ciclo que recomeça para o velho e icônico cinema de calçada, ou quase, pois foi redirecionado para dentro de uma galeria, mas bem dividido em duas salas modernas, poltronas confortáveis, sob nova direção. A dor sombria ao fechar pela última vez em 2018, agora dá lugar para a esperança do de um futuro promissor do velho novo Cine Victoria que reabriu hoje com o badalado filme Barbie, de Greta Gerwig, com Margot Robbie, Ryan Gosling e America Ferrera. Que nunca mais feche!