quinta-feira, 31 de julho de 2014

Vic+Flo Viram Um Urso














Mistérios do Passado

O filme canadense Vic+Flo Viram Um Urso traz para o debate reflexivo não só os mistérios da floresta com suas armadilhas fatais, mas também enfatiza o processo difícil da busca da ressocialização de duas ex-prisioneiras que acabaram de sair da cadeia. O cenário bucólico, mas paradoxalmente assustador, traz a violência que aflora entre as árvores e o silêncio sepulcral daquele lugar aprazível aparentemente propício para aquelas duas mulheres que se conheceram quando ainda estavam presas, que tentarão viver um romance homossexual de duas pessoas maduras e livres de preconceitos para uma união de quem se apaixona perdidamente e que buscam dias esplendorosos em novas etapas, fruto do vínculo afetivo e da cumplicidade.

O criativo diretor Denis Côté cria um enredo instigante para retratar a saga de Victoria Champagne (Pierrette Robitaille), aos 61 anos, condenada à pena perpétua tem o benefício do cumprimento domiciliar, mas deve informar suas atividades semanais ao agente judiciário (Marc-André Grandin). Instalada em uma cabana no meio do bosque, quer começar uma nova vida com a namorada Florence Richemont (Romane Bohringer), sem saber que a companheira de cela, que já pagou sua pena, tem ainda uma dívida com uma mulher misteriosa e seu capanga.

O drama com requintes de suspense mostra Vic querendo fazer a coisa certa. Tão logo chega na mata encontra um velho tio paraplégico em estado vegetativo insustentável. Embora queira cuidar dele, há um rapaz e o pai deste que já zelam e dão todos os cuidados assistenciais ao ancião. Há algumas escaramuças com divergências sobre de quem é a responsabilidade, mas o enredo com nuances apimentadas de inquietude centra sua reflexão na relação das ex-detentas que estão se amando, embora Flo tenha uma recaída por homens na sua trajetória sexual. A partir daí, começa uma estranha relação entre elas, que precisam se proteger dos fantasmas do passado que irão perturbar a convivência harmoniosa.

Eis um filme comovente e brutal pela intimidação implacável sob o prisma da vingança. Delicado em determinados momentos na sua forma, corroborado por imagens radiantes para dar beleza na história, por vezes triste e em e outras que emocionam, pois o vínculo da união é mantido com uma construção exemplar. Sem acenar com facilidades demagógicas para problemas complexos ou na defesa de uma causa, ao deixar a força da paixão ser mais forte do que as sombras pretéritas do terror que rodeiam as criaturas marcadas no presente.

O longa foi premiado com o urso de Prata no Festival de Berlim e teve boa acolhida nos Festivais de Londres e de Toronto. Agrada ao público pela intriga fascinante que começa com uma simples história na casa que simbolicamente é o refúgio e avança para os mistérios e desconfianças que vêm do frio da floresta e se espalha pelas almas por uma fotografia azulada que irradia vida e medo naquelas estreitas estradinhas e atalhos que brotam e cortam os arbustos, apresentam surpresas que crescem no clímax de expectativa para a próxima cena, num cenário adequado para colocar dúvidas sobre o futuro, com um olhar sutil para o passado inexplicável e nada recomendável das amantes sonhadoras.

Côté faz referência do urso no título como uma alegoria à situação engendrada na trama, assim como também se utilizou deste recurso para se referir ao reino animal em outros longas anteriores, tais como: Curling (2010) e Bestiare (2012). São formas de demonstrar a relação da presa e os seres irracionais enjaulados nas histórias levadas ao cinema. Dá aos personagens vida e estrutura psicológica, traçando perfis de forma magnífica num universo voltado para a reflexão. A violência implícita em Vic+Flo Viram Um Urso, que irá desencadear uma sucessão de fatos trágicos explícitos, tem uma condução sutil pelo diretor num roteiro engenhoso e bem típico para se abordar com eficácia o inverossímil proposto, com boa intensidade para dar um desfecho surpreendente, sem deixar de ponderar a visão da paixão transcendental da defesa da eternidade como visto em Amor (2012), de Michael Haneke. Um drama vigoroso com uma estética de filmar em alto nível e reveladora de um passado impiedoso.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Um Episódio na Vida de Um Catador de Ferro-Velho


