terça-feira, 28 de novembro de 2017

A Trama


Guerra de Palavras

Com exibição este ano no Festival de Cannes, na mostra Un Certain Regard, A Trama é o mais novo longa-metragem do festejado cineasta francês Laurent Cantet, que divide o roteiro com Robin Campillo. Consagrado no filme Entre os Muros da Escola (2008), vencedor da Palma de Ouro daquele ano, numa abordagem profunda sobre o universo escolar da França em meio às diversidades étnicas para questionar as crises da civilização contemporânea; também realizou o extraordinário Retorno à Ítaca (2014), inspirado no romance La Novela de Mi Vida (2002), do escritor cubano Leonardo Padura, retrata os fantasmas do passado que são rememorados no reencontro de cinco amigos adeptos do sonho das mudanças que viraram utopias e as desagregações familiares de Cuba, limitando a ação a um terraço com vista para o Malecón- o famoso calçadão de Havana- e as habitações empobrecidas como cenário único que levou mais de dezessete noites, superando a licença governamental, diante do fator climático de muitas chuvas.

O drama social, em sua última realização, é um retrato conciso da história de um grupo de jovens adolescentes com problemas na escola selecionados para uma oficina literária com o objetivo de criar um romance policial, sob a orientação da famosa autora do gênero Olívia (Mariana Foïs- de interpretação sóbria). Novamente a figura professoral e os alunos ressurgem, como no título premiado de Cannes. Mas o enredo toma proporções de um conflito político sobre as imigrações e os atentados na França, especialmente o do Bataclan, em Paris de 2015, e de Nice, em 2016. Há farpas e uma guerra de palavras com o racismo e a xenofobia sendo expostos como vísceras que vêm à tona num ambiente conflagrado pelo medo do terrorismo e dos crimes em série com viés religioso. O cenário é em La Ciotat, uma cidade portuária em crise no sul da França, após o fechamento dos estaleiros navais que traumatizou a pequena população, dificultando ainda mais o acesso ao emprego.

Cantet conduz com habilidade e elegância o desenrolar da história, que tem como protagonista Antoine (Matthieu Lucci- excelente no papel), um rapaz que sobressai com ideias contrárias ao bom senso e fere o prisma da isenção com provocações rasteiras e uma tendência para o crime organizado com tintas de terrorismo. Revisita assuntos do cotidiano com uma visão míope sobre a humanidade ao defender a morte pelo simples prazer. Entra em choque e cria inimizades com os colegas da equipe ao trazer distorcidas questões raciais das minorias e uma posição minúscula dos imigrantes árabes, com a atmosfera esquentando em tais situações que beiram as vias de fato. Já na cena inicial fica caracterizada sua contrariedade, ao afastar-se do grupo e não pegar o ônibus, preferindo ir a pé sozinho. O conflito logo irá se estabelecer e a temperatura pelas animosidades se transformará num caldeirão com a perda do controle dos envolvidos.

A Trama - com um elenco quase todo amador, exceto os protagonistas, uma marca do realizador, como também foi em Entre os Muros da Escola- é um espelhamento dos dias atuais na Europa, com tensões sociais à flor da pele entre aquelas moças e rapazes brancos, negros, católicos, proletários, árabes e muçulmanos. As discussões acaloradas, que tem como mote a forma e o estilo da narrativa do roteiro a ser elaborado para o próximo livro da escritora e supervisora, motivo pelo qual o aluno se rebela e explode ao se sentir usado como uma cobaia. É a ponta do iceberg para uma polarização entre o suposto bem e o estigmatizado mal, que irão ao encontro das desavenças e a integração dos imigrantes no território francês com o terrorismo radical aflorando, bem como são lançadas ideias para se saber como tentar lidar com tais armadilhas que espreitam a civilização.

