quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Gloria


Presente e Passado

Vem do Chile, em coprodução com a Espanha, o ótimo drama romântico Glória, protagonizado pela chilena Paulina García, que levou o Urso de Prata no Festival de Berlim de 2013 na categoria de atriz. A direção é do argentino, nascido em Mendoza, Sebastián Lelio, que também assinou o roteiro com Gonzalo Maza, rendendo-lhe o prêmio de melhor filme pelo júri ecumênico da Associação de Cinemas de Arte e Cinema Experimental da Alemanha. O cineasta tem em filmografia os longas A Sagrada Família (2006), Navidad (2009) e The Year of the Tiger (2011).

Não deve ser confundido com o cult homônimo de John Cassavetes de 1980 (com Gena Rowlands), em que a personagem é uma ex-namorada de um gângster obrigada a proteger um garoto que teve a família assassinada pela máfia; que Sidney Lumet refilmou sem inspiração em 1999 (com Sharon Stone). A Gloria de Lelio começa o filme dançando num baile da terceira idade com sabor de músicas de salão, como no drama brasileiro Chega de Saudade (2007), de Laís Bodanzky, e termina dançando entre muitos homens e mulheres que se divertem. Não tem aquele ranço feminista de Os Belos Dias (2012), da francesa Marion Vernoux.

O cenário é Santiago, onde uma mulher solitária de 58 anos, divorciada há mais de 10 anos, cujos filhos já saíram de casa, se recusa a ficar sozinha em casa às noites, conhece vários homens, empolga-se e decepciona-se. Para completar, quando chega em casa há um gato do vizinho tresloucado que não a deixa dormir pelos constantes barulhos. A situação da protagonista dá uma guinada ao conhecer Rodolfo (Sergio Hernández), um ex-oficial da Marinha, sete anos mais velho do que ela. Surge a paixão e a chance de um relacionamento sério, mas logo confronta-se com alguns dos segredos da trama. Embora esteja divorciado, o namorado permanece vinculado à ex-mulher e às filhas, como pesos que não o libertam. Mas o casal faz sexo sem censura e com erotismo mesclado com amor, lembra o longa Late Broomers- O Amor Não Tem Fim (2011), de Julie Gavras, com a temática do amor na meia-idade, após os filhos saírem de casa há bastante tempo, surgem os problemas de memória e o casal assume estar envelhecendo.

Um filme com leveza, humanismo e sensibilidade de uma mulher aparentemente feliz, atrás dos óculos enormes, que bebe, dança, fuma até um baseado, pratica esporte radical e sofre calada com as agruras das experiências afetivas e familiares. Tem um filho casado que não sabe o que fazer com o recém-nascido, diante da ausência da mulher, já a filha solteira viaja para a Europa atrás do namorado, com a esperança de ir ao encontro da felicidade, como se vê na cena comovente do aeroporto a mãe que finge ir embora e retorna para soltar as lágrimas presas pela separação. Para isto conta com a atuação exuberante de Paulina García, perfeita no papel e com muita naturalidade das pessoas comuns, sem parecer artificial, dando a impressão que se conhece alguém com aquele perfil.

Além da abordagem da solidão e do sexo na idade madura mostrado sem pudor, há a instabilidade de Rodolfo como prisioneiro do passado, que não consegue se desvencilhar do cotidiano da família constituída e com as consequências da recente separação. Há ainda uma dependência econômica e até física que o inibe e criam entraves. Gloria quer viajar para o Exterior, numa referência à globalização e do boom de um crescimento muito rápido no Chile, diante da expectativa econômica criada no governo Pinochet. Porém, o máximo que consegue é ir até Viña del Mar, onde está a famosa casa do poeta Pablo Neruda como ponto turístico, o grande e odiado opositor da ditadura chilena instalada entre 1973 e 1990. São indicativos nas entrelinhas de que o filme não é apenas uma história de amor, mas que Lelio conta a versão daquele país em forma de metáfora política. A crise agravada do relacionamento do casal, diante do caráter dúbio do ex-militar não é fortuita, é outro sintoma metafórico ao regime de exceção vivido, sem o corte do vínculo da situação familiar, nem com o país ditatorial que não quer ficar para trás. Não é por acaso que o produtor Pablo Larraín é o mesmo que dirigiu o festejado drama político No (2012).

Soa bem a canção Águas de Março, celebrizada por Tom Jobim e Elis Regina, cantada em português com forte sotaque num sarau. A aparição do ex-marido no aniversário do filho é uma demonstração de que escolher um bom companheiro não é o forte da protagonista, que assim se define sobre sua alegria: “Às vezes fica triste pela manhã, às vezes, à tarde”. É uma típica filha da ditadura, embora haja um silêncio sobre sua condição política, há apenas imagens de protestos de estudantes pelas ruas. O filme é um retrato do país atual, deixando transparecer as dificuldades dos personagens em lidar com o passado. Gloria é o retrato magnífico dos contrastes da liberdade e da sociedade que lava a alma do espectador como essência de cinema.

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