Discriminação Social

Baseado em fato verídico estampado nas páginas de um jornal da Bósnia-Herzegovina, que causou comoção, indignação e constrangimento na comunidade em que aconteceu o evento grotesco, foi o que levou o cineasta Danis Tanovic a filmar seu quarto longa Um Episódio na Vida de Um Catador de Ferro-Velho. Sua estreia se deu em Terra de Ninguém (2001), premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2002, melhor diretor estreante na direção com o César e melhor roteiro no Festival de Cannes de 2001. É dele também 11 de Setembro (2002) e Inferno (2005).

A narrativa é um misto de documentário e drama na triste saga do casal de origem cigana Senada Alimanovic e Nazif Mujic. A mulher é uma esmerada dona de casa que passa roupas, lava, cozinha e cuida das duas filhinhas sapecas na faixa dos seis anos. O marido é um trabalhador obstinado que leva a vida como sucateiro em ferros-velhos, tem um carro antigo com problemas crônicos de bateria até ser desmanchado a machadadas para sobreviver, alguns fiéis amigos na vizinhança e um cão vira-lata. É caracterizada com precisão a via-crúcis de Senada, que aborta e carrega no ventre o feto de cinco meses por vários dias, embora devesse ser retirado imediatamente através de uma cirurgia para não causar uma infecção generalizada. Acontece que a mulher não possui plano de saúde e sequer algum tipo de seguro. Para realizar o procedimento, o médico do hospital da região cobra 980 euros, quantia indisponível por ela e o marido, sendo que o pagamento é à vista, sem parcelamento e de forma antecipada.

O diretor se debruça no drama que abalou a família e vai aumentando com o passar do tempo. Mesmo recorrendo à Assistência Social o problema não é resolvido. A situação é colocada como uma crítica ao poder econômico e a discriminação social e étnica dos excluídos, como se não houvesse outra alternativa: ou arruma o dinheiro ou morre sem dó e nem piedade. Num clímax de alta tensão que vai embrulhando o estômago, a história do casal desgraçado cresce e mergulha no desespero da perda iminente que se aproxima ao se encaminhar para um desfecho inesperado para todos.

Tanovic utiliza os recursos das imagens contrastando com o belo cenário da nevasca na periferia da Bósnia, num estilo próprio que lembra a estética dos dramas de idas e vindas do consagrado cineasta Abbas Kiarostami em Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987) e Gosto de Cereja (1997). Também pelo tema da busca do dinheiro há similitude com Tempo de Embebedar Cavalos (2000), do iraniano Bahman Ghobadi, quando cinco crianças órfãs de mãe são responsabilizadas pela perda da mula de um contrabandista, deverão trabalhar num bazar, a fim de juntarem dinheiro para pagar a dívida.

O filme causa impacto e constrangimento nos compatriotas pelo visível segregamento apontado pelo diretor, diante da etnia cigana dos personagens e que levaram para o discernimento no sistema econômico dos menos favorecidos na pirâmide social, ferindo o princípio da igualdade ao fazer restrição de maneira explícita dos marginalizados. O conflito permanente é fruto de um sistema político instável que virou as costas para os pobres, deixando como saldo negativo a herança catastrófica de uma guerra que durou três anos (1992-1995).

