quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Inside Llewyn Davis- Balada de Um Homem Comum


Crônica da Derrota

O 16º. longa-metragem dos irmãos Ethan e Joel Coen é o sombrio drama Inside Llewyn Davis- Balada de Um Homem Comum que acompanha a trajetória de uma semana na vida de um jovem cantor de folk em 1961, ambientada no bairro de Greenwich Village, em Nova York. Vencedor do Grand Prix no Festival de Cannes de 2013, foi indicado apenas em duas categorias do Oscar deste ano: melhor fotografia e mixagem de som, bem que poderia concorrer para filme, direção e ator. Teve a honraria de abrir a 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado. Os diretores já se aventuraram no gênero musical em E aí, Meu Irmão, Cadê Você? (2000), também dirigiram O Homem que Não Estava Lá (2001) e o inesquecível premiado Onde os Fracos Não Têm Vez (2007), abocanhando os prêmios do Oscar de melhor filme, direção e roteiro adaptado.

O filme dos irmãos Coen acompanha, livremente inspirado, o caminho frustrante do obscuro e fracassado cantor e compositor Dave van Ronk (1936-2002), rebatizado com o nome de Llewyn Davis (estupenda atuação do ator guatemalteco Oscar Isaac, que se notabilizou em Drive, de 2011) que sonha viver de suas composições e seguir carreira, mas ao mesmo tempo padece com o dilema de ser sustentado pelos amigos e outro artistas. Traz apenas um violão em punho, sofre com o inverno rigoroso novaiorquino de belas imagens da nevasca. Por onde passa, enfrenta obstáculos difíceis de serem superados, muito por escolhas equivocadas, como de Jean (Carey Mulligan, atuou em Shame, de 2011), uma mulher casada com o amigo Jim (Justin Timberlake), por quem nutre uma grande paixão, não realiza o primeiro aborto e engravida novamente, entrando numa outra ciranda de perdas. O protagonista anda de bar em bar em suas desventuras entre o Village e um clube vazio em Chicago, ao percorrer quilômetros para ter um contato com o influente empresário musical (John Goodman), para só depois retornar sem grandes esperanças.

Inside Llewyn Davis- Balada de Um Homem Comum é embalado por músicas de época e está distante de ser uma cinebiografia como Ray (2004), de Taylor Hackford, sobre a vida de Ray Charles, acompanhando toda a ascensão ao estrelado, desde a infância pobre. Os irmãos cineastas buscam a essência do filme e contam os dissabores sustentados pelo derrotismo do cantor de folk, nos anos de 1960, com várias músicas interpretadas por Isaac, Timberlake e Mulligan, ainda com a bela assessoria de Marcus Mumford e Punch Brothers na trilha sonora, tendo a produção musical de T Bone Burnett, vencedor de múltiplos grammys e oscars. Na década de 60, este gênero musical fervilharia com o brilho dos gênios Bob Dylan e Joan Baez cantando magistrais canções com suas roucas vozes que rasgavam os corações, num misto de poesia e protesto.

Existe alguma similitude bem próxima com o excelente drama musical Coração Louco (2009), de Scott Cooper, que retratava na tela o clássico caminho de derrotas do fictício cantor country Bad Blake, com uma vida desregrada pelo alcoolismo, mulherengo inveterado, mas sempre sozinho pelo mundo, fazia shows em tabernas e lugares de reputação duvidosa, em franca decadência humana corroída pelo tempo e em estado quase de decomposição iminente, desce ladeira abaixo, tendo como patrimônio uma surrada guitarra e uma velha caminhonete caindo aos pedaços. Llewyn Davis carrega a amargura dos destroçados, como se vê na canção que realiza para o pai, um velho pescador que agora já não fala mais, numa cena comovedora. Nem o gato que virou seu companheiro por acaso, ele não consegue cativar pela fragilidade na sedução da conquista do bichano astuto que dá no pé e vai para bem longe. Às vezes parece um azarado contumaz na vida com o suicídio do parceiro na música ou com a encrenca no amor com a gravidez da grande amiga; por outro ângulo de diagnóstico está presente a falta de inspiração nas composições, bem como não consegue se administrar financeiramente.

