Extermínio Indígena
Adaptado do best-seller homônimo do escritor David Grann, também baseado em uma história real, Assassinos da Lua das Flores é um faroeste épico do veterano cineasta Martin Scorsese, de 79 anos. Provavelmente o melhor filme de toda sua filmografia, com um roteiro fabuloso escrito a quatro mãos por Eric Roth e o diretor. Uma antiga parceria é retomada com Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, que sempre rendeu bons frutos ao longo da carreira do realizador, mas o trio nunca tinha trabalhado junto. DiCaprio está impecável, cada vez melhor e mais maduro, com desempenho em alto estilo, devendo ser creditados os méritos também ao diretor nesta sexta parceria, no papel do protagonista Ernest Burkhart, lembrou os melhores momentos do Marlon Brando pelos movimentos faciais, arrasou. Antes, estiveram juntos em Gangues de Nova Iorque (2002), O Aviador (2004), Os Infiltrados (2006), Ilha do Medo (2010), e O Lobo de Wall Street (2013), que lhe rendeu o Globo de Ouro. Em 2016, finalmente conseguiu levar o Oscar de Melhor Ator no filme O Regresso (2015), de Alejandro González Iñárritu. Já De Niro, quase sempre sóbrio, impressiona magistralmente como um personagem desprezível e estúpido, frio e calculista, ao interpretar William Hale, tio de Ernest. Encarna um pecuarista ambicioso que sempre quer mais financeiramente, que se porta publicamente como um cavalheiro, uma pessoa bondosa, pragmática, respeitado na cidade do povo indígena Osage. De Niro completou agora dez filmes em parceria com o diretor, iniciando com Caminhos Perigosos (1973), passou por Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995), O Lobo de Wall Street (2013), sendo o mais recente O Irlandês (2019).
Scorsese firmou seu nome como um dos realizadores mais influentes e cultuados da história, não apenas em Hollywood, mas também no cenário mundial. Um legítimo artesão do cinema que impacta mais uma vez pela importância da obra, e que demonstra ainda ter muito para dar. Pelas suas lentes retrata a verdadeira faceta ambiciosa e preconceituosa com que Hale sente e nutre pelos nativos, além de sua busca incessante por dinheiro e o envolvimento direto com uma engrenagem obscura. Usa o sobrinho que retornou da Primeira Guerra Mundial, como um típico fantoche de seus planos diabólicos para se apropriar da riqueza das terras indígenas como uma grande riqueza em Fairfax, na região norte-americana de Oklahoma. Para melhorar ainda mais seu patrimônio, como símbolo poderoso de um patriarcado, convence o rapaz a se casar com Mollie Kile, uma grata surpresa positiva pela irrepreensível interpretação da atriz descendente indígena Lily Gladstone, no papel mais importante de sua carreira. Rouba as cenas com sua presença marcante e seu poder de falar através do olhar penetrante de uma eloquência poucas vezes vistas numa narrativa, tem uma delicadeza agradável peculiar. Herdeira de terras ricas em petróleo, ela e sua família logo despertam interesse e cobiça dos homens brancos aventureiros.
A trama se passa num recorte do ano de 1920, em que a tribo de Osage é forçosamente deslocada de Arkansas e Missouri para se estabelecer em Oklahoma, quando diversos assassinatos acontecem a partir de circunstâncias misteriosas. Diante de denúncias, o caso acaba desencadeando uma grande investigação envolvendo o poderoso J. Edgar Hoover, considerado o primeiro diretor do FBI, agência que tinha acabado de ser criada na época, sendo representado pelo investigador Tom White (Jesse Plemons). Os crimes são enfocados por um duro realismo, mas com requintes de crueldades numa história com componentes ardilosos campeando por todos os lados, extrapola todos os limites de princípios e regras normativas. A exposição dos fatos é abrangente e colocada com boa intensidade, buscando um humor sutil, onde a ambição é o elemento essencial como mola propulsora para manter a fleuma da canalhice e seus excessos de desumanidade, ausente de qualquer ética pelo tio espertalhão. É inegável o envolvimento complexo bem explorado dessa história de amor entre duas pessoas, mas também de traição, culpa e submissão do sobrinho.
Assassinos da Lua das Flores incrivelmente passa rápido em suas 3h26min de duração, sem ser arrastado, distante do entediado, através de uma narrativa com clímax dinâmico e inspirado, a conspiração e a tensão constante são elementos apropriados para prender o espectador desde o início até o desfecho com a aparição do cineasta ao melhor estilo do mestre Alfred Hitchcock, pelas lentes fascinantes da fotografia de Rodrigo Prieto e a cativante trilha sonora de Robbie Robertson. O épico contextualiza e coloca para reflexão as relações de poder em conluio com a maçonaria para retratar com contundência os abusos oriundos da violência, principalmente da traição famigerada, do homem branco em relação ao povo indígena. Uma abordagem que atinge um resultado singular ao mostrar a importância do cinema para desnudar, perturbar e apontar os crimes pela humanidade e o extermínio de um povo indefeso. Eis um novo olhar para aqueles faroestes estereotipados, preconceituosos e reducionistas, por serem avessos aos índios colonizados e dizimados pelos governos dos Estados Unidos. A desconstrução se faz necessária e Scorsese pontua uma crítica ao materialismo do homem branco ganancioso, nefando, e sem limites pelo descontrole abissal, assim como já o fizera em O Lobo de Wall Street.
O questionamento da moralidade do sobrinho e seu amor confuso e pouco honesto pela mulher são colocados em xeque. Exterioriza o caráter deturpado e minguado ao concordar com o tio na armação para assassinar membros da própria família para lucrar. É devidamente revelador ao optar pelas suas próprias escolhas, como apresenta na essência um sintoma nauseante. Não tem bom moço diante das circunstâncias em que se apresentam os caminhos tomados, ainda que sob uma coação afetiva familiar do maléfico tio, não há posição de ingenuidade ou inexperiência. Sobra realismo para os atos cruéis nefastos, as abjetas armações, comandados pelo inescrupuloso Hale, elemento dominador na figura portadora da autoridade paternalista, no seu universo selvagem e desenfreado, dito civilizado. A tirania opressora dos Estados Unidos é denunciada em relação à cultura dos povos indígenas subjugados e humilhados dentro de seu território. Um notável documento histórico de conhecimento obrigatório sobre relacionamentos humanos que refletem os combates covardes sobre os mais fragilizados que desvendam segredos e mostram as verdades mantidas ocultas diante da máscara que cai para lançar luzes sobre as sombras do passado. Um monumental relato cinematográfico, uma verdadeira obra-prima no sentido mais genuíno da palavra, que deverá estar no topo das listas dos críticos de melhores filmes do ano de 2023.
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