O diretor cria um painel fascinante de um filme realizado com maturidade de um retrato dolorido pela decepção, através de uma crônica reconciliatória das ilusões perdidas, no qual o personagem central nada mais é do que uma espécie de um lobo solitário na alcateia. Ele terá na aproximação da escritora sua exposição quase que doentia sendo demonstrada numa relação edipiana consolidada pela falta de vínculo na ausência de diálogos em casa com os pais e a manifestação iminente de companhias que o levam para o pensamento conservador do fundamentalismo. A raiva e o ódio se entrelaçam para a transgressão do extremismo na oficina que flutua para sessões de terapia e interrogações que se espraiam. O tiro na lua soa como um grito de prazer pela descoberta da vida, posterior à falta de objetivo de vida durante a participação no mundo das letras, embora desemboque em repulsa no primeiro momento, haverá a libertação no epílogo revelador das angústias, mágoas, dor e tristeza. Mas Cantet vê luz no fim do túnel e o desfecho no navio é uma síntese da ressocialização redentora, e de que ainda há esperança numa geração perdida pela falta de diálogos, numa simbiose magnífica de literatura com cinema nesta obra de resistência.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Cléo das 5 às 7)


Cléo das 5 às 7

A cineasta belga Agnès Varda, naturalizada francesa, é a grande homenageada deste ano na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, em uma justa celebração deste ícone do feminismo das telonas, que teve em As Praias de Agnès (2008), seu penúltimo filme e o segundo longa autobiográfico, ganhador do prêmio César de melhor documentário, com uma narrativa poética num passeio pelas praias que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida, lança um olhar breve de lembranças do passado. Visages, Villages (2017) é seu último filme, um documentário que realizou com o muralista JR numa viagem em um caminhão para realizar o documentário road movie, que venceu o Olho de Ouro da categoria no Festival de Cannes. Participou com o marido Jacques Demy no antológico movimento Nouvelle Vague, em uma contribuição valiosa e histórica para o cinema, ao lado de monstros sagrados como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Marguerite Duras, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Alain Resnais. A realizadora tem uma filmografia marcante e recheada de grandes filmes como As Duas Faces da Felicidade (1965), Teto Sem Lei (1985) e Os Catadores e Eu (2000).

Um clássico da diretora que foi revisitado nesta Mostra é o sempre atual Cléo das 5 às 7, uma produção de 1962, que teve sua assinatura também no roteiro. A cópia restaurada está perfeita e a fotografia em preto e branco de Jean Rabier permanece magnífica. Embalado pelas canções comoventes do inesquecível Michel Legrand, morto em 2004, a trama focaliza uma cantora pop, a protagonista que empresta o nome ao título (Corinne Marchand- não só linda como talentosa) que está terrivelmente preocupada com os resultados dos exames médicos remetidos para uma biópsia por suspeita de um doença gravíssima. Procura uma cartomante que coloca as cartas de tarô para uma consulta e as previsões para seu futuro não são nada boas, deixando-a ainda mais impressionada e desorientada pelo pavor da morte precoce. Enquanto aguarda o diagnóstico definitivo, que deve levar em torno de duas horas, fica andando pelas ruas no entardecer de Paris e conversando nos bistrôs e cafés, observa as pessoas nas ruas com seus semblantes, dando sentido para as pequenas coisas da vida, que antes não eram tão valorizadas pela vontade de continuar vivendo como agora está demonstrado.

No drama desfilam vários personagens, entre eles uma amiga e o namorado, sua empregada que tenta em vão dar conselhos positivos, colegas e amigos com boas intenções, até que encontra um homem otimista numa praça que a faz sentir toda a essência da vida de que nem tudo está perdido. Deve ou não aproveitar seus últimos momentos de sobrevivência, como imagina pelo encaminhamento da situação? Mas Cléo encontra a paz antes de buscar os resultados que parecem sombrios dos exames. Aos poucos vai deixando seu egoísmo latente de lado e passa a ser uma pessoa mais generosa e voltada para o mundo, com uma percepção social mais acurada. É uma sensível narrativa feminista sobre um acontecimento que parece ser banal, mas causa angústia no espectador sobre o desfecho da possibilidade de um câncer terminal no estômago. Varda não desfoca a câmera da personagem principal, que irá conduzir o espectador para os detalhes dos parisienses em seus cotidianos neste belo passeio intimista sobre as nuances femininas no contexto da sociedade da época que gira no seu entorno.