A saga malograda do protagonista é evidente daquelas criaturas que ficam pelos desvios do trajeto, diante da forte carga emocional contrária. Há também o componente da falta de uma melhor intuição, como os alegados percalços dos vitimizados pelos desastres do destino. Não é à toa que suas canções são repletas de um visceral pessimismo acompanhado de uma tórrida solidão, dentro de uma amargura melancólica destruidora. O estado de penúria comove e choca pela ruína da perda da dignidade humana naquele ambiente hostil, mas que surge como uma redenção e a tomada de consciência de um futuro que se esvai num mundo que desmorona, porém sem os horizontes infinitos de um ídolo que nunca foi e jamais teve aparições ao grande público. Um notável drama da derrota como se contado numa crônica recheada de fragilidades, onde tudo parece conspirar contra num enxuto roteiro sobre o resumo de alguém que está no fundo do poço e busca uma inspiração para se libertar.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Ela


Paixão Virtual

O filme Ela é ambientado numa Los Angeles do futuro, com um cenário predominantemente com cenas em tom avermelhado, tendo na figura masculina um vestuário de calças com cintura alta e reta. Ganhador do Globo de Ouro como melhor roteiro, foi indicado em cinco categorias ao Oscar deste ano: melhor filme, roteiro original, trilha sonora, canção (The Moon Song) e desenho de produção. A direção e o roteiro são de Spike Jonze, o mesmo do badalado Quero ser John Malkovich (1999) e dos menos cotados Adaptação (2002) e Onde Vivem os Monstros (2009).

O drama retrata o solitário Theodore (Joaquin Phoenix- em grande performance numa atuação irrepreensível), que acaba se apaixonando pela voz de uma mulher de um sistema operacional de comnputador (Scarlett Johansson- dubla a personagem invisível Samantha), dando início a uma inverossímil relação amorosa entre o homem contemporâneo e a tecnologia. O longa parte da inusitada aventura virtual do protagonista com uma suposta namorada criada por um sistema operacional de software, levando à loucura aquele escritor de cartas de amor, que dita mensagens sensuais e românticas, sendo o responsável pela empresa Lindas Cartas Manuscritas. Seu passatempo é ver filmes pornográficos e jogar games, estando sempre conectado no mundo cibernético. Vem do rompimento com a esposa Catherine (Rooney Mara) que o acusa, quando assinam o divórcio, de ser “uma pessoa sem condições de enfrentar as emoções reais”, indo ao encontro da apática relação entre eles, muito mal resolvida, especialmente por Theodore, que resiste em não cortar o vínculo definitivamente.

Jonze retrata com sutileza a solidão humana no tema da incomunicabilidade e por consequência o fantasioso namoro virtual, com a entrega de corpo e alma do escritor para sua paixão abstrata, numa obsessiva cobrança e dependência psicológica e física para estar on-line permanente, causando transtornos quando a voz desaparece e não consegue conectar-se para interagir. Tudo então vai mal e sua vida apresenta terríveis dissabores, ao perceber que a namorada perfeita idealizada está off-line, num processo desgastante e demolidor da ausência. A abordagem tem profundidade no vazio existencial do protagonista, diante da inibição e do distanciamento da realidade aterradora pelo fracasso com duas mulheres reais: a ex-esposa e a garota de encontros (Olívia Wilde). Na mesma esteira de isolamento e de romance desfeito, o cineasta coloca a melhor amiga Amy (Amy Adams- vista recentemente em Trapaça) que perde o marido e também se envolve com contato fabricado no computador.

