sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2016)


Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2016, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. A Ovelha Negra (foto abaixo), de Grímur Hákonarson;

02. O Botão de Pérola, de Patricio Guzmán;

03. As Montanhas Se Separam, de Jia Zhang-ke;

04. A Viagem de Meu Pai, de Philippe Le Guay;

05. Elle, de Paul Verhoeven;

06. Aquarius, de Kleber Mendonça Filho;

07. Café Society, de Woody Allen

08. Nossa Irmã Mais Nova, de Hirokasu Kore-eda;

09. O Filho de Saul, de László Nemes;

10. Agnus Dei, de Anne Fontaine.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- O Silêncio do Céu, de Marco Dutra;
- Paulina, de Santiago Mitre;
- A Terra e a Sombra, de César Augusto Acevedo;
- Táxi Teerã, de Jafar Panahi;
- Carol, de Todd Haynes.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Neruda


O Poeta Político

O Chile apresenta seu representante que concorreu à vaga de melhor filme estrangeiro do Oscar de 2017, porém ficou fora da pré-seleção, mas disputará o Globo de Ouro. Neruda é o nono longa-metragem de Pablo Larraín, uma abordagem de um período pouco conhecido do poeta Pablo Neruda (1904-1973) e sua incursão como senador cassado na política chilena, bem como seu período no exílio, ao se refugiar no sul do país. Foi perseguido pelo governo totalitário chileno de 1948, sob o comando do presidente Gabriel González Videla (Alfredo Castro), por ser um comunista assumido e com ligações ao governo da extinta União Soviética, embora haja discordância dos biógrafos sobre a verdadeira trajetória e suas andanças pelo continente. Neste vácuo de contradições, o diretor dá asas à fértil imaginação para criar situações pitorescas e ficcionais, embasadas no discurso ao receber o Nobel da Literatura, em 1971. Menciona na cerimônia estar no lombo do cavalo e seus sangramentos, com o auxílio de vaqueiros na travessia pela Cordilheira dos Andes.

Larraín é um cineasta de 40 anos, inquieto e sempre inventivo nas suas propostas, procura lançar questionamentos profundos sobre suas realizações, mostra-se preocupado com as distorções das mazelas sociais e políticas de seu país. Entre os filmes mais conhecidos da filmografia estão: Fuga (2006); o aclamado Tony Manero (2008) com boa repercussão na 32ª Mostra de São Paulo; Post Mortem (2010); o festejado pela crítica e aplaudido pelo púbico No (2012), talvez o mais popular deles por retratar a pressão internacional sobre o ditador Augusto Pinochet, que convoca um plebiscito para avaliar seu governo sanguinário e a manutenção em 1988. O não à continuidade e o sim para as eleições diretas em todos os níveis, semelhante ao apelo popular no Brasil entre 1983 e 1984, com o célebre movimento que mobilizou o país em torno da redemocratização Diretas Já. É dele também o badalado O Clube (2015) e a comentada (e ainda inédita no Brasilcinebiografia Jackie (2016), sobre a ex-primeira-dama dos EUA Jacqueline Kennedy, rendendo a indicação de Natalie Portman ao Globo de Ouro.

Em Neruda a trama gira em torno do personagem que empresta o nome ao título (Luis Gnecco), que dá ênfase na perseguição para ser rotulada de selvagem, e assim seja inserido no desenlace da história, passando da ficção para a realidade. No encalço do poeta está Oscar (Gael García Bernal), o implacável policial e obstinado servidor do regime, que deseja provar seus dotes para alcançar a fama definitivamente. Beira como uma obsessão, numa fórmula mágica e fantasiosa do jogo entre o gato e o rato na perseguição ideológica ao comunista perigoso que come criancinhas no fundo do quintal. O filme mostra uma guerra eminentemente particular entre os dois símbolos do sistema. Um é a alegoria do poder ensandecido; o outro é visto como um ícone da cultura sufocada que foge para não ser preso e humilhado perante o povo. São situações emblemáticas entre a caça e o caçador que constroem versões que melhor convém para cada um dos personagens literalmente dentro de um painel simbólico de insatisfações de uma realidade cruel. Um depende do outro, eles se atraem impulsivamente por uma força irresistível, por isto são falsos prisioneiros dentro de uma teia de aranha, em que não conseguem romper os vínculos.

O mérito do realizador está em não colocar o personagem central como um herói do povo, contraditoriamente é mostrado como um sujeito egocêntrico e superior aos demais colegas do partido que seguem uma ideologia de luta por um ideal, embora extremada em algumas situações. Pablo Neruda é retratado como um homem que gosta de vida boa, orgias com mulheres e farras homéricas. Uma abordagem que privilegia seu talento, suas paixões, a vaidade e o egoísmo contrastando com as convicções políticas. As fantasias e os absurdos estão na simbiose do intimismo da história bem elaborada pelo diretor, que não exime seus personagens dos paradoxos e fragilidades existenciais, sequer afasta as idiossincrasias existentes em cada um deles na inspirada criação psicológica dos dois: Pablo Neruda e Oscar. A farsa está presente na construção do jogo pelo poder e as decorrências que dele emergem. É elucidativa a cena da engraçada esposa de Neruda, a artista plástica argentina Delia (Mercedes Morán), quando o casal discute cinicamente sobre a importância da pirotécnica perseguição, ela é lacônica e incisiva ao mandá-lo correr atrás de seu algoz.

O drama, mesclado com traços biográficos e uma narrativa com clímax policial, tem no roteiro de Guillermo Calderón o foco no rumo dos dois oponentes principais em tom ficcional, sem traçar datas e evoluções de aspecto verídico. A poesia é bem adaptada para o cinema, sem se tornar cansativa. Apenas insiste na repetição do famoso “Posso escrever os versos mais tristes essa noite”, como forma de registro de um irônico poema clássico. A fotografia é esplendorosa com imagens poderosas de nevascas de um realismo marcante no epílogo, bem assessorada pela bela trilha sonora. Neruda é, antes de tudo, uma boa narrativa do estigma deixado pela cruzada anticomunista, mas também não se abstém de sua função ao documentar com devaneios a vida de uma das figuras mais emblemáticas e influentes da cultura do século passado. Ainda que subverta os fatos ao optar pela encenação farsesca, eximindo-se de um relato fiel dos acontecimentos, deixa a criatividade cinematográfica ser o elemento preponderante na essência deste bom filme.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

É Apenas o Fim do Mundo


Mágoas do Passado

A trajetória do talentoso diretor Xavier Dolan começou muito cedo, com apenas 20 anos já conquistou seu público cativo na extraordinária estreia confessional Eu Matei a Minha Mãe (2009), sobre a relação edipiana e o contemplamento com desprezo. No segundo longa, Os Amores Imaginários (2010), dá uma boa derrapada com um filme mais leve e engajado na causa gay, deixa a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser comprometido com uma análise crítica mais aprofundada. Depois veio Laurence Anyways (2012) mostrando os paradoxos da existência humana ao enfrentar uma situação delicada da troca de sexo para virar mulher através de uma cirurgia, aborda os problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que manter os laços de uma união. Tom na Fazenda (2012) não teve boa repercussão, nem de público e sequer da crítica, porém a penúltima realização, Mommy (2014), reacendeu a luz da inspiração do jovem cineasta de 27 anos.

Agora o realizador canadense volta com seu sexto longa-metragem, É Apenas o Fim do Mundo, que teve lançamento mundial no Festival de Cannes, em maio deste ano. Eis um potente drama intimista com discussões e buscas do passado na essência das aparentes questiúnculas invisíveis que ficaram sem um desenlace a contento. Como que jogadas embaixo do tapete, inoportunamente são retiradas de lá e passam a fazer parte deste vigoroso painel num cenário de frustrações do microcosmo familiar e suas aberrações de futricas que tomam dimensões estratosféricas. Um retrato digno da violência estampada na agressão psicológica pelas palavras ferinas e pontuais como um míssil à procura da vítima que é lançado para alcançar o alvo dentro do convívio pouco estreito daquele núcleo desestruturado, mas que aparentemente vai tocando a vida como se nada de obstáculos os perturbassem. São inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da união resiste pela figura maternal. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos.

Baseado na peça teatral homônima de Jean-Luc Lagarce, a trama aborda o escritor Louis (Garspard Ulliel, convincente na interpretação), longe de casa há 12 anos, retorna para contar sua tragédia pessoal, diante da iminência da morte por decorrência de uma doença terminal. O encontro com os membros familiares é pouco auspicioso. Sente-se sufocado pela receptividade agressiva do irmão, o irascível Antoine (Vincent Cassel, perfeito no papel), mas terá a compreensão da destrambelhada irmã, Suzanne (Léa Seidoux) é afável e ao mesmo tempo problemática pela dependência de drogas, quer ter vida própria, sair daquele lugar interiorano para desabrochar na vida. É importante a presença marcante da mãe (Nathalie Baye), sempre pronta para acalmar os ânimos e contemporizar com suas sacadas sutis e positivas. É uma defensora ferrenha da união e tenta pacificar com seu jeito descolado os diálogos ríspidos entre os filhos. O objetivo daquela reunião torna-se frustrante, pois o preconizado por Louis toma outros rumos e sai do controle completamente, como uma locomotiva que descarrila dos trilhos num declive montanhoso. Principalmente com o temperamental irmão que se acha inferiorizado profissionalmente, uma espécie de brutamonte pseudocivilizado, sempre dá contornos antagônicos nas conversas mais amenas, falta-lhe a sensibilidade que sobra na esposa submissa, Catherine (Marion Cotillard), com seus olhos de interrogação, mas sempre disposta a dar um carinho ao cunhado, considerado como um estranho no ninho pelo marido implacável.

