Traumas da Violência
A violência é abordada de maneira incisiva e arrebatadora,
com requinte de crueldade para estômagos fortes, ao explorar os limites do ser
humano no drama policial Heli,
brilhantemente dirigido pelo espanhol Amat Escalante, que tem em sua
filmografia outros dois longas pouco conhecidos: Sangre (2005) e Los Bastardos
(2008). O longa representou o México no Oscar deste ano, ganhou o prêmio de
Melhor Filme Estrangeiro no Festival Internacional de Munique no ano passado e
de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 2013.
A trama retrata a triste e dolorosa realidade do cartel mexicano,
expondo as vísceras de uma situação caótica e traumática dos excluídos da
sociedade, pelo prisma de um recruta do Exército que desvia pacotes de cocaína
para arrecadar dinheiro e realizar o sonho de se casar com a pré-adolescente
Estela (Andrea Vergara). Escalante vai fundo na questão do tráfico e suas
consequências nefastas em consonância com a corrupção policial, numa narrativa
crua e sem subterfúgios, indo ao encontro do ponto central das ilegalidades
retratadas. Mesmo com poucos recursos, esta produção independente obtém um
resultado primoroso, com imagens poderosas e aterradoras que falam mais que os
próprios diálogos, como do cadáver pendurado num viaduto no prólogo, para no
meio do drama vir a resposta definitiva: o tráfico não perdoa a traição. A cena
macabra é antecedida por dois corpos em estado de miserabilidade pelas torturas
medievais, acompanhadas por crianças que assistem como uma espécie de medida
pedagógica, já prevendo seus futuros naquele mundo sórdido, implacável e sem
fronteiras.
O protagonista que empresta o nome ao título do filme
(Armando Espitia) é um rapaz honesto, trabalha numa montadora de automóveis com
o pai (Ramón Alvarez), mora na pequena cidade de Guanajuato com a mulher (Linda
González Hernández), o filho ainda bebê, o pai e a irmã Estela, uma garota de
12 anos que namora às escondidas o militar Beto (Juan Eduardo Palacios), pivô
do inferno que envolverá todos os membros daquela família humilde. O recruta
esconde na caixa d'água da casa da namorada as drogas desviadas por parte da
corporação, numa flagrante corrupção que irá ter repercussões devastadoras a
todos os envolvidos involuntariamente.
Os traumas sexuais que atingiram Heli e a irmãzinha que
perde a fala são colocados ao lado dos efeitos psicológicos que devastam o
núcleo familiar para sempre. Os efeitos maléficos do tráfico e da corrupção que
campeia deixam cicatrizes como marcas definitivas das mazelas nos personagens
bombardeados por uma nociva guerra suja entre poderosos. O diretor tem um
atento olhar para o microcosmo de uma sociedade esfacelada e envolvida pela
destruição de seus princípios éticos e morais por soluções burocráticas nada
inovadoras, como observado nas investigações paupérrimas que levam a lugar
nenhum.
Embora sem a mesma contundência, foi visto recentemente o
drama familiar La Playa (2012), do estreante
diretor colombiano Juan Andrés Arango Garcia, abordando um jovem que fugiu de
sua aldeia, acaba perdido em Bogotá, sua saga começa com o irmão mais novo que
some de casa em busca da liberdade para se drogar. Há um contexto humano naquele
cenário de uma cidade violenta, num retrato sombrio de um país em ebulição, em
que o tráfico também se faz presente.
Heli é um extraordinário filme de denúncia de um país envolvido num clima nebuloso e catastrófico do cartel, sob o ponto de vista do comércio ilegal e da corrupção ativa, em que o cineasta intencionalmente provoca mal-estar no espectador, decorrente da violência explícita no enredo ao longo da história. É impossível ficar alheio ao universo implacável e sem piedade, contrastando com a ilusão do casamento prometido e o sonho do conto de fadas. Mas a empolgação da garotinha encontrará uma destrutiva realidade dos adultos impiedosos. O drama reflete a vingança pela traição que não poupa crianças ou animais, através de um painel cruel de uma realidade dura, pesada, sem lei e corrompida. A brutalidade é precipitada pela desgraça severa do acaso e é apresentada num realismo cênico seco, mas no epílogo surge com o raiar do dia um sopro de esperança para aquelas vidas dilaceradas pelo equívoco do destino.
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