O filme é uma ciranda de encontros e confissões entre os dois personagens ao mostrar os tempos cibernéticos frios e as loucuras advindas de cabeças perturbadas pela falta de limites de hiperconectados. Há um mergulho na alma dos dois, como um desbloqueio dos sentimentos e do futuro que é visto como um aceno de socorro. Catherine era uma companheira que passou e não tem mais chances de retorno; já a perturbação mental pela inexistente Samantha é visceral e dizima a lucidez de Theodore, quando este descobre que ela se relaciona com mais de 600 outros homens iguais a ele. Fica amassado e reduzido a nada, ao receber a notícia arrasadora e bombástica daquela voz perturbadora, com quem conversa e faz sexo todas as noites em seus devaneios.

Ela é daqueles filmes enigmáticos que se debruça sobre as atitudes de pessoas, que cada vez mais estão fora do realismo do mundo, sem chão e sem perspectiva. Não há uma crítica direta aos conectados e seus desencantos que remanescem da virtualidade, porém sobre os exageros doentios ilimitados, como uma metáfora evidente dos homens com suas máquinas criadoras que se deixam engolir. O roteiro está bem estruturado pela fantasia e nas armadilhas impostas pela existência, com os entraves contemporâneos que dificultam a relação entre pessoas no aspecto físico e psicológico. Destaque para a bela trilha sonora da banda Arcade Fire, que retrata a perplexidade do espectador diante da improvável relação amorosa recheada de simbolismos sobre a incerteza, neste magnífico e sensível drama humano futurístico, embora bem atual e constante sobre o artificialismo da vida.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Nebraska


Viagem ao Passado

O cineasta Alexander Payne é daqueles ditos independentes que gosta de contar histórias enternecedoras, às vezes engraçadas, e seus filmes têm poucos recursos financeiros se comparados com os investimentos milionários de Hollywood. Brilhou com Sideways- Entre Umas e Outras (2004), o melhor filme de sua carreira até perder o posto para Nebraska. Abordava um homem depressivo que tenta se tornar um escritor, fascinado por vinhos e decide dar como presente de despedida de solteiro a seu melhor amigo uma viagem pelas vinícolas da Califórnia. Logo se envolvem com duas mulheres, o que faz o amigo querer o rompimento do casamento já marcado para os próximos dias. Enquanto o futuro escritor se apaixona por uma jovem que também aprecia os vinhos pinot noir. Também em sua carreira assinou os insossos Eleição (1999) e As Confissões de Schmidt (2002), e o moralista e preconceituoso Os Descendentes (2011).

Nebraska é uma produção que sequer chegou a US$10 milhões e já arrecadou US$15 milhões. Concorre ao Oscar em seis categorias, entre elas a de melhor filme- com remotas chances de ganhar, embora seja uma obra magnífica, bem que poderia ser o grande azarão-, também foi indicado como melhor diretor, roteiro original, melhor ator para Bruce Dern, aos 77 anos, que finalmente ganhou um papel digno de seu talento, 35 anos depois de indicado em Amargo Regresso (1978). Está brilhante nos detalhes das sutilezas do olhar desorientado e o corpo que não quer acompanhar o personagem Woody Grant, que lhe rendeu o prêmio em Cannes ano passado pela sua atuação. O longa também foi indicado para atriz coadjuvante June Squibb no papel da fofa Kate, a mulher do protagonista que passa o dia criticando o marido, mas sabe defendê-lo como ninguém, em desempenho formidável nas suas poucas aparições em cena. Porém tudo leva a crer que a grande chance de levar o Oscar está mesmo na radiante fotografia em preto e branco de Phedon Papamichael, que explora o contraste com tons acinzentados, é filmado com lentes especiais no processo Cinemascope, através de negativos 35mm para telas em grandes dimensões no formato mais horizontal.