Dolan se aprofunda na temática com sua sensibilidade e hábil sutileza para estabelecer os contrastes familiares, onde pequenas coisas e desavenças de outrora tomam proporções absolutas para inibir o que seria um doloroso relato sobre a iminente morte do visitante, com sua sombria aparência, suas reminiscências que não são entendidas como as indicativas luzes sugeridas pelo protagonista, tais como: ir até o café do aeroporto ou rever a antiga casa abandonada em que passou a infância. O encontro sonhado toma outros horizontes, passa pela rotina de lágrimas por brigas e desacertos de um passado removido com seus fantasmas ressurgindo com sangue nos olhos, e por vezes, a vingança mistura-se a ciúmes camuflados se estabelecendo com garras e tentáculos gigantes. Até o almoço no jardim virou uma sucursal do inferno, pelas idiossincrasias em formato de acusações verbais inusitadas para todos os lados, especialmente do recalcado Antoine, no embalo da bela trilha sonora pop, entre as quais a romena Dragonstea Din Tei, da versão original de Festa no Apê, do brasileiro Latino.

O desfecho com o pássaro inerte no chão, após o toque da meia-noite no antigo relógio cuco de parede, propiciando a revoada premonitória da pequena ave, é uma poderosa metáfora da liberdade pelo fenecimento, em que os mortais rompem as amarras da vida diante da intransigência, no confronto entre vida e morte e as emoções existenciais sobre o progressivo fim do ser humano, remete para a bela cena do estupendo drama Amor (2012), de Michael Haneke, quando a pomba invasora do apartamento é expulsa pelo ancião, representa então a libertação do espírito da mulher doente de seu corpo, como se fosse um cativeiro indesejado. É Apenas o Fim do Mundo tem contundência por ser um filme dolorido pela melancolia de um reencontro turbulento, em que são refletidas situações menores em detrimento de uma causa bem maior. O epílogo é magnífico pelo senso revelador, como também fascina o prólogo ao retratar a chegada em sua terra natal do agonizante escritor com seu segredo pela notícia estarrecedora de uma situação irremediável. Basta observar a opção por planos-sequência longos com a câmera estática em cada personagem distante da realidade perturbadora com closes fechados e com alto grau de profundidade numa narrativa equilibrada, num tom amargo e seco.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Elis


Emoção Afinada

O diretor estreante Hugo Prata quando começou a trabalhar no longa Elis, há cinco anos encontrou algumas dificuldades para realizar esta magnífica cinebiografia sobre a maior cantora do Brasil de todos os tempos, para muitos da crítica e do público. Só havia uma biografia na época, agora já são três, pois há um musical que fez sucesso e mais o ora badalado filme deste promissor cineasta. Elis Regina (1945-1982) cantou samba, disco music e consagrou-se definitivamente na MPB. Detentora de uma voz afinadíssima e cristalina, colocava muita emoção na interpretação com seus gestos coreográficos no palco, que a tornou completa pelos seus recursos técnicos. Não se acomodava e nem se conformava com pouco. Sempre quis ser a melhor, batalhou lutou, foi debochada, espezinhada e chamada de “Hélice Regina”- alusão pelos movimentos de braços girando como pás para o eixo no espaço- pelo seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), um mulherengo inveterado que não podia ver um rabo de saia, num casamento corturbado por brigas violentas e algumas baixarias.

Ainda jovem deixou Porto Alegre, em 1964, para se estabelecer no Rio de Janeiro. Uma personagem desafiadora que estava muito além de seu tempo. Uma mulher de personalidade forte, por isto o apelido de “Pimentinha”, logo se impôs no universo machista para viver paixões arrebatadoras. Ao estremecer a relação com o zeloso pai, Romeu (Zécarlos Machado), decide fazer carreira e tocar em frente a fabulosa trajetória artística, deixa seu talento desabrochar no Beco das Garrafas, um lugar em que a boemia carioca predominava. Ali conheceu o badalado empresário da noite Miele (Lúcio Mauro Filho); o coreógrafo norte-americano Lennie Dale (Julio Andrade, que depois foi preso pela ditadura militar; e o arrogante Bôscoli, um defensor obstinado da Bossa Nova. Mas a consagração só viria depois com a canção Arrastão, em 1965, no festejado Festival da TV Excelsior. Os caminhos se abriram para brilhar no programa Fino da Bossa, em que animava com Jair Rodrigues (Ícaro Silva), motivo de galhofa de seus pares por ele “plantar bananeira” no auditório.

O roteiro assinado por Prata, Luiz Bolognesi e Vera Egito faz um retrato fiel da gauchinha que se irrita com os caminhos que a indústria fonográfica quer dar, impondo algumas normas contrárias aos desejos de inovação propostos pela intérprete, uma incansável defensora da boa música popular brasileira, que tem o apoio do crítico Nelson Mota (Rodrigo Pandolfo), o empresário Marcos Lázaro (César Trancoso) e o surgimento em sua vida do tímido pianista César Camargo Mariano (Caco Ciocler), com quem faz parceria profissional e se casa pela segunda vez, tendo mais dois filhos, entre eles Maria Rita, já tinha um do primeiro matrimônio. Sofreu muito com a oposição ferrenha do cartunista Henfil (Bruce Gomlevsky) que não admitiu vê-la nas Olimpíadas Militares interpretando a melodia Madalena. Cria-se um ambiente de animosidade e rejeição por alguns colegas do meio musical, embora sua rápida aparição tenha sido forçada e pressionada pelo Comando Militar com ameaças ostensivas aos seus filhos.

Aclamado no Festival de Gramado como melhor filme pelo júri popular, ganhou também os Kikitos de melhor atriz e montagem. Embora tenha ficado de fora por questão de logística a gravação em Nova Iorque de Elis & Tom, em 1974, no disco em que há o dueto antológico da dupla na canção Águas de Março, que marcou a carreira dos dois, a cinebiografia é uma narrativa em tom de drama que aborda o relacionamento difícil da cantora que origina uma fossa imensurável, ao atrair a antipatia da esquerda e os olhos atentos da censura batendo em sua porta por um governo militar implacável, além da turbulência das ruas pelo golpe de 1964. Sobram elementos que subsidiam uma grande depressão existencial da estrela que fora aplaudida em espetáculos na França e EUA. O desfecho angustiante e dolorido pela morte prematura, aos 36 anos, causada pela mistura de cocaína e álcool, são fatores essenciais para o iminente trágico fim por overdose de uma vida intensa, de altos e baixos, advindos de reveses e vitórias da briguenta estrela e sua força de manter-se de pé nos piores momentos.

Há que se ressaltar em Elis, a magistral atuação de Andréia Horta, de 33 anos, conhecida por personagens secundárias em novelas, atinge o ápice com o maior papel de sua carreira, mesmo que esteja apenas dublando as músicas da trilha sonora, atua com uma impressionante dramaturgia, muito além da expectativa. Não é fácil encarnar a gigante Elis Regina, mas demonstra soberbo vigor físico e psicológico para uma construção despojada que atinge a exuberância com suas gengivas expostas, os trejeitos, o sorriso, o corte de cabelo e o gestual marcante intimista da biografada, uma artista emblemática e sensível, poética e por vezes reveladora. Eis um passeio pela trajetória de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades. Um filme para todas as gerações, tendo como marco histórico a angustiante vida com seus contratempos de uma celebridade. Para ser lembrado e sorvido com sensibilidade as sutilezas sugeridas, lava a alma e deixa os ombros um pouco mais leves as saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira, além do resumo episódico do anacrônico regime ditatorial que passou sem deixar saudades.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Depois da Tempestade


Laços de Família

O Festival de Cannes do ano passado teve a presença do Japão, muito bem representado pelo festejado cineasta Hirokasu Kore-eda com Nossa Irmã Mais Nova (2014). Embora aclamado pela crítica e pelo público, saiu de mãos vazias. Foi obter a recompensa pelo seu belo trabalho no Festival de Yokohama, ao ser agraciado com a premiação de melhor filme, e ainda levou o prêmio de público no Festival de San Sebastian. O festejado diretor nipônico já havia concorrido, sem êxito, à Palma de Ouro em outras duas vezes com Distance (2002) e Ninguém Pode Saber (2004). Neste ano, participou da mostra Un Certain Regard com Depois da Tempestade, mas novamente saiu sem premiação. Porém, sua consagração aconteceu na 40ª. Mostra de Cinema em São Paulo, ao ser laureado como Melhor Filme pelo Prêmio da Crítica Internacional.

Kore-eda tem uma vasta filmografia das crônicas ambientadas na classe média baixa de seu país, dá um mergulho no microcosmo familiar para contar histórias verossímeis do dia a dia. Observa as mudanças inerentes que acontecem com o passar dos anos, expondo as feridas não cicatrizadas para lançar luzes ao universo das distorções dos lares desagregados em ruínas, com uma temática voltada para as perdas, enigmas da vida e por consequência a morte. Abordagens estas encontradas em Depois da Tempestade, um drama suave, onde não falta singeleza e uma aparente serenidade para buscar a reconstrução dos vínculos rompidos dos laços afetivos na madrugada de uma iminente tormenta que se aproxima. Um exorcismo das almas magoadas e dilaceradas pelas circunstâncias antagônicas, como do instável e descompromissado Ryota (Hiroshi Abe), um escritor fracassado que ganha dinheiro bisbilhotando a vida dos outros, num subemprego de detetive numa agência antiética e voltada para a extorsão. O protagonista tenta se aproximar do filho pré-adolescente Shingo (Taiyo Yoshizawa) e da ex-mulher Kyoko (Yoko Maki), mas no meio do turbilhão está a carismática avó (Kirin Kiki), que coloca panos quentes na relação conturbada e faz o que pode para dirimir as desavenças.

