Happy End
A França em coprodução com a Alemanha e a Áustria tem um
digno representante nesta 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o perturbador
drama familiar Happy End que representará
a Áustria no Oscar de filme estrangeiro de 2018. Após permanecer cinco anos afastado das câmeras, o cineasta
austríaco por adoção e alemão por nascimento Michael Haneke está de volta na
direção e ainda assinou o dinâmico roteiro, depois do premiadíssimo Amor (2012), que realizou com Jean-Louis
Trintignant e Emmanuelle Riva como protagonistas e pais da personagem que era a
filha do casal, interpretada por Isabelle Huppert, como uma coadjuvante de luxo
em pequenas aparições. Entre seus filmes estão O Sétimo Continente (1989, 13ª Mostra), O Vídeo de Benny (1992, 16ª Mostra), Violência Gratuita (1997, 21ª Mostra), Código Desconhecido (2000, 24ª Mostra), A Professora de Piano (2001, 38ª Mostra), O Tempo do Lobo (2003, 27ª Mostra), Caché (2005, 29ª Mostra), A
Fita Branca (2009, 33ª Mostra), vencedor da Palma de Ouro no Festival de
Cannes, e Amor que também ganhou a
Palma de Ouro, o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
No drama A Professora
de Piano, o realizador já evidenciava seu talento na abordagem da personagem
da professora que instiga pela perversidade latente de uma misteriosa educadora
de música com gostos estranhos, com mais um desempenho notável de sua
atriz-fetiche Isabelle Huppert; em Cachê
, aborda as questões intrínsecas ao mistério de uma fita de vídeo enviada para
a casa de um casal francês que está sendo vigiada; em A
Fita Branca demonstra lucidez com a parábola sobre o
nazismo que se alastrou pelo mundo e estigmatiza sutilmente o rigorismo da
religião, propiciando questionamentos como o extremo ardor pela ordem; na
realização anterior dá um mergulho crepuscular na vida de um casal de professores
idosos aposentados da música, que vive apaixonado por mais de cincoenta anos em
Paris e depara-se com a doença terminal, com o epílogo de uma existência e toda
sua decomposição humilhante, decorrente de dois derrames cerebrais na mulher e
sua decrepitude com o passar do tempo. É profundo sobre as relações humanas e o
grande amor do casal de idosos.
Haneke dá uma
livre continuação do drama Amor sem
nenhuma cerimônia em Happy End , com o mesmo personagem Georges, agora
como um milionário patriarca cercado de problemas, interpretado por Trintignant, que não admite estar preso em uma
cadeira de rodas, tenta a eutanásia em vários países, em uma temática que
estava velada em seu último longa; a mesma filha Anne com Huppert
atuando, só que agora ela tem um namorado e um filho adulto (Franz Rogowski)
que está perdido na vida, sem um destino certo de sua profissão e a vida
amorosa. Acha-se um inútil e demonstra carência afetiva da mãe distante e fria,
e o pai sequer o procura. O irmão de Anne, Thomas (Mathieu Kassovitz) é um médico
que se separou, mas dedica-se a aventuras eróticas pela internet, que leva a
filha adolescente (Fantine Harduin) para morar com a família na mansão, depois
da doença e do suposto suicídio da ex-mulher. A menininha também tenta se
matar, após uma desavença diante da pouca atenção do pai e o medo de ficar
sozinha. O desabamento de uma parte da empresa petrolífera do patriarca e as
encrencas com funcionários e vítimas, que levam para uma discussão judicial,
que irão compor este notável painel de atribuladas situações que deterioram as
relações humanas de maneira crua dos entes integrantes daquele microcosmo
familiar, em Calais, no Norte da França, captadas pelas lentes da fulgurante
fotografia de Christian Berger.
Um retrato sombrio
e doloroso da vida de uma alienada família burguesa europeia numa sociedade de
consumo em decomposição pelo olhar realista pelo pessimismo característico do
cineasta, de um mundo sem final feliz que contrapõe o irônico título da obra.
As comunicações são enfatizadas no enredo através de redes sociais, deixando
pouco espaço para o diálogo, exceto aquele da neta e do avô, em uma das raras
aproximações afetivas que quebram a gélida rotina deles todos, em uma revelação
sobre o passado que dá o gancho do filme antecessor. A trama não tem
arroubos ou manifestações esperançosas, como já antecipa o prólogo, em longos
planos-sequência com alguns contraplanos menores que individualizam e marcam a solidão
e a frieza dos personagens, com a busca intensa do ocaso da vida pelo
patriarca, a neta e a mãe dela. Não usa subterfúgios no seu estilo direto e
seco de dirigir, abordando as mazelas intrínsecas de forma nua, crua e arrebatadora,
sem preocupações alegóricas, com o recurso de elipses das cenas com
propriedade, mas com um olhar implacável.
Happy End está abaixo dos dois
filmes anteriores, mas mantém a lucidez dos grandes realizadores nas emoções
existenciais diante da pouca esperança que deposita na humanidade. Atento ao
progressivo fim do ser humano, que quer livrar-se pela eutanásia, ou pelo
suicídio. Também cutuca a aristocracia que não aceita os imigrantes, em
especial os negros, como na simbólica aparição deles na grande festa de
noivado de Anne, através do convite feito pelo seu filho. Com refinamento expõe
a hipocrisia de uma casta na sociedade que vive em outro mundo, por ignorância
ou completa alienação. Exercem um poder doentio que recebem tintas de crueldade
pela perversão exercida pelos personagens desta galeria de tipos estranhos e
confusos psicologicamente, numa construção de grande realismo cênico para
impressionar e incomodar, retirando o espectador de sua zona de conforto.
Ninguém escapa, nem mesmo a neta e seu instinto perverso, ao conduzir
placidamente o avô à beira do mar, com um propósito nada amistoso. Um ótimo
filme com boas surpresas materializadas num desfecho revelador que
contextualiza a amargura e sem nenhum sopro de otimismo.
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