Um filme que é sutil e cativante desde o início, comove pelo vínculo familiar, especialmente pelo filho mais novo David (Will Forte- em atuação sensível e de boa dramaticidade) com o pai, um idoso que parece estar rasgando a tênue barreira da senilidade, ao receber pelo correio uma carta de propaganda prometendo um prêmio de US$1 milhão. Está convicto de que recebeu um bilhete premiado, que terá um prazo limitado para resgatar a fortuna e ninguém lhe tira da cabeça seu intuito. Ou seja, ir de Montana, onde reside, até Lincoln, a capital de Nebraska. Woody é um alcoólatra inveterado desde a juventude e suas ideias estão cada vez mais embaralhadas, dando sinais de ter contraído Alzheimer, como indaga a moça da fajuta lotérica ao filho, que responde “Não, ele acredita no que as pessoas dizem”. Embora transpareça uma loucura ser simplório, há uma pura convicção na sua cabeça, pois ele é daqueles homens que só se convencem quando veem. Não se conforma com argumentos soltos e vazios por informações verbais.

O roteiro é instigante, tendo o drama familiar como seu propósito temático neste road movie, onde o diretor coloca os personagens na estrada para um entendimento, além da análise crítica dos costumes dos norte-americanos. De uma cidade até outra, percorrem 1,3 mil quilômetros o pai com o filho, este uma pessoa com muita paciência e que faz tudo o que o velhinho de cabelo desgrenhado quer. Diferente é o filho mais velho (Bob Odenkirk), um aspirante à âncora de televisão, mais parecido com a mãe pelo pragmatismo e pelas soluções rápidas, por isto irão se encontrar bem depois na cidade de Hawthorne, como um complemento da família. Uma espécie de reconstrução do passado onde viveram, numa visita reminiscente a lugares que ficaram para trás como sombras de outros tempos.

Payne é um diretor autoral, que busca nos pequenos detalhes uma amostragem da essência cinematográfica. As peripécias da família Grant são pontuadas pela habilidade e a sutileza da firme direção, com a recriação de cidades interioranas dos EUA, sendo uma demonstração indicativa de que elas não evoluíram e pararam no tempo, sem ser piegas ou saudosista. A cena reveladora posiciona a câmera atrás da TV da sala, mostrando o tristonho lugar onde homens, velhos e jovens, sentados em frente ao aparelho, quebram o silêncio para falar sobre carros. Há uma pura química entre os personagens que voltaram para descobrir fatos ainda guardados em segredo, como o grande amor da dona do jornal pelo protagonista. Nem tudo é uma relação calorosa, tendo em vista a nova condição de milionário de Woody, muitas pessoas se aproximam dele para tirar vantagens, sendo que umas lembram de supostas dívidas antigas, principalmente os parentes próximos. Mas há aqueles que realmente demonstram carinho, afeto e ficam radiantes com os reencontros.

Nebraska é uma comédia dramática contida e bem elaborada nos diálogos, com imagens reveladoras pela fotografia primorosa, bem coadjuvada por uma trilha sonora não invasiva e que dá o tom certeiro na melodia. É uma viagem sem sentimentalismo barato, mas de reencontros e fortalecimento dos vínculos, como se vê no epílogo comovente registrado pela câmera, dentro de uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade de uma jornada familiar intimista inesquecível, como só o cinema pode produzir com a magia peculiar inerente.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Trapaça


Os Vigaristas

David O. Russel é um seguidor inspirado no estilo de Martin Scorsese, dirige e assina o roteiro com Warren Singer no filme Trapaça e obtém um resultado convincente pela profundidade. O longa recebeu dez indicações e é um forte concorrente ao Oscar, entre as quais: filme, diretor, roteiro, ator e atriz (Chistian Bale e Amy Adams), os coadjuvantes (Bradley Cooper e Jennifer Lawrence). No Globo de Ouro levou três estatuetas: melhor comédia, atriz e atriz coadjuvante no gênero. O diretor tem em seu currículo a razoável comédia romântica recauchutada O lado Bom da Vida (2012), numa abordagem no melhor estilo dos filmes românticos de Hollywood, retratando o encontro de duas pessoas problemáticas com dramas pessoais significativos, mas que querem reerguerem-se de traumas do passado, que rendeu o discutível Oscar a Jennifer Lawrence.