O realizador tem como marca registrada seu olhar voltado para as transformações das gerações, numa abordagem humana e profunda sobre as relações familiares, o cotidiano das simples coisas que irão ao encontro de situações complexas e modificações relevantes. Herdou a sutileza mesclada com sensibilidade dos inspirados diretores conterrâneos como Yusujiro Ozu em Era Uma Vez em Tóquio (1953), Mikio Naruse por Midareru (1964), e o criador do cinema de animação Hayao Miyazaki com temas recorrentes da relação da humanidade com a natureza. Segue a trajetória do questionamento primoroso dos velhos mestres para mergulhar no universo peculiar das tradições da cultura japonesa. No longa Ninguém Pode Saber (2003), havia a temática da mãe ausente dos filhos e a contundente falta de afeto aos mesmos. Em Pais e Filhos (2013), retratava um drama que discutia a troca de bebês e os efeitos futuros das crianças trocadas no berçário com as revelações recebidas, num clima de tensão instalado diante do amor pelo filho de outros pais e a intolerância de um deles. Na sua realização anterior, Nossa Irmã Mais Nova, mostra a dolorosa distância de três filhas que não veem o pai há 15 anos, mas ao saberem da morte dele, resolvem ir ao seu enterro, e lá conhecerão a tímida meia-irmã.

A história é traçada com um sabor agridoce, sem ser piegas, ao deixar emergir fatos que trarão conflitos sentimentais que envolvem pais conflitados. Os personagens terão que lidar com adversidades repentinas, pois precisam tocar suas vidas e resolverem as encrencas rotineiras, como na bela cena da idosa tentando aproximar o filho da ex-mulher que se tornou fria e pragmática em decorrência do cansaço pelo ex-companheiro que não amadureceu e parece sempre estar no mundo da fantasia, como um adolescente eterno, traz no vício do jogo um estigma de seu pai, um inveterado apostador que também teve problemas com a esposa que escondia o dinheiro dentro de casa para não gastar tudo. A reaproximação é uma tentativa válida almejada, tanto do garoto como da avó. Já o bilhete da loteria que seria uma possibilidade de compra de uma confortável casa para todos morarem juntos, mas com os ventos e a chuva incessante acaba se perdendo na noite, como um prenúncio alegórico da infelicidade que se desenhava como um sonho de uma noite nebulosa. A cobrança da pensão no epílogo, com as palavras duras anteriores de que Ryota brinca de ser pai uma vez por mês, soa como uma balde de água fria.

O drama é uma síntese com delicadeza de amores desfeitos e tentativas frustradas de reconciliação. O cineasta aponta para o sofrimento do filho, o que mais sofre, ao ser usado como um joguete nas mãos dos pais. O diretor é incisivo e pessimista no desfecho da trama, mas retrata o jogo de interesses dos adultos como uma insustentável e cruel realidade a ser trilhada. A leveza é a forma adotada na narrativa linear no ponto de equilíbrio, mas o filme é sombrio e a tristeza se mescla com alguns momentos de felicidade para os componentes do núcleo familiar em extinção, embora todos os ajustes nas buscas da reconstrução que se esvaem. Um magnífico filme sobre as sutilezas do amor rompido e dos laços de ternura com seus vínculos esboroados, mas que tem na doçura da avó com sua culpa e confissão para a ex-nora uma cena comovente de desabafo, neste drama familiar bem estruturado num roteiro enxuto, com uma trilha sonora equilibrada, sendo ambientado em belas paisagens bucólicas de uma fotografia fascinante. Emociona sem ser intenso pela complexidade da relação entre as partes envolvidas. Uma reflexão madura sobre as dúvidas, anseios, o amor fraterno com sua força inerente, para alicerçar as ruínas sendo reconstruídas com exemplar magnetismo de beleza lírica nas relações de afetividade e suas profundas sequelas deixadas silenciosamente.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Cinema Novo


Resgate e Tributo

Vencedor da premiação paralela Olho de Ouro no Festival de Cannes deste ano, o instigante documentário Cinema Novo conta a história do mais relevante movimento cinematográfico brasileiro, ocorrido nos anos de 1960, que projetou nosso país no universo mundial. São 90 minutos de pura magia e beleza apresentado pelo diretor Eryk Rocha, 38 anos, filho de Glauber Rocha, um dos idealizadores e divulgadores exponenciais de uma era artística que já merecia o resgate, tendo em vista que foi importante para nossa autoestima, bem como para a evolução de nosso cinema, com imagens poderosas de clássicos de arquivos e trechos de 130 filmes, como Rio, 40 Graus (1955), Vidas Secas (1963), Terra em Transe (1968), Macunaíma (1969), entre tantas realizações agora homenageadas para não cair no esquecimento e reativar a memória, através da rigorosa montagem poética de Renato Vallone.

Diretor de Rocha que Voa (2002), Transeunte (2010) e Campo de Jogo (2015), Eryk Rocha recupera entrevistas de cineastas que estiveram envolvidos e consagraram o movimento homônimo, tais como: Gustavo Dahl, Mário Carneiro e Paulo Cezar Saraceni, apenas pelas suas vozes, pois ao ser montado o filme, o realizador optou em não colocar imagens atuais deles por já serem falecidos, exceto as antigas. É feito um estudo profundo e vai até os primórdios da história cinematográfica brasileira para evoluir até o Cinema Novo, traz para subsidiar O Limite (1931), de Mário Peixoto. Faz uma saudação especial ao pioneiro Humberto Mauro, falecido em 1983, para chegar até os expoentes Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Walter Lima Jr., Orlando Senna, Geraldo Sarno, Alex Viany, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Zelito Viana e o crítico  Paulo Emílio Salles Gomes, até chegar a Luiz Carlos Barreto, o maior produtor em atividade, mas sem esquecer e ter um carinho todo especial com o pai, Glauber Rocha, e sua célebre frase: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, numa defesa intransigente da utilização dos meios de produção artística a serviço da transformação social.

Cinema Novo dialoga com as novas gerações,mas sem esquecer da velha guarda que acompanhou e prestigiou aquela fome por inovar o cinema brasileiro. É um fascinante tributo de amor e paixão pelas cores verdes amarelas transformadas em anseios e dificuldades, às vezes regionalizadas, em outras universais como os temas reivindicatórios de uma nação que foi sufocada pelo Ato Institucional nº. 5, o abominável AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, pelo duro golpe da ditadura militar. Um digno retrato dos protestos nas ruas e os jogos de futebol com Garrincha como símbolo. Fala das religiões, profanando ou não, e suas implicações alienantes no contexto nacional. Um movimento que tinha, e por isto foi marcante, um grau de preocupação e engajamento com as dificuldades socioeconômicas e políticas. Tem em Antônio das Mortes com seu trágico destino de matador de cangaceiro em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha, vencedor do Festival de Veneza, alegórico e sintetizador das realizações anteriores, como denúncia do imperialismo multinacional e das elites na manutenção do subdesenvolvimento e da pobreza brasileira.

O documentário retrata com precisão e detalhes cronológicos a evolução do cinema na essência da estética com planos, contraplanos, closes e planos sequências longos, bem como é além de tudo, uma declaração pública da construção de um legado inesquecível pelo ponto de vista político com imagens do passado até o presente, para aproximar e desvendar enigmas para o espectador mais atento e preocupado com a cultura de nosso país, tão vilipendiada e massacrada por alguns governos paraquedistas. Além de uma análise importante, prólogo e epílogo têm a mesma sequência do lendário Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), há uma similitude com o movimento musical no documentário Tropicália (2012), que revelou como lideranças Caetano Veloso e Gilberto Gil, a partir de 1967, do diretor Marcelo Machado, que também resgata uma fase cultural quase esquecida na história do Brasil, onde fervilhavam os festivais de músicas populares, numa época difícil na vida dos brasileiros que viviam amordaçados pelo regime ditatorial implantado, e que tinha a simpatia de Glauber Rocha ao Tropicalismo. Mostrava o realismo e a nitidez de tempos antagônicos culturalmente, com a imposição de uma censura não só dos militares como dos próprios artistas de outras matizes, que não entendiam o que estava acontecendo, mas que deixou raízes e veio para ficar, abrir cabeças fechadas e vislumbrar novos horizontes.

O Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa estão no contexto de Cinema Novo e as influências da Europa para marcar os fragmentos que constituem o todo de nossa cinematografia brasileira. São os subsídios buscados no Exterior que alavancaram para uma evolução e um certo amadurecimento de nossos cineastas, tanto na estética como no conteúdo enriquecedor que teve como espírito objetivo para se chegar até a integração por uma geração que inventou uma nova forma de filmar e fazer cinema autoral. Uma aula de conhecimentos retirados da história para ser sorvido como uma boa reflexão de riqueza artística que está sempre se modificando para dar luzes de estímulos e recompensas. Eis um registro importante advindo de um olhar pela observação atenta de um diretor promissor neste belo filme-ensaio de coerente narrativa de uma coletânea construída com consistência e amor com marca própria.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Morte em Sarajevo)


Morte em Sarajevo

O interessante Morte em Sarajevo foi outro filme bem aguardado e com boa expectativa de público e crítica na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo, vencedor do Grande Prêmio do Júri e do Prêmio da Crítica no Festival de Berlim, com direção e roteiro de Danis Tanovic, cineasta nascido na Bósnia-Herzegovina e criado em Sarajevo. O realizador tem em sua filmografia os prestigiados e importantes títulos do cinema do seu país, tais como: Terra de Ninguém (2001), seu primeiro longa e ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e o Prêmio do Público de Melhor Longa Estrangeiro na 25ª Mostra; também é dele o segmento Bósnia-Herzegovina do filme 11 de Setembro (2002, 26ª Mostra); O Inferno (2005, 29ª Mostra), Triage (2009), Cirkus Columbia (2010, 34ª Mostra), Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho (2013) e Tigres (2014, 39ª Mostra).