Cléo das 5 ás 7 aborda a beleza e as dúvidas da protagonista num momento ímpar de reflexão, quanto as dúvidas e os anseios pelo que virá do diagnóstico tão aguardado de sua saúde. Torna-se uma mulher observadora para vislumbrar além do medo que toma conta dela, prestando com muita atenção nos detalhes e nas pessoas que passam e seguem seus destinos, em meio aos conflitos internacionais que repercutem. Até um diálogo de estranhos num café soam como luzes e definições para radiantes momentos de pura poesia que contrastarão com as belezas naturais existentes no parque. Repassa sua vida em duas horas num tempo de realismo e sincronia com o passado pouco explorado, através de flashbacks mentalizados pela sensação que ainda existe de poder continuar usufruindo como momentos únicos buscados na memória. Há uma empatia entre a plateia e aquela mulher sofrida pela angústia de talvez estar se despedindo, mas sem pieguismos baratos, tudo com muita lucidez e com um uma certa realidade pela câmera que acompanha os passos de Cléo.

Um sutil drama existencialista por uma ótica diferente da visão estereotipada vista em muitas realizações menores sobre a vida e o fenecimento do ser humano, num sensível mergulho nas emoções e na luta pela sobrevivência. Não há lugar para futilidades, mas um retrato denso, às vezes leve, de uma construção dos fatores psicológicos inerentes da cantora atormentada pelas armadilhas do destino. Eis um mosaico bem fundamentado desta diretora autoral sobre o presente estremecido por uma circunstância, o passado revisto e colocado em xeque diante de um futuro incerto que só o tempo dirá. Mas antes há o medo que dará lugar para o êxtase de viver sem sobressaltos, deixando para trás o orgulho, a simbólica peruca como quem se liberta de um estorvo e as picuinhas rotineiras pelos caminhos, dando espaço para uma visão elevada do sentido da vida com toda dignidade como uma simbiose buscada na dor e na alegria.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Mostra de Cinema São Paulo (Happy End)


Happy End

A França em coprodução com a Alemanha e a Áustria tem um digno representante nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o perturbador drama familiar Happy End que representará a Áustria no Oscar de filme estrangeiro de 2018. Após permanecer cinco anos afastado das câmeras, o cineasta austríaco por adoção e alemão por nascimento Michael Haneke está de volta na direção e ainda assinou o dinâmico roteiro, depois do premiadíssimo Amor (2012), que realizou com Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva como protagonistas e pais da personagem que era a filha do casal, interpretada por Isabelle Huppert, como uma coadjuvante de luxo em pequenas aparições. Entre seus filmes estão O Sétimo Continente (1989, 13ª Mostra), O Vídeo de Benny (1992, 16ª Mostra), Violência Gratuita (1997, 21ª Mostra), Código Desconhecido (2000, 24ª Mostra), A Professora de Piano (2001, 38ª Mostra), O Tempo do Lobo (2003, 27ª Mostra), Caché (2005, 29ª Mostra), A Fita Branca (2009, 33ª Mostra), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, e Amor que também ganhou a Palma de Ouro, o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

No drama A Professora de Piano, o realizador já evidenciava seu talento na abordagem da personagem da professora que instiga pela perversidade latente de uma misteriosa educadora de música com gostos estranhos, com mais um desempenho notável de sua atriz-fetiche Isabelle Huppert; em Cachê , aborda as questões intrínsecas ao mistério de uma fita de vídeo enviada para a casa de um casal francês que está sendo vigiada; em A Fita Branca demonstra lucidez com a parábola sobre o nazismo que se alastrou pelo mundo e estigmatiza sutilmente o rigorismo da religião, propiciando questionamentos como o extremo ardor pela ordem; na realização anterior dá um mergulho crepuscular na vida de um casal de professores idosos aposentados da música, que vive apaixonado por mais de cincoenta anos em Paris e depara-se com a doença terminal, com o epílogo de uma existência e toda sua decomposição humilhante, decorrente de dois derrames cerebrais na mulher e sua decrepitude com o passar do tempo. É profundo sobre as relações humanas e o grande amor do casal de idosos.