O casal de protagonistas é representado pelos próprios envolvidos no fato escabroso ocorrido, rendendo a Mujic o Urso de Prata como melhor ator no Festival de Berlim de 2013, pela atuação comovedora de um ator amador. Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro levou ainda o Grande Prêmio do Júri no mesmo festival e passa pelo arrojado cineasta bósnio que lança um olhar crítico e reflexivo, através de tintas fortes e marcantes neste fabuloso docudrama sobre os desvalidos socialmente num mundo onde o dinheiro está acima da vida humana e continua com bastante contundência o injusto preconceito por determinadas raças. Retrata de maneira eloquente a falta de dignidade sob o prisma da hipocrisia repleta de nefastas manchas de uma conduta abjeta.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Heli


Traumas da Violência

A violência é abordada de maneira incisiva e arrebatadora, com requinte de crueldade para estômagos fortes, ao explorar os limites do ser humano no drama policial Heli, brilhantemente dirigido pelo espanhol Amat Escalante, que tem em sua filmografia outros dois longas pouco conhecidos: Sangre (2005) e Los Bastardos (2008). O longa representou o México no Oscar deste ano, ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Festival Internacional de Munique no ano passado e de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 2013.

A trama retrata a triste e dolorosa realidade do cartel mexicano, expondo as vísceras de uma situação caótica e traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma de um recruta do Exército que desvia pacotes de cocaína para arrecadar dinheiro e realizar o sonho de se casar com a pré-adolescente Estela (Andrea Vergara). Escalante vai fundo na questão do tráfico e suas consequências nefastas em consonância com a corrupção policial, numa narrativa crua e sem subterfúgios, indo ao encontro do ponto central das ilegalidades retratadas. Mesmo com poucos recursos, esta produção independente obtém um resultado primoroso, com imagens poderosas e aterradoras que falam mais que os próprios diálogos, como do cadáver pendurado num viaduto no prólogo, para no meio do drama vir a resposta definitiva: o tráfico não perdoa a traição. A cena macabra é antecedida por dois corpos em estado de miserabilidade pelas torturas medievais, acompanhadas por crianças que assistem como uma espécie de medida pedagógica, já prevendo seus futuros naquele mundo sórdido, implacável e sem fronteiras.

O protagonista que empresta o nome ao título do filme (Armando Espitia) é um rapaz honesto, trabalha numa montadora de automóveis com o pai (Ramón Alvarez), mora na pequena cidade de Guanajuato com a mulher (Linda González Hernández), o filho ainda bebê, o pai e a irmã Estela, uma garota de 12 anos que namora às escondidas o militar Beto (Juan Eduardo Palacios), pivô do inferno que envolverá todos os membros daquela família humilde. O recruta esconde na caixa d'água da casa da namorada as drogas desviadas por parte da corporação, numa flagrante corrupção que irá ter repercussões devastadoras a todos os envolvidos involuntariamente.

Os traumas sexuais que atingiram Heli e a irmãzinha que perde a fala são colocados ao lado dos efeitos psicológicos que devastam o núcleo familiar para sempre. Os efeitos maléficos do tráfico e da corrupção que campeia deixam cicatrizes como marcas definitivas das mazelas nos personagens bombardeados por uma nociva guerra suja entre poderosos. O diretor tem um atento olhar para o microcosmo de uma sociedade esfacelada e envolvida pela destruição de seus princípios éticos e morais por soluções burocráticas nada inovadoras, como observado nas investigações paupérrimas que levam a lugar nenhum.

Embora sem a mesma contundência, foi visto recentemente o drama familiar La Playa (2012), do estreante diretor colombiano Juan Andrés Arango Garcia, abordando um jovem que fugiu de sua aldeia, acaba perdido em Bogotá, sua saga começa com o irmão mais novo que some de casa em busca da liberdade para se drogar. Há um contexto humano naquele cenário de uma cidade violenta, num retrato sombrio de um país em ebulição, em que o tráfico também se faz presente.

Heli é um extraordinário filme de denúncia de um país envolvido num clima nebuloso e catastrófico do cartel, sob o ponto de vista do comércio ilegal e da corrupção ativa, em que o cineasta intencionalmente provoca mal-estar no espectador, decorrente da violência explícita no enredo ao longo da história. É impossível ficar alheio ao universo implacável e sem piedade, contrastando com a ilusão do casamento prometido e o sonho do conto de fadas. Mas a empolgação da garotinha encontrará uma destrutiva realidade dos adultos impiedosos. O drama reflete a vingança pela traição que não poupa crianças ou animais, através de um painel cruel de uma realidade dura, pesada, sem lei e corrompida. A brutalidade é precipitada pela desgraça severa do acaso e é apresentada num realismo cênico seco, mas no epílogo surge com o raiar do dia um sopro de esperança para aquelas vidas dilaceradas pelo equívoco do destino.