Um drama sobre os conflitos étnicos da Bósnia, Sarajevo, Montenegro, Croácia e Sérvia que originou uma guerra civil entre os anos de 1992 a 1995. A causa foi por uma combinação complexa de fatores políticos e religiosos com um fervor nacionalista de crises políticas, sociais e segurança que se seguiu ao fim da guerra fria com a queda do comunismo na antiga Iugoslávia. Esta agitação ruidosa é o tema focado no cenário do Hotel Europe, em Sarajevo, para uma movimentada preparação para a festa de gala da União Europeia como manutenção da paz no continente, em memória do centenário do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando pelas mãos de Gavrilo Princip. Mas há um grande entrave: os funcionários do estabelecimento planejam uma greve pelos dois últimos meses de salários atrasados, o que ocasiona um verdadeiro caos que poderá levar à falência o majestoso hotel cinco estrelas hipotecado para um banco e com dívidas astronômicas. Tudo depende deste importante jantar político que não pode dar errado com a presença da mídia internacional.

Em meio ao clima tenso está uma jornalista de Sarajevo que duela ao vivo num programa de televisão com um ativista da Sérvia, sobre as causas e efeitos oriundos desde 1914, que explodiram na ferrenha luta pela separação até o fim da Iugoslávia. O choque de opiniões leva para uma disputa árdua entre os dois, tirando o programa do ar, levando para um desfecho trágico com evacuação das dependências de todos os hóspedes e convidados famosos. As consequências são as piores possíveis e se complicam ainda mais com a deflagração da paralisação, diante do desaparecimento de um líder do movimento e o envolvimento direto de uma antiga funcionária da rouparia que trará indiretamente transtornos à sua filha despedida e assediada sexualmente pelo gerente.

O longa retrata um lugar belicoso que traz angústia e medo, no qual há seguranças armados que agem violentamente para manter a ordem e resolver as questões com ferocidade. Enquanto isto, como uma panela de pressão ideológica, há uma crescente crise que aumenta as tensões, passando pela recepção, lavanderia e cozinha até chegar à direção do estabelecimento. Nesta turbulência toda ainda há um ator (Jacques Weber) dedicado no quarto mais luxuoso, parece estar alheio à realidade, porém não consegue achar o tom correto em seu ensaio solitário, embora seu objetivo maior seja a representação adequada sobre os fatos de 1914. Os três eventos distintos: entrevista, greve e encenação, irão se interligar pelos fatos ocorridos e as consequências da crise financeira e política que fervilham e atingem o ápice, tendo em vista as dificuldades de se manter aberto aquele local. Mas se as coisas não andam pela transição forçada, chama-se a segurança para na base da truculência fazer andar. São métodos enraizados de violência explícita que ainda prevalecem naqueles homens rudes que cheiram pó.

O diretor se arrisca numa crônica de fatos marcantes recentes e os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, com personagens discutindo abertamente as circunstâncias do atentado, para refletir sobre a divisão dos povos, em que as etnias falam mais alto. Eis uma crise evidente e inatacável diante da guerra civil que por muitos anos permeou por ali. Tudo em nome da independência e da liberdade para ter seus espaços respeitados. Mas os reflexos chegaram com o agravamento da economia europeia em decomposição pedindo socorro. O roteiro falha nas exaustivas falas em Morte em Sarajevo, como por exemplo, a longa reportagem televisiva que menciona nomes e fatos pouco conhecidos do grande público, bem como exagera no discurso vazio e repetitivo do ator em seu quarto defendendo a velha Europa. Um bom filme que tem alguns méritos ao passar a limpo a história e as consequências dos reflexos iminentes, embora excessivo no didatismo, como a alegoria do encontro e a discussão entre uma bósnia e um sérvio numa guerra sem pausa que nunca termina. Tanovic ficou devendo uma realização mais consistente e menos alegórica.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (O Apartamento)


O Apartamento

Um outro filme aguardado que correspondeu a expectativa depositada é o agradável O Apartamento, do cultuado cineasta iraniano Asghar Farhadi, que também assinou o enxuto roteiro, emprestando credibilidade para a calorosa recepção de público e crítica na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Venceu os prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Ator no Festival de Cannes. O realizador dirigiu importantes títulos, tais como: Linda Cidade (2004, 28ª Mostra), o frenético e acolhedor À Procura de Elly (2009, 33ª Mostra), vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor no Festival de Berlim; o magnífico, talvez o melhor filme do diretor, A Separação (2011), primeiro iraniano a ganhar um Oscar estrangeiro, Globo de Ouro e Urso de Ouro em Berlim; e O Passado (2013), realizado na França.

A trama retrata um casal de atores que se vê obrigado a sair do apartamento com rachaduras onde vivem por causa de obras inadiáveis que deverão fazer, tendo em vista as escavações no terreno vizinho que comprometeram seu prédio. Emad (Shahab Hosseini) e Rana (Taraneh Alidoosti) se mudam para um novo flat no centro de Teerã. Mas a vida deles dá uma guinada com um suposto assalto com tentativa de morte que sofre a mulher, ao deixar a porta aberta, depois de tocar o interfone, por achar que era o companheiro que estava vindo para casa. Porém os fatos irão clareando do incidente, por estar ligado à antiga moradora que era prostituta. O cotidiano do povo iraniano é abordado novamente, através de uma história simples e complexa na essência, ao adquirir grande amplitude no desenrolar da trama.

O drama intimista dos personagens em foco é esmiuçado pelo diretor em dois momentos distintos pela importância da história no contexto. A vida real e a encenação no teatro, no qual os dois fazem parte como protagonistas da peça montada, transformando ficção e realidade como exponenciais alegóricos para o desenvolvimento bem urdido do roteiro proposto. O ataque violento à vitima por um desconhecido no banheiro é uma síntese alegórica da falta de justiça e da submissão das mulheres. Emad não se conforma com o ocorrido e faz uma meticulosa investigação por conta própria, com a finalidade de descobrir o malfeitor que atacou covardemente Rana.

No longa O Passado havia uma decorrência de A Separação com muitos personagens em comum. Não visava mostrar inocentes neste painel de erros, culpas e arrependimentos, onde todos estavam interligados numa babel de confrontos e acusações. Todavia, nem mesmo o que há como elementos fortes de ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como consequência de um regime totalitário implantado como forma de subtrair ideias e manifestações livres e com os anseios que os acompanham. A temática é consistente aos planos intimistas do cineasta que se detém na abordagem moral familiar neste confronto de questões. Assim, como também nos filmes anteriores que desenvolviam um argumento que dava importância às palavras nos diálogos numa forma bem estruturada. Nesta última realização se repete este aspecto pelo olhar realista para um país de conceitos éticos duvidosos para uma justiça plena, inexistindo atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo de alguns realizadores, mas que mantém com brilho significativo o conteúdo contextualizado.

O Apartamento toma contornos de um clímax com direcionamento para o suspense até descobrir quem é o verdadeiro culpado. Deveria ser uma ação do Estado a ser feita pela sua competência no âmbito investigatório, mas a sugestiva temática abordada se depara com elementos de culpa em consonância com a vingança, decorrente de uma justiça arcaica, inoperante e machista. Ou seja, a polícia não é acionada pela descrença na instituição falha, descompromissada e sem nenhum crédito dos cidadãos de bem. A vida imita a ficção artística e as situações se complementam e se fundem num regime totalitário, que aparentemente dá mostras de uma certa evolução, diante de alguma liberalidade teatral, embora sempre haja o medo dos homens do governo em fechar as portas da casa de espetáculos, como é bem enfatizado pela segura direção.

O desfecho com as luzes sendo apagadas, com as cadeiras frente a frente são símbolos de um resquício frequente da inquirição sem a ampla defesa nos tribunais e nos julgamentos no Irã de uma quase inexistente justiça. Tanto no aspecto legal sem a sustentação dos pilares básicos da legitimidade dos parâmetros de uma boa defesa para uma condenação justa, se for o caso. É o que se observa pela metáfora lançada na tela. O escuro e o silêncio são elementos indispensáveis que contribuem para o drama e as angústias de imenso sofrimento que ainda restam como sombras permanentes da tortura ainda viva para todos, neste ótimo filme de Farhadi.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (A Rede)


A Rede

A Rede é, talvez, o melhor filme da 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Com a estupenda direção do sul-coreano Kim Ki-duk, também autor do fascinante roteiro que sustenta uma narrativa sólida e equilibrada. Da sua filmografia destaca-se o sensível e comovente Primavera, Verão, Outono, Inverno e...Primavera (2003); depois realizou Casa Vazia (2004, 28ª Mostra), sobre um jovem sem rumo que costumava invadir casas estranhas quando os donos estavam fora, mas tudo muda quando encontra a proprietária no local; ousou de forma contundente com Pietá (2012), vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, obra vigorosa sobre a interação da família como núcleo e base contextualizada, o sadismo sem limites, o prazer pela dor, o sofrimento cruel do próximo e o papel da mãe em xeque, além do avanço brutal do capitalismo e da crise de valores.