Scorsese com O Lobo de Wall Street (2013) abordava um jovem aspirante a corretor da bolsa de Nova Iorque, que faturou bilhões de dólares em golpes financeiros, manipulando com discursos eletrizantes e que levou investidores à bancarrota, por ensinamentos decorrentes de uma oratória convincente, num cenário de iates e lindas mulheres, tudo regado com champanhes e iguarias nas festas e encontros que se tornavam um transe beirando à Sodoma e Gomorra. Os crimes do colarinho banco são enfocados de forma cômica e extravagante numa história com componentes de drogas e extrapolando todos os limites de regras normativas, através de pilantragem para sonegar impostos. Realizado com uma narrativa frenética que se confundia com uma animação infantil, com um humor nada sutil e excesso de palavras chulas, com muita gritaria no desenrolar de três horas. Tornou-se massificante uma obra que poderia ser reduzida pela metade, num erro crasso de edição.

O discípulo supera o mestre na homenagem direta e sem rodeios nesta inteligente comédia, com uma reconstituição magnífica de cenário, com um figurino exemplar e irretocável. O longa retrata fatos reais de uma investigação entre 1978 e 1980 pela FBI, nos EUA, recriando parcialmente o escândalo na famosa operação Abscam, tendo levado à justiça muita gente importante, entre os quais políticos poderosos de conceituada fama. Segundo eles, em suas defesas pífias, alegavam ter recebido incentivos financeiros de um xeique para custear obras para o povo, na realidade uma criação fantasiosa para despistar as investigações.

A estrutura criada por Russel é a mesma de Scorsese, como uma dinâmica construtiva de um cinema de alta voltagem. Uma narrativa sem subterfúgios que vai direto ao ponto, no âmago da falcatrua, mostrando o imbróglio sem tintas coloridas ou alegorias histéricas. Nisto Trapaça dá de goleada em O Lobo de Wall Street, pela embalagem de um cinema realizado com todo requinte e convencimento da vigarice, sem perder a elegância e a classe. É bem verdade que Scorsese se faz presente, pois seu excelente Os Bons Companheiros (1990) serve de inspiração máxima para o homenageante deitar e rolar na esteira da corrupção passiva e ativa dos personagens. Havia o garoto que contava a sua história do sonho em ser gângster, começando a carreira aos 11 anos e se tornando protegido de um mafioso (Robert de Niro- que também é um temido mafioso com Russel) em ascensão, envolve-se em golpes cada vez maiores e acaba se casando com sua amante. Conquista prestígio, se envolve com o tráfico de drogas, prática grandes roubos e ganha muito dinheiro, mas os agentes federais o perseguem, seu destino pode mudar a qualquer momento.

Trapaça também tem a trama no mundo do crime, envolve o espectador por ter uma edição enxuta, com uma trilha sonora adequada e condutora numa trama bem elaborada por um diretor que consegue obter resultados surpreendentes de atores limitados, demonstrando domínio de elenco e extraindo uma química renovada de todos eles, sem exceção. Vê-se Irving Rosenfeld (Bale- perfeito como canastrão barrigudo, até sua peruca dá um desenrolar com eloquência) é um grande trapaceiro que trabalha junto da sócia e amante Sydney Prosser (Adams- está irresistível com suas madeixas, além da pose sedutora). O casal de vigaristas é forçado a colaborar com o inescrupuloso agente do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper), sendo infiltrado no perigoso mundo da máfia comandado por Victor Tellegio (De Niro). Numa situação dúbia e arriscada para fisgar os corruptos, o trio se envolve na política do país, através do falso moralista e candidato populista Carmine Polito (Jeremy Renner). Tudo parece dar certo num plano bem articulado, até surgir a esposa de Irving, Rosalyn (Lawrence- derrama charme e está melhor do que quando ganhou o Oscar), para que as regras do jogo comecem a mudar e causar surpresas no roteiro, deixando todo mundo em maus lençóis. Numa sacada digna de um bom aluno que demonstra ter aprendido bastante com o mentor.