domingo, 13 de julho de 2014

Viva a Liberdade


Farsa Política

Vem da Itália mais uma poderosa e corrosiva crítica ao meio político dos discursos vazios e estereotipados para conquistar eleitores, estar sempre bem com correligionários e membros do partido, dentro de uma farsa magnificamente retratada pelo cineasta Roberto Andò, na comédia política Viva a Liberdade, baseada em seu próprio livro Il Trono Vuoto. O tema recorrente também teve bom ingrediente em O Palácio Francês (2013), longa escrachado que faz uma abordagem pontual e com um molho amargo nos corredores palacianos, pelo septuagenário Bertrand Tavernier. Mostrando a sujeira e os conchavos desmesurados de rituais desgastantes que sufocam e tiram o ar puro, numa retórica de opulência, também foi bem enfatizado em Tudo Pelo Poder (2011), de George Clooney. Nanni Moretti é outro diretor mordaz dos poderes italianos, como foi visto em O Crocodilo (2006), sobrou para o ex-primeiro- ministro Silvio Berlusconi, que teve sua imagem abalada sem perdão por ferozes críticas.

Andò foi assistente de Coppola, Michael Cimino, Fellini e Francesco Rosi, dirigiu peça teatral e lançou seu primeiro longa com boa acolhida dos críticos em Il Manoscritto del Principe (2000). Atinge agora um grau maior na sua filmografia, ao abordar de maneira clara e incisiva a mentira, vaidade e os bastidores apodrecidos da política. De forma simbólica mostra a candidatura do secretário principal de um partido opositor italiano, o senador Enrico Oliveri (Toni Servillo), que não convence os filiados como estava previsto pela cúpula diretiva, sofre críticas ácidas da população e da própria legenda, com muita gente descontente pelos discursos desmotivados. Mas numa noite qualquer, após um debate em que o candidato é tripudiado por uma mulher e ouve tudo que se poderia imaginar, acaba por desaparecer literalmente, indo refugiar-se em Paris, na casa de uma antiga admiradora e ex-namorada Danielle (Valeria Bruni Tedeschi). Seu assessor e fiel escudeiro Bottini (Valerio Mastandrea) dá início a um plano maquiavélico, para isto tem a anuência da esposa Eveline (Anna Bonaiuto), através da ideia para uma solução mais adequada do repentino sumiço. O plano prevê buscar o irmão gêmeo Giovanni, desembaraçado, meio amalucado, mas com conteúdo dos tempos outrora de professor de filosofia, que está internado numa clínica. Quando reaparece e age de forma oposta ao que era antes, causa um frisson pelas atitudes surpreendentes e revolucionárias que impactam o mundo político, faz a cotação oposicionista elevar-se como nunca.

A estética desenvolvida com a busca da liberdade introduzidas com eficácia pelo diretor, que tem como referência e possivelmente uma fonte de inspiração o excelente Habemus Papam (2011), de Nanni Moretti, que aborda sutilmente a angústia do Papa vacilante. Já Andò vai ao encontro do político farsante que desaba e busca na fuga seu refúgio libertário, assumindo o irmão como se fosse um genérico farsante que sai melhor que a encomenda para delírio da oposição claudicante. Haja loucuras em meio a uma burocracia desgastante e inócua de uma era fracassada pós-Berlosconi questionada com extrema e saborosa ironia, ao forçar uma situação inverossímil para demonstrar com lucidez um político frouxo substituído por um embusteiro insano. Um panorama dos dissabores para quem almeja o poder cheio de armadilhas, onde a resistência fraqueja e os valores são outros entre as mesquinharias e o ego inflado na grande sacada da comédia, diante de um roteiro abrangente, sendo contada uma inusitada e incrível história sobre a farsa.