O filme é uma aula de cinema pela maestria de um dos mais expressivos cineastas em atividade. A trama centraliza o foco num prosaico pescador (Ryoo Seung-Bum) que mora na Coreia do Norte com a mulher e uma doce criança. Mas num dia qualquer vê seu barco sofrer uma pane, após a rede se enrolar no motor, fica à deriva e vai parar em águas da Coreia do Sul, ultrapassando a fronteira dos dois países. Uma alegoria premonitória para o terrível drama que lhe espera, pois irá conhecer as profundezas do poder e os métodos de mecanismos pouco convencionais para uma nação capitalista democrática. Ao ser detido no país vizinho, é acusado de espião, passará por sessões de tortura com agressão explícita, física e psicológica. É obrigado a escrever várias vezes nos mínimos detalhes, à exaustão, o que fazia no seu país de origem. A busca do suicídio é uma tentativa desesperada de saída para escapar daquele martírio, ao relutar em dizer o que sabia, tendo vista que prestou serviços militares numa corporação do Exército.

Apenas seu segurança pessoal designado pelo governo acredita nele e cria-se uma relação estreita de cumplicidade e solidariedade. A forjada fuga não tem seu respaldo, pelo contrário, coloca-se contra e aposta na inocência de seu pupilo. O pescador conhece os encantos da deslumbrante Seul e seus avanços tecnológicos. Encontra uma prostituta em situação difícil, mas antes terá um fortuito encontro com um acusado de espionagem, que lhe passará uma missão para encontrar a filha e entregar um aparente e singelo poema. O enredo é instigante e não perdoa nenhum dos lados, fica neutro entre o capitalismo e o comunismo. Após ser submetido a severas investigações, sem provas cabais convincentes, o personagem central é enviado de volta para casa. Nestas alturas o caso já havia virado um incidente diplomático de grandes proporções entre as duas nações, com repercussão na imprensa internacional.

O drama com alta dosagem de suspense pela narrativa fiel, dura e seca, segue o caminho da dolorosa luta daquele homem simplório que perde a liberdade, mas não a dignidade até ser deportado com um motor novo no barco pesqueiro, um ursinho que recebeu de presente para dar à filha e alguns dólares do amigo guardião, o que lhe trará dissabores e mais encrencas. O calvário de tormentos continua no seu retorno tão desejado para os braços dos familiares. Novamente vira alvo de investigação por ter cedido às tentações do capitalismo, sendo mais uma vez interrogado com os mesmos, ou até piores, métodos de um ritual rigoroso, tendo que reescrever todo seu itinerário durante o período preso para averiguações e as ofertas para desertar. Até a esposa aparece com marcas da violência durante o período de ausência do marido. Nada se altera, tudo se repete e se copia. Tanto faz se é democracia ou regime de exceção, pelo olhar pessimista de Kim Ki-duk. O filme escancara a corrupção dos temidos militares norte-coreanos, que não perdem tempo em enfiar no bolso as notas verdinhas confiscadas do pescador e oriundas dos irmãos sulistas separados pela guerra.

O drama explicitado em A Rede comove o espectador como um míssil na boca do estômago, perturba pela exuberante narrativa das idiossincrasias dos governantes e seus poderes ilimitados que irão ao encontro da bestialidade humana, suplantando as feras selvagens das florestas intransponíveis. O desfecho violento, sem esperança e com tintas trágicas do indivíduo simples e honesto, como um marisco entre o rochedo e o mar, sendo a grande vítima, pois nunca mais será o mesmo, é um claro exemplo da desconstrução e da derrocada do indivíduo dentro da coletividade. A guerra entre países vizinhos afastados por um capricho de governos pedantes que deixam a arrogância sem freios invadir o universo da paz e das relações humanas civilizadas sendo atropeladas. O filme promete surpresas para o final, tendo no prólogo a cena do gancho que irá materializar a reveladora mentira dos opressores. Uma mini obra-prima que contextualiza a amargura e o pessimismo sobre as instituições cada vez mais desacreditadas.

domingo, 30 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Para Onde, Senhora?)


Para Onde, Senhora?

A Índia está de volta cinema indiano está de volta à 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo com Para Onde, Senhora?, direção e roteiro da cineasta alemã Manuela Bastian, nascida em Munique, estudou artes em sua cidade natal e na Academia de Cinema Baden-Württemberg. Em 2011, viajou à Índia e completou o primeiro documentário Pink Struggle. Também dirigiu os curtas Sandy Lost in Space (2013) e Remis (2013), além do média-metragem Papa Africa (2015). Mostrou todo seu vigor nas discussões acaloradas sobre o machismo enraizado nos indianos, com o viés típico de censura à mulher vanguarda que tenta se libertar das amarras fortemente conservadora na sociedade e na cultura milenar de um povo convicto pelos aspectos religiosos.

Tornar-se motorista profissional é o maior sonho de Devki, neste misto de documentário com drama realizado em coprodução com a Alemanha. Retrata o dia a dia de uma jovem que quer ser taxista, custe o que custar. Mas para isto terá que enfrentar diversos tabus numa sociedade eminentemente com predomínio da cultura dos homens. O longa de 83 minutos está dividido em três partes: Pai, Marido e Filho. A personagem central terá que passar por diversos obstáculos, a começar pelas provas e as dificuldades na autoescola para adquirir a carteira de habilitação.

O docudrama começa com a sua recente separação e retorno à casa dos pais, num ambiente hostil e pouco convidativo para recepcionar uma filha separada de um homem nada carinhoso e compreensível. Devki não é acomodada, quer logo seguir uma carreira e escolhe a profissão sonhada de condução de um táxi na barulhenta Nova Delhi de motos, automóveis e os famosos tuk tuks, uma espécie de triciclo, competindo nas ruas de forma desordenada com grandes congestionamentos. A figura paterna entra em ação, o azulejista tenta disuadi-la sob oforte argumento da falta de segurança à noite na capital cosmopolita e perigosa para todos.

Sua teimosia lhe custa a expulsão da casa pelo pai, tão logo sabe que a filha passou nos testes da autoescola. Começa a andar como uma mulher adulta e liberal no comando do veículo. Seus percalços não terminam aí, terá que enfentar na segunda etapa o namorado, um rapaz do interior que lhe pede em casamento e faz juras de amor. Mudam-se para uma região rural, local da família dos parentes de seu novo marido, que também não vê com bons olhos sua profissão. Com o nascimento do filho, outro ingrediente novo que surge, vem à tona a opressão do sogro que impede seu retorno à capital. Antes de tudo, terá que se adaptar à cultura diferente da sua, tentando entender as tradições milenares dos rituais de usos e costumes paradoxais ao que conhecia.

A protagonista não desiste de voltar a Nova Delhi, busca forças do interior da alma e, com sangue e suor retirados do fundo das entranhas, segue persistente na trajetóra pretendida quase que intransponível na saga obsessiva de um futuro traçado obstinadamente. Embora a casta machista ache estranho e tentem ridicularizá-la por ser a única presença feminina entre os condutores de táxi no trânsito da cidade, tanto no diurno como no período noturno. Mas ela é forte, quase como um carvalho sendo golpeado por um machado, por isto se sustenta firme contra os empecilhos que surgem no cotidiano.

Para Onde, Senhora? é uma boa dissertação sobre história e antropologia, pelas lentes da bela fotografia de Jan David Günther, em que o documentário tem um tom de diálogos em forma de drama, para depois serem ouvidos os personagens para abrir com sinceridade seus corações para a câmera. Os dissabores e as complexidades das relações estão no contexto e faz uma desassombrada declaração de insubordinação. O filme é leve e transita com boa naturalidade narrativa, mostrando fatos pitorescos e os contrastes do interior com o urbano, passando pelo caos metropolitano e do sufoco intransigente das tradições rurais. São registros interessantes de contribuição pela visão feminista naquele universo de submissão das mulheres aos seus intitulados donos de uma legião masculina predominante e repressora que não aceita diálogos e nem concessões.

sábado, 29 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Treblinka)


Treblinka

Vem de Portugal o decepcionante filme da 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo, o documentário Treblinka, com direção e roteiro do paulistano Sérgio Tréfaut, ex-assistente de vários diretores portugueses. Viagem a Portugal (2011) foi seu único longa-metragem ficcional. Estreou com o curta Alcibiades (1991), realizou os documentários Fleurette (2002), Lisboetas (2004), A Cidade dos Mortos (2009) e Alentejo, Alentejo (2014, 38ª Mostra), o melhor deles, ao fazer um retrato digno de dezenas de grupos amadores que se reúnem regularmente na cidade que dá título ao filme, ao sul do Rio Tejo. Ali, ensaiam antigos cantos polifônicos e improvisam modinhas contemporâneas, numa curiosa viagem musical por um modo peculiar de expressão e paixão dos seus intérpretes, através da bela fotografia de João Ribeiro, novamente presente em sua última realização sobre os horrores do nazismo.

Um documentário que retrata o presente, o passado e o futuro misturados nos vagões de um trem fantasma que cruza o Leste Europeu no século 21, por Polônia, Rússia e Ucrânia, países que vivenciaram o drama fatídico do holocausto. Foram palcos dos traumáticos efeitos humilhantes aos judeus, que para uns deve ser esquecido; para outros, relembrar é imperioso para a memória dos sobreviventes. O slogan do pós-guerra “Nunca novamente” soa ainda hoje como um conto de fadas. Treblinka fica na Polônia e foi o quarto campo de extermínio, em que milhares dos descendentes semitas foram mortos em câmaras de gás alimentadas por motores de explosão localizados nos arredores da cidade ocupada pelos alemães. Foi também o primeiro campo onde ocorreu a cremação dos cadáveres para ocultar o número de pessoas vítimas do genocídio.