Haneke dá uma livre continuação do drama Amor sem nenhuma cerimônia em Happy End, com o mesmo personagem Georges, agora como um milionário patriarca cercado de problemas, interpretado por Trintignant, que não admite estar preso em uma cadeira de rodas, tenta a eutanásia em vários países, em uma temática que estava velada em seu último longa; a mesma filha Anne com Huppert atuando, só que agora ela tem um namorado e um filho adulto (Franz Rogowski) que está perdido na vida, sem um destino certo de sua profissão e a vida amorosa. Acha-se um inútil e demonstra carência afetiva da mãe distante e fria, e o pai sequer o procura. O irmão de Anne, Thomas (Mathieu Kassovitz) é um médico que se separou, mas dedica-se a aventuras eróticas pela internet, que leva a filha adolescente (Fantine Harduin) para morar com a família na mansão, depois da doença e do suposto suicídio da ex-mulher. A menininha também tenta se matar, após uma desavença diante da pouca atenção do pai e o medo de ficar sozinha. O desabamento de uma parte da empresa petrolífera do patriarca e as encrencas com funcionários e vítimas, que levam para uma discussão judicial, que irão compor este notável painel de atribuladas situações que deterioram as relações humanas de maneira crua dos entes integrantes daquele microcosmo familiar, em Calais, no Norte da França, captadas pelas lentes da fulgurante fotografia de Christian Berger.

Um retrato sombrio e doloroso da vida de uma alienada família burguesa europeia numa sociedade de consumo em decomposição pelo olhar realista pelo pessimismo característico do cineasta, de um mundo sem final feliz que contrapõe o irônico título da obra. As comunicações são enfatizadas no enredo através de redes sociais, deixando pouco espaço para o diálogo, exceto aquele da neta e do avô, em uma das raras aproximações afetivas que quebram a gélida rotina deles todos, em uma revelação sobre o passado que dá o gancho do filme antecessor. A trama não tem arroubos ou manifestações esperançosas, como já antecipa o prólogo, em longos planos-sequência com alguns contraplanos menores que individualizam e marcam a solidão e a frieza dos personagens, com a busca intensa do ocaso da vida pelo patriarca, a neta e a mãe dela. Não usa subterfúgios no seu estilo direto e seco de dirigir, abordando as mazelas intrínsecas de forma nua, crua e arrebatadora, sem preocupações alegóricas, com o recurso de elipses das cenas com propriedade, mas com um olhar implacável.

Happy End está abaixo dos dois filmes anteriores, mas mantém a lucidez dos grandes realizadores nas emoções existenciais diante da pouca esperança que deposita na humanidade. Atento ao progressivo fim do ser humano, que quer livrar-se pela eutanásia, ou pelo suicídio. Também cutuca a aristocracia que não aceita os imigrantes, em especial os negros, como na simbólica aparição deles na grande festa de noivado de Anne, através do convite feito pelo seu filho. Com refinamento expõe a hipocrisia de uma casta na sociedade que vive em outro mundo, por ignorância ou completa alienação. Exercem um poder doentio que recebem tintas de crueldade pela perversão exercida pelos personagens desta galeria de tipos estranhos e confusos psicologicamente, numa construção de grande realismo cênico para impressionar e incomodar, retirando o espectador de sua zona de conforto. Ninguém escapa, nem mesmo a neta e seu instinto perverso, ao conduzir placidamente o avô à beira do mar, com um propósito nada amistoso. Um ótimo filme com boas surpresas materializadas num desfecho revelador que contextualiza a amargura e sem nenhum sopro de otimismo.