Viva a Liberdade é uma comédia que brinda o espectador pela estupenda atuação de Servillo, que brilhou em A Grande Beleza (2013), após ter interpretado há seis anos um primeiro ministro no ótimo O Divo (2008), ambos de Paolo Sorrentino, volta a encarnar com vigor magistral um político italiano meio sem graça e chocho e, concomitantemente, o irmão. Abocanhou o Prêmio de Cinema Europeu como melhor ator nos dois filmes citados, ainda esteve atuando com desempenho elogiável no recente A Bela que Dorme (2012), de Marco Bellocchio. Se um é bom, imagina dois, com personagens construídos como opostos numa sequência de planos e contraplanos bem apanhados pela câmera, satirizados literalmente pelas incongruências daquele ambiente nefasto, que se distancia cada vez mais da aprovação civilizatória. Questiona os valores e a ética, traduz com dignidade o protagonista cansado daquele meio de um processo que se desenvolve, sem parecer entender a mecânica do jogo. Parece falso e vazio dentro de uma engrenagem antiética, mas que aos poucos vira uma contraditória verdade no discurso empolgado. São deflagrados ardis, tornando forte a consistência da tramoia involuntária estabelecida sem concessões, que reverte e muda as expectativas.

Um filme fabuloso pela crítica reflexiva ao empirismo político para alcançar o topo, diante do paradoxo da mentira para fazer valer o ideal almejado. Embora pareça óbvio, cumpre seu papel objetivo de apresentar as falcatruas das abjetas maquinações no jogo doentio dos homens públicos e seus envolvimentos com situações escabrosas de um homem falível e conflitado com um novo desafio pela frente, decide abandonar seus compromissos momentaneamente e foge em pânico para bem longe dali, na busca da meditação sem interferência externa num refúgio mais humano, na desesperada aflição existencial que o atinge como pessoa comum que anda pelas ruas, quer buscar caminhos para tirá-lo do labirinto de dúvidas e fragilidades, que sequer imaginava e o coloca de frente com uma realidade obscura e terrível de um futuro cheio de antagonismos e inaptidões para conduzir situações pragmáticas do arenoso cotidiano do poder.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O Que os Homens Falam


Neuroses Doloridas

Vem da Espanha a bela comédia agridoce O Que os Homens Falam, do cineasta catalão Cesc Gay, com o deslumbrante cenário das tomadas externas de Barcelona, num tom cômico recheado de ironia, mas sem perder o intimismo profundo, ao abordar os relatos sinceros de oito homens na crise da meia-idade, todos na faixa de 40 a 60 anos, que são chamados nos episódios apenas por uma letra, como o personagem G. (Ricardo Darín) que abre seu coração e confessa ao amigo L. (Luis Tosar) sua desconfiança sobre a esposa e da iminência dela estar de caso com alguém, mostra-se muito preocupado, tendo em vista não estar preparado para uma eventual troca por outro parceiro, o que o leva pelo abalo a ser um dependente de remédios. Há uma faceta obscura neste relacionamento que o destino aprontou circunstancialmente.

Outro episódio notável é protagonizado por S. (Javier Cámara- atou em Fale com Ela), após dois anos do divórcio tenta reconciliar-se com a ex-esposa, mas escolhe um momento nada propício para declarar seu amor ainda nutrido pela mãe de seu filho. Também P. (Eduardo Noriega) que quer cometer adultério, tentará seduzir uma colega de trabalho com fama de namoradeira. O cineasta vai desfiando o novelo e expondo as mazelas advindas das neuroses masculinas decorrentes da crítica fase de transição. Não falta nem aquele que volta a morar na casa da mãe, tipificado no personagem E. (Eduardo Fernandez), que perdeu tudo o que tinha: mulher, emprego e autoestima. Nada dá certo na sua vida idealizada por velhos sonhos juvenis traçados como meta, encontra casualmente um velho amigo de infância J. (Eduardo Sbaraglia), que aparentemente conquistou tudo, mas irá perceber que este sofre por alguns problemas cotidianos.