Se a estrutura de O Lobo de Wall Street era muito semelhante ao filme Cassino (1995), como se Scorsese remasterizasse o tema numa refilmagem com cenários diferentes, Russel inova seus personagens no universo da safadeza dentro da ilegalidade e da proteção do já mencionado Os Bons Companheiros, dando frescor aos seus anti-heróis, sem ranços moralistas ou comprometimentos com mocinhos e bandidos. Mesmo não sendo um filme inesquecível, tem consistência construtiva na estrutura de personagens de carne e osso, com problemas psicológicos evidentes, como Rosalyn; ou físicos apresentados por Inving; de histrionismo sem escrúpulos do agente do FBI. Uma comédia provocadora, escrachada sem ser exagerada, com desenvoltura de um enredo picante de trapaceiros bem ou mal intencionados, diante de um capitalismo que permite fraudes e desvios, estreitando a tênue linha divisória da legalidade para o crime, vistas por imagens e soluções num ritmo equilibrado.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Philomena


As Perdas

Stephen Frears é um veterano diretor britânico de 72 anos, com mais de uma dezena de filmes. Acerta a mão algumas vezes, como em Ligações Perigosas (1998), Alta Fidelidade (2000), A Rainha (2006); erra em outras realizações como Herói por Acidente (1992), O Retorno de Tamara (2010) e O Dobro ou Nada (2012). É um cineasta instável e muito imprevisível. Seu último longa Philomena fica no meio termo, embora seja um bom drama familiar que mereça ser visto, apresenta algumas deficiências estruturais, que não chega a comprometer no todo, mas tira o brilho de uma grande obra. Concorre a quatro Oscar: melhor filme, atriz (Judi Dench), trilha sonora e roteiro.

A trama está centrada na história real da octagenária Philomena Lee- que nesta semana foi recebida pelo Papa Francisco no Vaticano, pois está à frente do "Philomena Project" de ajuda a outras mães a encontrar os filhos, luta para que o governo irlandês promulgue uma lei que permita a consulta aos registros de crianças adotadas- que engravida quando mocinha e é mandada para um convento pelos pais, na Irlanda, no ano de 1952. O recém-nascido é doado pelas freiras para um casal norte-americano de alto poder aquisitivo e some no mundo. Ou seja, na realidade é vendido, o que se descobre depois ser uma prática corriqueira. No dia em que o filho sumido Anthony completaria 50 anos, Philomena (Judi Dench- quando jovem é interpretada por Sophie Kennedy Clark, vista em Ninfomaníaca- Volume 1, de Lars von Trier) começa uma busca incessante para reencontrá-lo, com a ajuda do jornalista Martin Sixsmith (Steve Coogan- que também assina o roteiro com Jeff Pope), que é mostrado inicialmente deprimido ao ser demitido pela BBC de Londres.

Ao viajar para os Estados Unidos, a dupla descobre informações apimentadas sobre a vida do procurado, criando-se um estreito laço de afetividade entre os dois. A personagem-título carrega como marca do passado a intransigência da doação sem sua anuência, numa demonstração de pura agressão psicológica, que a torna uma pessoa de olhar melancólico, com a ênfase convincente da interpretação clássica de Dench, uma espécie de Fernanda Montenegro do cinema e teatro do Reino Unido. Traz como lembrança de uma boa freirinha aliada na juventude, apenas a foto do menino que lhe foi arrancado abruptamente, contrastando com a perversidade da madre superiora que a humilhou. Há um evidente viés de maniqueísmo, um clichê utilizado muitas vezes entre o bem e o mal, em que o diretor não escapa.