Neste lugar foi criado um sistema de trabalho dos integrantes dos Sonderkommandos para que eliminassem alguns vestígios comprometedores, no qual os judeus eram incumbidos de receber os comboios de trens que chegavam para conduzir os deportados para as câmaras de gás, retirar os cadáveres, extrair os dentes e ouro e proceder a cremação. Este campo foi dividido pelos alemães em dois terrenos menores, onde em um deles os prisioneiros somente se ocupavam do extermínio e recuperação de objetos, e um segundo campo onde os prisioneiros só se ocupavam da retirada dos cadáveres e cremá-los. O filme O Filho de Saul (2015), com direção do jovem cineasta húngaro László Nemes, faz uma abordagem bem mais profunda e meticulosa sobre a temática, o que está ausente no documentário redundante e raso do brasileiro Tréfaut.

Eis uma realização repetitiva que se utiliza dos depoimentos de Isabel Ruth e Kirill Kashlikov, através de imagens distorcidas pela câmera, em um retorno ao passado para contar as artimanhas didaticamente rememoradas para escapar da morte no inferno daqueles campos de banheiros químicos. Mas falta a contundência de Phoenix (2014), de Christian Petzold, sobre a história da sobrevivente judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração, durante o período da II Guerra Mundial. Ou em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, no registro fabuloso de uma defesa intransigente para uma verdade não tão absoluta passada pelas gerações, na qual as vítimas são todas aquelas que não participaram diretamente, faz o espectador ter uma visão menos dualista, ao deixar fluir a equidistância da imparcialidade para elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da realidade.

Treblinka é um filme menor, sem consistência, embora haja um certo esforço do diretor em transformá-lo num documentário sério e histórico, porém pouco contribui para um registro interessante sobre a realidade cruel do nazismo e seus efeitos destruidores e reprováveis cometidos contra o povo judeu. Quanto à estética utilizada, não há inovação, pouca originalidade num tema recorrente, embora sempre instigante sobre todos os indiscutíveis aspectos. Um filme sem interesse pela monotonia, chato e arrastado nos intermináveis 61 minutos de projeção. Está longe de qualquer interesse mais aprofundado, mas que faz brotar o instinto de busca num alucinante mergulho de um passado brutal para uma solução adotada como prática abjeta por Hitler para resolver e limpar os milhares de exterminados em massa. Como se fosse uma fábrica que tem de manter as máquinas funcionando a todo vapor, era necessário estar sempre aptas as câmaras de gás para receber mais e mais vítimas. Os corpos deveriam ter um destino, entre eles as valas comuns que já não davam mais resultado prático, pois não poderiam ser simplesmente empilhados como numa grande lixeira humana. O horror estava impregnado em todas as vítimas e algozes que faziam parte da terrível paisagem putrefata. Estes são os relatos contados pelos dois personagens, porém tudo já foi visto no excelente filme de László Nemes, o premiado O Filho de Saul.

Mostra de Cinema São Paulo (Paterson)


Paterson

A 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo já tem um filme extraordinário, um dos melhores da cuidadosa seleção de 322 produções de vários países do mundo. Trata-se de Paterson, do cultuado diretor norte-americano Jim Jarmusch, responsável pelo bem elaborado roteiro enxutíssimo, com a maravilhosa fotografia de Frederick Elmes. O cineasta é um dos realizadores mais aclamados pela crítica e pelo público, tem em sua filmografia importantes títulos do cinema. Trabalhou como assistente de Nicholas Ray enquanto escrevia o roteiro de seu primeiro longa Férias Permanentes (1980). Dirigiu filmes como Estranhos no Paraíso (1984), vencedor do prêmio Caméra D’Or no Festival de Cannes e do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, Daunbailó (1986, 11ª Mostra), Trem Mistério (1989), Homem Morto (1995), Flores Partidas (2005) e Amantes Eternos (2013).

Com uma narrativa linear e emblemática sobre o cotidiano simples de um casal, no qual Paterson (Adam Driver) que leva o nome da cidade, em Nova Jersey, dirige um ônibus sempre na mesma rota e vai observando a paisagem que se revela pela janela, ouvindo fragmentos de conversas pitorescas que o rodeiam de segunda a sexta-feira. Folga sempre nos sábados e domingos, levantando-se diariamente entre 6h e 6h30min, para deslocar-se ao trabalho nesta metódica rotina, como manusear a caixa de fósforos e pronunciar uma repetitiva frase. O motorista faz poesia nas horas vagas, escrevendo suas inspirações num pequeno caderno de anotações que guarda com carinho e todo o cuidado no porão da casa, para num futuro publicar um livro, tal qual seu conterrâneo famoso sempre citado com emoção. Sua mulher é a jovial Laura (Golshifteh Farahani- a linda atriz iraniana de À Procura de Elly e Dois Amigos) que fica em casa fazendo minibolos com coberturas também repetitivas, conhecidos como cupcakes, além de pintar tecidos artesanalmente em preto e branco. O casal não tem filhos, somente a presença do atento cachorro da raça buldogue inglês, que irá aprontar para seu dono com estragos irreversíveis.

Jarmusch é um artesão na construção de personagens sofridos na vida e em situações que beiram o abismo. Em Paterson, a rotina é rigorosamente a mesma naquela semana filmada com sobriedade na forma de desconstrução de sonhos e ambições. O filme inicia numa segunda-feira para ter seu desfecho na próxima semana, no mesmo dia. O condutor do coletivo segue seu ritual diário, levanta cedo, observa a mulher dormindo candidamente, às vezes ela conta seus sonhos noturnos repletos de fantasias juvenis, em outras nem o vê sair. Ao retornar à noite para casa, pega o cão para passear nas proximidades, vai sempre ao mesmo bar boêmio na penumbra para beber sua cerveja no balcão, ao som de jazz ao fundo. É lá também que ouve algumas lamúrias de casais desencontrados, assiste a discussões mais acirradas, dentre as quais a de um rapaz negro apaixonado e desprezado pela namorada, apelidados pelo proprietário de Romeu e Julieta.Volta para casa para encontrar Laura, que aprova seu cheiro de álcool para agradá-lo. Ao contrário do marido, ela busca mudanças e sonha com algo melhor e pouco convencional, embora não seja uma transformadora na essência, tem seu apoio, pois ela o encoraja e vislumbra algum talento na poesia.

O filme tem uma trama simples, construído para uma reflexão sobre a existência e os aspectos da solidão. A trilha de Sqürl reflete com precisão na melodia que embala os notívagos, em que o silêncio da noite dos frequentadores só é quebrado por algum lamento, ou uma eventual invasão de um desafortunado do amor, a mesmice diária atordoante. Há vitórias e derrotas da vida cotidiana, pelos detalhes da singeleza de uma poesia que ainda teima em permanecer para evidenciar a razão de continuar a se viver com pureza. Eis um espetacular drama alicerçado com sobriedade das tintas sombrias da razão e da emoção contida dos dias que passam sem um objetivo maior no futuro do casal de pouca perspectiva. Há o inusitado fato após a volta de uma sessão de cinema, mas nem tudo está perdido, nem tudo é só pessimismo e só desesperança.

Há uma saída para a dolorosa tristeza, surge um misterioso japonês de Osaka na praça como um elemento de luz no fim do túnel, que trará um alento com a sábia doação de um bloco em branco, sem escrita, para incentivar a reabilitação do poeta anônimo desestruturado e perdido no tempo pelo incidente caseiro. A naturalidade é o elemento básico e pontual neste drama de cenas repetitivas propositalmente no transcurso do enredo, seguindo o mestre genial da reiteração Abbas Kiarostami, que se consagrou com a obra-prima Gosto de Cereja (1997), ganhadora da Palma de Ouro em Cannes. Paterson é um filme imperdível pela singularidade, não só pelas fantasias e sonhos contrapondo-se com o tédio visceral, mas pelo contexto amargurado, o pessimismo sombrio, mas com uma brecha para se continuar na busca da dignidade humana.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Elle)


Elle

Um filme aguardado que correspondeu toda a expectativa depositada é o instigante Elle, do festejado cineasta holandês Paul Verhoeven, com o enxuto e seco roteiro de David Birke, que empresta credibilidade para a recepção maravilhosa de público e crítica na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo, além da linda fotografia de Stéphane Fontaine, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora assinada por Anne Dudley. Encerrou o Festival de Cannes deste ano e foi indicado pela França para a disputa de uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O realizador dirigiu alguns dos mais importantes títulos do cinema do seu país, tais como: Louca Paixão (1973), Soldado de Laranja (1977) e O Quarto Homem (8ª Mostra, 1983). Deu uma guinada na carreira nos anos de 1980, com os longas produzidos em Hollywood, entre eles: RoboCop-O Policial do Futuro (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), da antológica cena do cruzamento de pernas de Sharon Stone.