Diante da existência e o seu sentido com as inerentes dificuldades, como a abordagem da velhice que se aproxima, mas mostrada com um elegante toque de classe, Gay faz uso do seu mosaico em A. (Alberto San Juan) e M. (Jordi Mollà) que terão seus segredos revelados pelas respectivas mulheres, diante de um quadro íntimo de situações inusitadas nada recomendáveis para os aparentes atletas que a sociedade estigmatiza como galãs e saudáveis no âmbito do universo feminino, jamais imaginados ou vistos com alguma suposta deficiência ou carência. Os bonitões e charmosos têm lindas mulheres, donos de carros esportivos último tipo, ícones do padrão bem-sucedidos, mas dentro de um castelo de areia que está prestes a ruir e desmoronar.

O Que os Homens Falam é um filme que satiriza a existência do chamado sexo forte soberano, ao apresentar suas dificuldades contemporâneas, mas que reflete sobre as fraquezas e os novos tempos do universo machista em extinção e falível, com um olhar feminista atento às transformações, dando toques irônicos dentro de uma abrangência de humor melancólico. Não é uma comédia sobre as façanhas masculinas, porém um mergulho no ocaso de uma era que expõe dúvidas. É uma pitada bem salgada nos alicerces que estremecem e vai ao encontro das fragilidades retiradas de dentro dos tabus e prontas para serem quebradas como cristais, através de diálogos inteligentes e sensíveis.

A comédia revela homens com problemas nos seus relacionamentos diários, que não conseguem se reerguer. Ou pelo dilema da separação, ou pela perda de emprego, ou do fantasma da disfunção erétil, além da substituição inesperada e dolorida. Há um cenário inóspito como terríveis obstáculos de reconstrução de uma nova família, enquanto que as mulheres são bem mais pragmáticas e em consonância com uma nova realidade. Um roteiro enxuto, com um elenco harmonioso numa excelente estrutura psicológica de personagens construídos com criatividade e equilíbrio exemplar de cada um deles. O diretor retrata uma evidente decadência do macho alfa com as fases novas que se apresentam dentro de um realismo cênico palatável. São crepusculares e em delírios frenéticos com o futuro, desnudam-se das pompas intransponíveis e se deixam levar para dentro dos seus dramas pessoais.

Gay faz relatos e aproximações dignas de uma nova realidade da existência masculina, diferente da comédia nacional E Aí... Comeu? (2012), onde há uma visível pasteurização e um tom jocoso e brega de situações típicas e redundantes. O Que os Homens Falam tem uma construção narrativa em alto nível e mergulha na fragilidade sem desfaçatez ou em subterfúgios comerciais, rindo de si mesmos. Vai ao fundo da questão com gestos e olhares sutis, inocula a alma e extrai a dor e a tênue fortaleza rechaçada pela corrosão, sem matizes os substratos estéreis. Não deixa dúvidas do ponto nevrálgico pretendido, com um sentimento de perda de valores profundos e intimistas das neuroses que invadem os pensamentos e as decisões de uma casta tida como muralha humana que desaba e dá sinais de sofreguidão. Eis um magnífico tratado sobre os homens, sem a atmosfera de predadores, com suas vicissitudes abaladas pelos tempos.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O Grande Hotel Budapeste















Mundo sem Esperança

Wes Anderson é um diretor norte-americano de 45 anos, conhecido pelos excessos radicais e apaixonado por fábulas, adorado por uns e odiado por uma boa camada de críticos, embora faça significativo sucesso com o público alvo. Assim foi em Os Excêntricos Tennenbaums (2001) e Moonrise Kingdom (2012). Venceu o grande prêmio do júri deste ano em Berlim com O Grande Hotel Budapeste, que segue a filmografia controversa do cineasta afetado pelo estilo de linguagem barroca, com personagens estereotipados por uma estética bem peculiar. Admite ter como referência para o filme o cineasta alemão Ernest Lubitsch, autor dos clássicos farsescos Ladrão de Alcova (1932) e Ser ou Não Ser (1937).