Do encontro do jornalista com a mãe angustiada para saber o destino do filho, surgem dúvidas sobre o rapaz. Será que ele pensou nela por estes longos anos? Onde estaria naquele momento de incertezas do futuro? A perda poderia se repetir novamente, o que tudo indica se repetirá. Martin é ateu e tenta entender o que acontece na alma daquela mulher obcecada pelo objetivo traçado. Mesmo não gostando de “matérias de interesse humano”, como afirma, pois prefere a rotina da investigação política, abraça a causa e se comove com a situação, diante do pacto contratual de lançar um livro, razão pela qual se deixa seduzir pela busca, que não está tão distante do que gosta de fazer: a investigação. Mostra-se avesso ao catolicismo e fica perplexo com a fidelidade da “parceira-contratante” e sua fé religiosa, mesmo com todas as agruras que passou no convento, tem uma invejável dignidade e uma irrepreensível devoção religiosa, com um singular senso de perdoar aquelas freiras que a fizeram definhar pela vida.

O cineasta aborda a tensa procura nos EUA e as revelações que irão construir a trajetória do desaparecido, inclusive sua boa performance profissional no governo e com bom trânsito na Casa Branca, bem como os conflitos pessoais e a relação amorosa, que não é surpresa para a mãe, pois já na infância percebia sua opção sexual. Mas o que ela quer saber é sobre o vínculo familiar e a relação com seu país de origem, neste aspecto Frears demonstra lucidez com uma grande surpresa no final. Peca por não ir a fundo na questão da venda de crianças para o Exterior, sem grandes desdobramentos, exceto nas informações oficiosas lançadas nos letreiros de encerramento.

Há uma abordagem rasa e sem grande aprofundamento sobre a Igreja Católica, nos seus usos, costumes e a própria repressão ao sexo fora do casamento, além da homossexualidade vista com distanciamento, temas estes discutidos vagamente para mudar no Concílio do Vaticano, na gestão dos papas conservadores João Paulo II e Bento XVI, como tentativas inócuas de reestruturar a igreja ainda ortodoxa. Frears passa rapidamente pela confissão da madre superiora sobre a perda da castidade e a menção às pecadoras que deveriam ser condenadas, entre elas a protagonista. Não fica claro, diante do obscurantismo temático e suas derivações, como das crianças e das mães sepultadas aparentemente clandestinas no cemitério do convento.

Em filme similar, Bruno Dumont se sai melhor na reflexão contundente sobre o catolicismo no excelente O Pecado de Hadewijch (2009), sobre uma jovem da classe alta que deseja ser freira e tem um envolvimento com dois irmãos muçulmanos, num olhar forte e posição firme sobre os dogmas religiosos e suas aberrações ultrapassadas de proselitismos e epifanias. Em Philomena há a busca comovedora do filho extraviado no tempo, bem como a relação dos dois personagens centrais. Há diferenças enormes entre eles de crença religiosa e filosofia de vida. De um lado estão a simplicidade e a ternura de uma mãe despedaçada no seu interior, mas com força para perdoar; do outro lado a intelectualidade e o pragmatismo do pensar que sabe tudo, que num último gesto se rende com a doçura maternal e lhe compra uma imagem de um santo que vem calar fundo como emoção, ponto forte do diretor. Já no aspecto da abordagem sobre a religião demonstra fragilidade sobre o tema.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Gloria


Presente e Passado

Vem do Chile, em coprodução com a Espanha, o ótimo drama romântico Glória, protagonizado pela chilena Paulina García, que levou o Urso de Prata no Festival de Berlim de 2013 na categoria de atriz. A direção é do argentino, nascido em Mendoza, Sebastián Lelio, que também assinou o roteiro com Gonzalo Maza, rendendo-lhe o prêmio de melhor filme pelo júri ecumênico da Associação de Cinemas de Arte e Cinema Experimental da Alemanha. O cineasta tem em filmografia os longas A Sagrada Família (2006), Navidad (2009) e The Year of the Tiger (2011).

Não deve ser confundido com o cult homônimo de John Cassavetes de 1980 (com Gena Rowlands), em que a personagem é uma ex-namorada de um gângster obrigada a proteger um garoto que teve a família assassinada pela máfia; que Sidney Lumet refilmou sem inspiração em 1999 (com Sharon Stone). A Gloria de Lelio começa o filme dançando num baile da terceira idade com sabor de músicas de salão, como no drama brasileiro Chega de Saudade (2007), de Laís Bodanzky, e termina dançando entre muitos homens e mulheres que se divertem. Não tem aquele ranço feminista de Os Belos Dias (2012), da francesa Marion Vernoux.

