segunda-feira, 21 de julho de 2014

Heli


Traumas da Violência

A violência é abordada de maneira incisiva e arrebatadora, com requinte de crueldade para estômagos fortes, ao explorar os limites do ser humano no drama policial Heli, brilhantemente dirigido pelo espanhol Amat Escalante, que tem em sua filmografia outros dois longas pouco conhecidos: Sangre (2005) e Los Bastardos (2008). O longa representou o México no Oscar deste ano, ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Festival Internacional de Munique no ano passado e de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 2013.

A trama retrata a triste e dolorosa realidade do cartel mexicano, expondo as vísceras de uma situação caótica e traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma de um recruta do Exército que desvia pacotes de cocaína para arrecadar dinheiro e realizar o sonho de se casar com a pré-adolescente Estela (Andrea Vergara). Escalante vai fundo na questão do tráfico e suas consequências nefastas em consonância com a corrupção policial, numa narrativa crua e sem subterfúgios, indo ao encontro do ponto central das ilegalidades retratadas. Mesmo com poucos recursos, esta produção independente obtém um resultado primoroso, com imagens poderosas e aterradoras que falam mais que os próprios diálogos, como do cadáver pendurado num viaduto no prólogo, para no meio do drama vir a resposta definitiva: o tráfico não perdoa a traição. A cena macabra é antecedida por dois corpos em estado de miserabilidade pelas torturas medievais, acompanhadas por crianças que assistem como uma espécie de medida pedagógica, já prevendo seus futuros naquele mundo sórdido, implacável e sem fronteiras.

O protagonista que empresta o nome ao título do filme (Armando Espitia) é um rapaz honesto, trabalha numa montadora de automóveis com o pai (Ramón Alvarez), mora na pequena cidade de Guanajuato com a mulher (Linda González Hernández), o filho ainda bebê, o pai e a irmã Estela, uma garota de 12 anos que namora às escondidas o militar Beto (Juan Eduardo Palacios), pivô do inferno que envolverá todos os membros daquela família humilde. O recruta esconde na caixa d'água da casa da namorada as drogas desviadas por parte da corporação, numa flagrante corrupção que irá ter repercussões devastadoras a todos os envolvidos involuntariamente.

Os traumas sexuais que atingiram Heli e a irmãzinha que perde a fala são colocados ao lado dos efeitos psicológicos que devastam o núcleo familiar para sempre. Os efeitos maléficos do tráfico e da corrupção que campeia deixam cicatrizes como marcas definitivas das mazelas nos personagens bombardeados por uma nociva guerra suja entre poderosos. O diretor tem um atento olhar para o microcosmo de uma sociedade esfacelada e envolvida pela destruição de seus princípios éticos e morais por soluções burocráticas nada inovadoras, como observado nas investigações paupérrimas que levam a lugar nenhum.

Embora sem a mesma contundência, foi visto recentemente o drama familiar La Playa (2012), do estreante diretor colombiano Juan Andrés Arango Garcia, abordando um jovem que fugiu de sua aldeia, acaba perdido em Bogotá, sua saga começa com o irmão mais novo que some de casa em busca da liberdade para se drogar. Há um contexto humano naquele cenário de uma cidade violenta, num retrato sombrio de um país em ebulição, em que o tráfico também se faz presente.

Heli é um extraordinário filme de denúncia de um país envolvido num clima nebuloso e catastrófico do cartel, sob o ponto de vista do comércio ilegal e da corrupção ativa, em que o cineasta intencionalmente provoca mal-estar no espectador, decorrente da violência explícita no enredo ao longo da história. É impossível ficar alheio ao universo implacável e sem piedade, contrastando com a ilusão do casamento prometido e o sonho do conto de fadas. Mas a empolgação da garotinha encontrará uma destrutiva realidade dos adultos impiedosos. O drama reflete a vingança pela traição que não poupa crianças ou animais, através de um painel cruel de uma realidade dura, pesada, sem lei e corrompida. A brutalidade é precipitada pela desgraça severa do acaso e é apresentada num realismo cênico seco, mas no epílogo surge com o raiar do dia um sopro de esperança para aquelas vidas dilaceradas pelo equívoco do destino.

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