Elle tem uma significativa dose de suspense com algumas sacadas de fino humor, o que suaviza a narrativa intensa, escapa com inteligência do tema recorrente do estupro propriamente dito. Não é um filme sobre o trauma específico do ato, como do excelente O Silêncio do Céu (2015), de Marco Dutra. Uma realização com duras cenas de um grau incomum de realismo puro que fascina pelo desdobramento na trajetória para um desfecho nada convencional e com tragicidade explícita. Verhoeven retrata Michèle- na soberba interpretação de Isabelle Huppert, uma atriz talhada para este tipo de papel que se doa com notável senso de profissionalismo, assim já o fizera em A Professora de Piano (2000)-, uma mulher determinada, aos 50 anos, que atrai pessoas que a detestam, mas parece ser indestrutível a executiva que chefia uma importante empresa de jogos de videogame predominantemente de jovens masculinos. É implacável na administração dos relacionamentos amorosos como no trabalho pela eficiente organização, mantém a serenidade apesar de ser atacada e humilhada em sua casa por um suposto assaltante mascarado, no qual seguirá os rastros do seu agressor para um jogo perigoso de sedução que perderá o controle. Mantém por perto o ex-marido, o amante que a despreza e a ignora em ocasiões festivas, além dos subordinados garotos suspeitos.

Há questões pertinentes e indigestas na entrelinhas do enredo, como a hipocrisia bem marcante que serve para dissecar as estruturas de poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da sexualidade, como subtemas há a intrincada interação de trabalho com a família visto como formas controvertidas de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher se impondo diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião do filho contra a autoridade materna e da pouca participativa presença do pai, bem como a contestação direta do funcionário ao empregador. É um questionamento da dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência sexual pelo desamor em tempos de solidão e individualismo com os fantasmas e os fetiches.

O impactante drama aborda com profundidade os efeitos da infância sofrida diante dos resquícios maléficos causados pela figura paterna, um serial killer que mata adultos, crianças e estupra mulheres. Embora condenado à prisão perpétua, a protagonista tinha apenas 10 anos, estava na hora errada e no lugar indesejado, ou seja, presente no dia da detenção do pai, com ampla repercussão na comunidade e na imprensa. Carrega com ela este estigma da maldade, que deixou para sempre sequelas, traumas e a agonia da culpa involuntária. Cresceu com problemas sexuais e psicológicos, tornando-se uma mulher fria que se satisfaz pela perversidade, fazendo outras vítimas, principalmente mulheres bem resolvidas e próximas de seu meio no cotidiano. Não há limites para suas investidas cruéis de desejos por relações que descambam para o sadomasoquismo latente que aflora e desperta uma realidade sem alegorias para saciar-se nos subterfúgios. Tem um filho frágil, ingênuo, submisso e dominado pela mulher, que faz gato e sapato com ele. Sua mãe também sofre e torna-se fútil diante do casamento fracassado com o marido preso pelos crimes hediondos cometidos, vira alvo da vingança e do desdém daqueles que nunca a perdoaram por extensão, como se fosse a culpada direta.

A complexidade de Elle vai ao encontro do envolvimento de Michèle com homens do entorno das suas relações com matrimônios desfeitos e a proximidade da tragédia iminente. Culpa e ressentimentos, com doses fortes de repetições de estupros são mesclados com o sadismo e o masoquismo, através de urros de orgasmos que se confundem com a dor da brutalidade selvagem do agressor e estão alinhados como ingredientes indispensáveis para Verhoeven construir este painel perturbador para uma plateia atenta julgar com isenção. Ninguém sai indiferente da sessão, o filme mexe com os espectadores, assim como o gato acinzentado da personagem central que também participa do cotidiano de sua dona. O intimismo da obra traz situações clássicas do suspense bem temperado, para transitar até o drama e selar como um filme marcante pela contundência das cenas arrojadas e bem apimentadas de uma relação violenta e brutal pelo contexto da trama bem urdida de um cineasta irrequieto acima da média para um resultado magnífico.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (The Stopover)


The Stopover

Um filme que é uma agradável surpresa na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo é este drama de guerra The Stopover, segundo longa das irmãs francesas Muriel Coulin e Delphine Coulin, que são responsáveis pelo bom roteiro. Muriel iniciou a carreira no cinema como fotógrafa e assistente de câmera, Delphine também é escritora. Elas começaram filmando em 1997 o curta Il Faut Imaginer Sisyphe Heureux e estrearam na direção de longas com 17 Girls (2011). A coprodução é da França com a Grécia, com a bela fotografia assinada por Jean-Louis Vialard no estonteante cenário de mar azul e rochedos, sendo vencedora do prêmio de roteiro da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes deste ano.

As diretoras se utilizaram de uma realidade dolorida e triste, para demonstrar o cinismo francês, que em nome da União Europeia intromete-se em questões alheias, como no caso do Afeganistão em guerra civil, além das frequentes disputas territoriais nas fronteiras com Irã e Iraque. Ao final da temporada de serviços prestados para o Exército no país invadido, um trio de jovens militares femininas: Aurore (Ariane Labet), Marine (Soko) e Fanny (Ginger Roman), ganham três dias de licença para retirar o estresse num fascinante resort cinco estrelas na República do Chipre, a paradisíaca ilha situada no mar Egeu oriental, a terceira maior e mais populosa no Mediterrâneo, ao sul da Turquia, e ao leste da Grécia. A ideia é a realizar uma descompressão com o restante do batalhão de homens em meio aos turistas, mas todos sofrem censura e não podem contar tudo que aconteceu, inclusive abafam seus dilemas pessoais. Mas as dificuldades se agigantam e não será fácil esquecer a guerra e deixar os traumas e a violência explícita para trás.

Estampa-se uma situação de embates pós-guerra com lembranças de um passado torturante para os personagens e seu impacto para o mundo que deverão voltar em breve, após se submeterem a sessões de terapia coletiva com a ajuda da tecnologia da realidade virtual em 3D para simular a guerra e iluminar o âmago e a alma, recuperar o físico e a mente, com o intuito da glorificação nacional no retorno com a pretensa missão cumprida. Tudo balela e hipocrisia dos comandos superiores. “O importante é vencer, o que se vai ganhar não importa”, diz um soldado para a colega mulher, ao dançar com a cabeça colada dividida apenas por uma laranja que não pode cair, num jogo de faz de conta. A serpente sob os cuidados de Marine simboliza a traição que se dará na emboscada que explode dos próprios companheiros enciumados do pelotão, quando a linda Aurore se relaciona amorosamente com o nativo Max (Karim Leklou), mas a cobra ao ser solta na natureza representa uma espécie de libertação às três moças naquela delicada missão de homens rudes. Uma metáfora que é bem manuseada pelas cineastas para lançar um olhar humano sob o ponto de vista feminista das atrocidades hostis sofridas pelas três mosqueteiras num universo machista.

O filme começa bem, ao se debruçar com os fantasmas dos conflitos bélicos que foram envolvidos os soldados franceses. Os delírios da guerra são bem captados pela câmera na primeira parte do longa. Mas aos poucos, o clímax se esvai com o contorcionismo do roteiro, ao abandonar as mazelas e as cicatrizes deixadas num ambiente inóspito para a busca do relaxamento do entretenimento naquele lugar paradisíaco. Porém com a entrada dos dois nativos, o atropelamento da cabra com desdém e as cenas de ciúmes, faz com que The Stopover enverede para uma realidade abordada com superficialidade, ou seja, a presença das mulheres num batalhão eminentemente de homens com os brios feridos no ego do macho preterido. A autoestima afetada dos super-heróis desdenhados sob a ótica da força em detrimento da inteligência do galanteio do galã da região.

Um drama bem fiel de um país que sofre frequentes atentados, tendo em vista suas trapalhadas na esfera da política internacional. É razoavelmente esmiuçado com boa dose de sutileza pelo caminho de violência com rastros de mortes estúpidas daqueles relatos comoventes, como do rapaz que morreu ao sentar no lugar que sempre fora de um outro colega, por uma coincidência do destino, naquele dia inesquecível para o sobrevivente, mas que levará para sempre as lembranças da tragédia. A narrativa está bem equilibrada e coerente, através de uma história contada com uma paradoxal suavidade, embora embrutecida por um panorama do horror dos relatos que deixou feridas abertas de difícil cicatrização, permeando a selvageria intercalada por momentos líricos doloridos, faz deste drama um apreciável manifesto coerente, sem cair no maniqueísmo de outras realizações. É um filme reflexivo pelas imagens com força de grande expressividade, com bons diálogos, embalados por uma trilha sonora fidedigna e saborosa na essência dos rostos e olhares de perplexidades mesclados com surpresa e indignação do passado.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O Silêncio do Céu


Fantasmas do Medo

Vencedor do melhor filme brasileiro pelo júri da crítica e ganhador do prêmio especial do júri no festival de Gramado deste ano, O Silêncio do Céu foi rodado em Montevidéu, é falado em espanhol e foi dirigido por Marco Dutra, de Trabalhar Cansa (2011), Desassossego (2011), Quando Eu Era Vivo (2012) e As Boas Maneiras (2014). Não é uma coprodução internacional, tendo e vista que foi todo financiado com dinheiro do Brasil, segundo seu produtor, Roberto Teixeira, embora o elenco seja multinacional. O instigante roteiro foi assinado por Caetano Gotardo, roteirista e diretor de O Que Se Move (2013), Lucía Puenzo, realizadora de O Médico Alemão (2013) e por Sergio Bizzio, autor do livro Era El Cielo, que foi adaptado livremente para o cinema.

