Novas Relações
Familiares
Diante dos conturbados tempos de isolamento social, com o
fechamento dos cinemas devido à pandemia do brutal coronavírus que distancia e
afasta cada vez mais os seres humanos, surge como opção a busca nas plataformas
de streaming.
Realizada em colaboração com a Imovision, em exibição única e exclusiva na
plataforma MUBI, ficou disponível por 24 horas, no feriado deste 1º. de maio, o
filme Ema, do cultuado diretor
chileno Pablo Larraín, com o estimulante roteiro de Guillermo Calderón e
Alejandro Moreno. Além do Brasil, foi disponibilizado simultaneamente em mais
de 50 países, entre os quais estão o Reino Unido, Canadá, Chile, Argentina,
Coreia do Sul, Índia, Suécia e Singapura. Premiado no Festival de Veneza como
melhor filme, teve ainda mais quatro indicações. Já no Festival de Liubliana,
na Eslovênia, foi laureado com a melhor direção. A trilha sonora original assinada
pelo produtor e músico chileno Nicolas Jaar, com o estilo musical reggaeton originário da Colômbia, foi inspirado pela disseminação das
danças nas ruas de Valparaíso, e obteve premiação no Festival de Miami de 2019.
Larraín é um cineasta de 43 anos, inquieto e sempre
inventivo nas suas propostas, procura lançar questionamentos profundos sobre
suas realizações, mostra-se preocupado com as distorções das mazelas sociais e
políticas de seu país. Na sua filmografia estão: Fuga (2006); o aclamado Tony
Manero (2008; Post Mortem (2010);
No (2012) foi festejado pela crítica
e aplaudido pelo púbico, talvez o mais popular deles por retratar a pressão
internacional sobre o ditador Augusto Pinochet, que convoca um plebiscito para
avaliar seu governo sanguinário e a manutenção do regime em 1988. É dele também
o badalado O Clube (2015); a
comentada cinebiografia Jackie (2016),
sobre a ex-primeira-dama dos EUA Jacqueline Kennedy, rendeu a indicação de
Natalie Portman ao Globo de Ouro. Neruda foi
sua penúltima obra, em que abordou um período pouco conhecido do poeta Pablo
Neruda (1904-1973) e sua incursão como senador cassado na política chilena, bem
como seu período no exílio, ao se refugiar no sul do país, foi perseguido pelo
governo totalitário chileno de 1948, sob o comando do presidente Gabriel
González Videla, por ser um comunista assumido e com ligações ao governo da
extinta União Soviética.
O último trabalho de Larraín é emocionalmente desafiador ao
contar a história do coreógrafo Gastón (Gael García Bernal- com um atuação
apática) e sua mulher bailarina, que empresta o nome ao título do longa (Mariana
Di Girolamo- em desempenho dignificante). A relação toma proporções iminentes de
ruptura dos vínculos matrimoniais depois que o casal adota um menino
problemático que provoca uma pequena tragédia com seu instinto incendiário que
irá literalmente deformar o rosto da irmã da protagonista. O drama familiar tem
um roteiro eclético com vários contornos e mudanças de itinerário durante sua
trajetória. Quando tudo indica que seguirá um rumo, muda rapidamente e envereda
para outra saída. É uma realização que traz em seu bojo a imprevisibilidade,
afastando-se sempre da mesmice, por tratar de situações dos microcosmos de
famílias com suas relações carregadas de problemas obscuros em tom sombrio, com
algumas lembranças do passado que persistem, como o da personagem central.
Ema pode
transparecer uma obra quase que intoxicante sobre sexo e suas nuances, em que o
poder e o caos estão presentes manifestamente. Mas na realidade representa uma
juventude do século XXI diante dos novos horizontes que afloram e o corte das amarras
da transição que passa o Chile contemporâneo. Tem o viés da improbabilidade
como no desfecho completamente inusitado pela reviravolta em sua amplitude e o
resultado que o destino reserva e contemplará os casais envolvidos no
imbróglio. Mais pela força e a busca incessante de uma solução diferente na
atitude rebelde da personagem com seu visual andrógino e sua obsessão pela genetriz
de gerar, tanto quanto atípica em que ela busca no homem treinado para abafar
as labaredas do incêndio, bem como pela adoção e o carinho externado ao
adotado. São metáforas da vida lançadas na primeira cena e depois no desenrolar
da trama, em que o bombeiro surge como o herói dos conflitos naturais, mas o
destino lhe reserva o protagonismo casual para ser uma figura proeminente com
sua mulher no epílogo.
O casamento desmoronando depois que o casal de artistas se
vê obrigado a devolver a criança que eles adotaram para o orfanato é o mote
para Larraín lançar um novo olhar para esta juventude sedenta de liberdade no
Chile. Para isso, usa o artifício da coreógrafa bissexual, uma mulher
multifacetada com uma personalidade alicerçada sob o prisma do enigmatismo, a
sensualidade advinda da dança e a relação com o fogo estreitada pelo aparelho lança-chamas
que irá dar um norte para iluminar o futuro. Por ser intensa, louca e lúcida
com seus paradoxos, irá construir calculadamente com sua audácia sem limites as
novas polifamílias através da ousada proposta de uma sociedade que deriva
diante das circunstâncias apresentadas para um novo universo dos multicasais. O
mérito do realizador está em não colocar Ema como uma personagem politicamente
correta, mas desnudar intrínseco e extrinsecamente a natureza de sua
personalidade dúbia, por vezes; meticulosa, em outras aparições, até atingir seu
desiderato persuasivo e obstinado pela continuidade com a força interior da
maternidade. Ainda que haja excessos e repetições em muitas cenas, o que torna
o drama arrastado, quase que entediante, embora não invalide a proposta
psicanalítica complexa. A criatividade flui em um clima hipnótico pelas imagens
sensoriais e da pulsação da música como ingredientes preponderantes deste bom
filme, embora menor que suas realizações anteriores, há méritos a serem
ressaltados e prestigiados pelo espectador.