Presente e Passado
Vem do Chile, em coprodução com a Espanha, o ótimo drama romântico
Glória, protagonizado pela chilena Paulina
García, que levou o Urso de Prata no Festival de Berlim de 2013 na categoria de
atriz. A direção é do argentino, nascido em Mendoza, Sebastián Lelio, que
também assinou o roteiro com Gonzalo Maza, rendendo-lhe o prêmio de melhor filme
pelo júri ecumênico da Associação de Cinemas de Arte e Cinema Experimental da
Alemanha. O cineasta tem em filmografia os longas A Sagrada Família (2006), Navidad
(2009) e The Year of the Tiger
(2011).
Não deve ser confundido com o cult homônimo de John
Cassavetes de 1980 (com Gena Rowlands), em que a personagem é uma ex-namorada de um gângster obrigada a
proteger um garoto que teve a família assassinada pela máfia; que Sidney
Lumet refilmou sem inspiração em 1999 (com Sharon Stone). A Gloria de Lelio começa o filme dançando
num baile da terceira idade com sabor de músicas de salão, como no drama
brasileiro Chega de Saudade (2007), de
Laís Bodanzky, e termina dançando entre muitos homens e mulheres que se divertem.
Não tem aquele ranço feminista de Os
Belos Dias (2012), da francesa Marion Vernoux.
O cenário é Santiago, onde uma mulher solitária de 58 anos, divorciada
há mais de 10 anos, cujos filhos já saíram de casa, se recusa a ficar sozinha
em casa às noites, conhece vários homens, empolga-se e decepciona-se. Para
completar, quando chega em casa há um gato do vizinho tresloucado que não a
deixa dormir pelos constantes barulhos. A situação da protagonista dá uma
guinada ao conhecer Rodolfo (Sergio Hernández), um ex-oficial da Marinha, sete
anos mais velho do que ela. Surge a paixão e a chance de um relacionamento sério,
mas logo confronta-se com alguns dos segredos da trama. Embora esteja divorciado, o namorado permanece vinculado à ex-mulher e às filhas, como pesos que não o
libertam. Mas o casal faz sexo sem censura e com erotismo mesclado com amor,
lembra o longa Late Broomers- O Amor Não
Tem Fim (2011), de Julie Gavras, com a temática do amor na meia-idade, após
os filhos saírem de casa há bastante tempo, surgem os problemas de memória e o
casal assume estar envelhecendo.
Um filme com leveza, humanismo e sensibilidade de uma mulher
aparentemente feliz, atrás dos óculos enormes, que bebe, dança, fuma até um
baseado, pratica esporte radical e sofre calada com as agruras das experiências
afetivas e familiares. Tem um filho casado que não sabe o que fazer com o
recém-nascido, diante da ausência da mulher, já a filha solteira viaja para a
Europa atrás do namorado, com a esperança de ir ao encontro da felicidade, como
se vê na cena comovente do aeroporto a mãe que finge ir embora e retorna para
soltar as lágrimas presas pela separação. Para isto conta com a atuação
exuberante de Paulina García, perfeita no papel e com muita naturalidade das
pessoas comuns, sem parecer artificial, dando a impressão que se conhece alguém
com aquele perfil.
Além da abordagem da solidão e do sexo na idade madura mostrado
sem pudor, há a instabilidade de Rodolfo como prisioneiro do passado, que não
consegue se desvencilhar do cotidiano da família constituída e com as
consequências da recente separação. Há ainda uma dependência econômica e até
física que o inibe e criam entraves. Gloria quer viajar para o Exterior, numa
referência à globalização e do boom de um crescimento muito rápido no Chile, diante
da expectativa econômica criada no governo Pinochet. Porém, o máximo que
consegue é ir até Viña del Mar, onde está a famosa casa do poeta Pablo Neruda
como ponto turístico, o grande e odiado opositor da ditadura chilena instalada
entre 1973 e 1990. São indicativos nas entrelinhas de que o filme não é apenas uma
história de amor, mas que Lelio conta a versão daquele país em forma de
metáfora política. A crise agravada do relacionamento do casal, diante do
caráter dúbio do ex-militar não é fortuita, é outro sintoma metafórico ao
regime de exceção vivido, sem o corte do vínculo da situação familiar, nem com
o país ditatorial que não quer ficar para trás. Não é por acaso que o produtor
Pablo Larraín é o mesmo que dirigiu o festejado drama político No (2012).
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