O filme impacta pelo suave tom noir do cineasta que tem domínio exemplar dos atores em cena, além do notável senso de comunicação pela narrativa em off equilibrada de realismo puro e com doses de um clímax em alto grau de suspense, ao melhor estilo do mestre Alfred Hitchcock, num cenário com cores apropriadas para desenvolver a trama, através da fascinante fotografia de Pedro Luque, bem coadjuvado pela trilha sonora adequada e no ponto certo de Guilherme e Gustavo Garbato. A equipe técnica é fundamental e está bem afinada com o contexto da realização, que começa com o estupro como mola propulsora para mergulhar no desenrolar do enredo sobre os medos do ser humano e as multifobias do protagonista Mario (Leonardo Sbaraglia- excelente desempenho do intérprete de Relatos Selvagens). Ele assiste dentro de casa, paralisado e em estado quase catatônico, sua mulher Diana (Carolina Dieckmann- no melhor papel da carreira) ser violentada por dois rapazes, sendo um deles Néstor (Chino Darín- filho do astro Ricardo Darín) que trabalha num sinistro viveiro de plantas com a mãe (Mirela Pascual, atriz do filme uruguaio Wisky), entre as quais os cactos espinhosos alegóricos do matrimônio conturbado.

O realizador interage com o espectador e conta a cena brutal duas vezes: uma pela ótica da vítima e a outra pelo marido que vai buscar os dois filhos menores na escola. O segredo será mantido até o desfecho entre o casal. Um finge ao outro, e vice-versa, que não sabe nada do fato. Como num jogo de xadrez, as peças do tabuleiro se movem com o andar da história. Há um clima de terror silencioso entre os dois que causa tensão sufocante máxima. Diana sofre com os pesadelos noturnos das lembranças do dia fatídico, já Mário nutre um sentimento de culpa, está sempre ofegante e não consegue esconder sua raiva, seu ódio imensurável pela situação dos abusadores identificados por ele. Cria um personagem fictício, como na vida real em que escreve roteiros para filmes, para atingir seu objetivo da vingança servida como um prato frio de comida, tentando afastar desta forma os fantasmas que lhe rodeiam e povoam sua mente de um homem frágil e repleto de medos fóbicos doentios que pululam seu interior.

O Silêncio do Céu desborda o drama para ir ao encontro dos componentes essenciais do thriller policial e flertar com o suspense psicológico, até chegar à tragédia iminente com elementos de dor, amor, repulsa e sinais de traição que irão se desanuviando para um epílogo explosivo para reconquistar não só a mulher amada, de quem recém estava separado, e agora na fase de superação para a definitiva reaproximação, mas principalmente adquirir a autoestima perdida. Uma típica simbiose de uma aliança para buscar a dignidade que se evaporou pelo caminho tortuoso do sentimento da perda. O filme retrata com ênfase o vazio existencial do casal esmagado por segredos que são mantidos como um ato de cumplicidade que irá aos poucos sendo preenchido por revelações implícitas assustadoras, sem que haja necessidade de expressar diretamente entre eles naquele ambiente claustrofóbico e perverso.

Em drama com temática similar, Paulina (2015), do argentino Santiago Mitre, aborda a violência feminina de uma maneira pouco convencional, ao contextualizar a trama e dar luzes à história em uma reflexão profunda, tendo como subtema a justiça a serviço dos interesses pessoais de poderosos. Dutra retrata um filme inquietante que perturba de certa forma a plateia, tanto pela ótica da mulher violada que lida calada com seu sofrimento de vítima, como também mexe na angústia dolorosa do homem fragilizado desde a infância, como relata no prólogo, para buscar forças exteriores que irão lhe dar combustível para reagir internamente como um digno ser racional que pode exorcizar suas quimeras ameaçadoras que o acompanham e o tornam uma pessoa sem reação, como uma parasita que assiste a tudo imóvel. Mas a catarse final o reabilitará por alguns momentos, não em definitivo, como confessa à esposa no encontro no interior do carro, numa bela cena que emociona e comove sem ter a pretensão de soluções definitivas. Uma obra estupenda de um ensaio psicológico da construção de dois sensíveis personagens melancólicos que o destino aproximou nesta fusão de gêneros de elogiado domínio estético superior aos anteriores do cineasta que, ao lado do polêmico Aquarius, deverá estar entre os dez melhores do ano.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Aquarius



A Resistência

Depois do badalado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de melhor filme no Festival do Rio, Kleber Mendonça Filho causou polêmica com Aquarius, seu último longa-metragem, diante do protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes, o filme virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. Outro fato controvertido se deu pela ação do Ministério da Justiça, que determinou impropriedade para menores de 18 anos, voltou atrás e reclassificou para 16 anos. Foi visto pelos produtores como retaliação do governo. Aclamado pelo público presente com gritos e vaias veementes contrários à atual situação da política brasileira, ao ser exibido como hours concours na abertura da 44ª. edição do Festival de Gramado. Outra polêmica aconteceu com os diretores de Boi Neon, Mãe Só Há Uma e Para Minha Amada Morta, que retiraram seus títulos de postulantes ao Oscar de 2017, em solidariedade ao cineasta pernambucano, mas não adiantou, foi desbancado por Pequeno Segredo, de David Schurmann.

Um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a temática do cotidiano invadido e da especulação imobiliária desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. A narrativa traz no bojo um realismo da exacerbação pela intransigência através de métodos absurdos de coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe venda seu apartamento para construir um novo prédio no espaço. Sonia Braga está esplendorosa e mergulha com uma desenvoltura impecável para atuar de maneira sóbria no papel da personagem central Clara, de 65 anos, uma jornalista aposentada, escritora, viúva e mãe de três filhos adultos, que saiu de um câncer de mama, o qual venceu com galhardia e determinação a moléstia, para lutar agora contra outro obstáculo da vida, sua permanência ameaçada no último edifício antigo da Av. Beira-Mar, da bela praia de Boa Viagem da cidade de Recife. Todos os antigos vizinhos venderam suas unidades, exceto ela, que quer ficar ali, tendo deixado bem claro que não pretende fazer negócio.

O diretor, que também assinou o enxuto roteiro, conta uma história aparentemente simples, porém surgem na trajetória da trama situações complexas encontradas no dia a dia de qualquer mortal. Clara é uma espécie de resistência aos desmandos especulativos, pois finca pé e não aceita discutir a proposta, sequer abre qualquer possibilidade para o investidor adquirir seu patrimônio de valor estimativo imensurável. Foi neste apartamento que viveu momentos felizes com o marido e criou seus filhos, pois neste lugar está todo seu passado e pretende sair dali somente morta, como afirma numa cena de um diálogo ríspido com um dos engenheiros. Embora esteja numa situação delicada, inclusive para seus ex-vizinhos, por ser o último entrave do progresso para a modernidade apregoada. É comovedora sua energia diante da pressão psicológica pelo constrangimento de ter que presenciar uma suruba no andar superior com música alta pela madrugada, encontros religiosos de uma igreja evangélica e lidar com a infestação de ninhos de cupins plantados voluntariamente pela força do poder como ameaça explícita à sua integridade física.

O filme retrata com grande sensibilidade as hipocrisias e os cinismos dos representantes da construtora, mas que terão no sarcasmo e na ironia da brava protagonista que se agiganta com o aval de dois dos três filhos, enquanto que a filha (Maeve Jinkings) é contrária à sua posição, chega a questionar a legitimidade da mãe, numa cizânia familiar que aos poucos vai sendo contornada pela clarividência de posicionamento. A amizade do salva-vidas (Irandhir Santos) é outro fator positivo para sua luta, além da fidelidade afetiva das amigas. O longa é dividido em três capítulos, abre com a linda música Hoje, de Taiguara, e irá fechar com a mesma canção, passando pela eclética trilha sonora ao som de Roberto Carlos, Gil, Bethânia, Villa-Lobos e Queen. A fotografia de Pedro Sotero e Eduardo Serrano é outro acerto do fascinante cenário de imagens aconchegantes e bem exploradas, como nas festas de aniversário embalados pelo tradicional “parabéns a você”. O cineasta retrata com delicadeza o lado familiar e carinhoso da protagonista que vira uma leoa para defender seus direitos inalienáveis, que irresigna-se com o velho sendo descartado pela substituição do novo em nome progresso do futuro incerto dos planos de demolição. A realocação e a modernização ditadas como regras de soluções pragmáticas chocam-se com o bem-estar e o sagrado direito da livre definição, ainda que seja tachada de retrógrada para simbolizar sua liberdade de decisão, contrapondo-se ao que é salutar para seu destino traumatizado pelas cicatrizes.

Aquarius é um drama que transita para o suspense sobre a escolha, ainda que com algum saudosismo, como na preferência pelos discos de vinil, a rejeição pelo digital em nome do analógico, mas que não cai no melodrama fácil ao fugir das armadilhas inerentes. Mendonça Filho não lança mão de metáforas e alegorias como no longa anterior, busca no afeto e na manutenção da memória subsídios básicos e indispensáveis para a construção deste enredo magnífico de reverenciamento da preservação como forma de manter viva a alma como essência da poesia contrária à ganância especulativa sem limites. O realizador aponta para a imposição da força dominadora representada pelo progresso desvairado dominante no contexto ao demonstrar seu poder de fogo na pressão psicológica sob forma de tortura, embora seja um filme quase que silencioso para apresentar a insegurança que vai instalando-se e reflete na tranquilidade estremecida. Foram anos áureos que ficaram para trás num retrato dos contrastes de uma realidade brasileira de anomalias e distanciamentos e avança com sintonia fina através dos sonhos convulsivos que poderão ser reais com uma estrutura narrativa de inspirada criatividade, sem cair na obviedade, através de elementos caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade esta emblemática realização sobre o libelo da injustiça como uma obra maior no cenário nacional.