O roteiro do longa é inspirado livremente nos livros do escritor judeu Stefan Zweig, nascido em1881, na Áustria, que se refugiou no Brasil e se suicidou no Rio de janeiro, em 1992, deixando uma carta-testamento de despedida e demonstrando desilusão pela amargura da desesperança com o novo mundo, diante da ascensão do nazismo, a intolerância e a perseguição implacável ocorrida na Europa. Já nas primeiras cenas do filme, há uma referência ao livro Coração Impaciente, de Zweig, quando o escritor (Tom Wilkinson) que narra a trajetória de Gustave H (Ralph Fiennes- de muito bom desempenho) diz que “a melhor parte de escrever como ofício é que ele não tem de se preocupar em ir atrás das histórias, pois elas vêm naturalmente até ele”.

Com um orçamento de US$31 milhões, considerado pequeno para os padrões de Hollywood, conseguiu reunir um elenco poucas vezes visto num filme. Além de Fiennes e Wilkinson, temos Jude Law (jovem escritor), Adrien Brody (o vilão Dmitri), Edward Norton (o militar Henckels), Bill Murray (Ivan, amigo de Gustave H), Tilda Swinton (a milionária octagenária Madame D), Toni Revolori (Zero, fiel escudeiro do concierge Gustave H- magnífica atuação), Saoirse Ronan (Agatha- a bela namorada de Zero), F. Murray Abraham (o proprietário Zero Mr. Moustafa- fase adulta), ainda integram a constelação Mathieu Amalric, Léa Seidoux, Harvey Keitel, Willem Dafoe e Owen Wilson. Também o roteiro é bem orquestrado, com uma bonita fotografia, um figurino de acordo com a época para caracterizar a Europa no século passado, num cenário bem planejado como uma antiga loja de departamentos na cidade alemã de Gorlitz, faz fronteira com a Polônia e a República Tcheca.

O diretor cria com muita inspiração a fictícia República de Zubrowka, na década de 30, no leste europeu e que abriga um hotel luxuoso no alpes montanhosos. Neste cenário aprazível é contada uma história quase que inverossímil pelos grandes acontecimentos no século 20, como a Belle Époque e as grandes transformações sociais e políticas como o surgimento do fascismo. Entre as duas guerras mundiais surge o famoso e excêntrico concierge Gustave H de um renomado hotel, que irá conhecer um jovem empregado de raízes árabes, e os dois se tornam amigos inseparáveis. O roteiro apresenta várias estripulias da dupla, como o furto de um raríssimo quadro renascentista, a batalha por uma fortuna de uma família e as mudanças que atingiriam a velha Europa na metade do século XX.

Embora os filmes de Anderson pareçam ser repetitivos esteticamente, ao procurar a forma mais adequada para fisgar seus espectadores, às vezes comete delírios desmedidos, porém com O Grande Hotel Budapeste atinge um misto de diversão pura da comédia com pitadas farsescas, cria-se propositalmente a metalinguagem para adicionar um suspense exagerado e desproporcional à trama com ingredientes de uma aventura com jogos de ação. O protagonista ama seu emprego e os hóspedes, envolve-se em tons melodramáticos com idosas milionárias, assim como o escritor que reconta sua passagem na juventude pelo já decadente hotel e ouve do proprietário um relato de 1932, quando estava no auge e o envolvimento do concierge com uma viúva rica e seus herdeiros.

O Grande Hotel Budapeste é uma obra que vai da comédia para o suspense e seus mistérios, transita pelo drama, mas é acolhida inevitavelmente como uma fábula retórica com seus segredos, passa pelos traumas da guerra e vai ao encontro de uma inusitada história de amor e as reviravoltas que emergem da trama. Há uma razoável reflexão sobre a memória permanente daquilo que a história registrou para não ser esquecido, como luzes sendo estendidas para provocar todo o encantamento do cinema como denúncia da intolerância e da perseguição numa época marcada pelo ódio racial do século passado que dá passagem para um novo mundo. Um filme com alguns excessos típicos de Anderson, que se não chega a empolgar, deixa uma contribuição significativa através de alguns personagens banalizados.