O cenário é Santiago, onde uma mulher solitária de 58 anos, divorciada há mais de 10 anos, cujos filhos já saíram de casa, se recusa a ficar sozinha em casa às noites, conhece vários homens, empolga-se e decepciona-se. Para completar, quando chega em casa há um gato do vizinho tresloucado que não a deixa dormir pelos constantes barulhos. A situação da protagonista dá uma guinada ao conhecer Rodolfo (Sergio Hernández), um ex-oficial da Marinha, sete anos mais velho do que ela. Surge a paixão e a chance de um relacionamento sério, mas logo confronta-se com alguns dos segredos da trama. Embora esteja divorciado, o namorado permanece vinculado à ex-mulher e às filhas, como pesos que não o libertam. Mas o casal faz sexo sem censura e com erotismo mesclado com amor, lembra o longa Late Broomers- O Amor Não Tem Fim (2011), de Julie Gavras, com a temática do amor na meia-idade, após os filhos saírem de casa há bastante tempo, surgem os problemas de memória e o casal assume estar envelhecendo.

Um filme com leveza, humanismo e sensibilidade de uma mulher aparentemente feliz, atrás dos óculos enormes, que bebe, dança, fuma até um baseado, pratica esporte radical e sofre calada com as agruras das experiências afetivas e familiares. Tem um filho casado que não sabe o que fazer com o recém-nascido, diante da ausência da mulher, já a filha solteira viaja para a Europa atrás do namorado, com a esperança de ir ao encontro da felicidade, como se vê na cena comovente do aeroporto a mãe que finge ir embora e retorna para soltar as lágrimas presas pela separação. Para isto conta com a atuação exuberante de Paulina García, perfeita no papel e com muita naturalidade das pessoas comuns, sem parecer artificial, dando a impressão que se conhece alguém com aquele perfil.

Além da abordagem da solidão e do sexo na idade madura mostrado sem pudor, há a instabilidade de Rodolfo como prisioneiro do passado, que não consegue se desvencilhar do cotidiano da família constituída e com as consequências da recente separação. Há ainda uma dependência econômica e até física que o inibe e criam entraves. Gloria quer viajar para o Exterior, numa referência à globalização e do boom de um crescimento muito rápido no Chile, diante da expectativa econômica criada no governo Pinochet. Porém, o máximo que consegue é ir até Viña del Mar, onde está a famosa casa do poeta Pablo Neruda como ponto turístico, o grande e odiado opositor da ditadura chilena instalada entre 1973 e 1990. São indicativos nas entrelinhas de que o filme não é apenas uma história de amor, mas que Lelio conta a versão daquele país em forma de metáfora política. A crise agravada do relacionamento do casal, diante do caráter dúbio do ex-militar não é fortuita, é outro sintoma metafórico ao regime de exceção vivido, sem o corte do vínculo da situação familiar, nem com o país ditatorial que não quer ficar para trás. Não é por acaso que o produtor Pablo Larraín é o mesmo que dirigiu o festejado drama político No (2012).

Soa bem a canção Águas de Março, celebrizada por Tom Jobim e Elis Regina, cantada em português com forte sotaque num sarau. A aparição do ex-marido no aniversário do filho é uma demonstração de que escolher um bom companheiro não é o forte da protagonista, que assim se define sobre sua alegria: “Às vezes fica triste pela manhã, às vezes, à tarde”. É uma típica filha da ditadura, embora haja um silêncio sobre sua condição política, há apenas imagens de protestos de estudantes pelas ruas. O filme é um retrato do país atual, deixando transparecer as dificuldades dos personagens em lidar com o passado. Gloria é o retrato magnífico dos contrastes da liberdade e da sociedade que lava a alma do espectador como essência de cinema.