Paterson
A 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo já tem um filme
extraordinário, um dos melhores da cuidadosa seleção de 322 produções de vários
países do mundo. Trata-se de Paterson,
do cultuado diretor norte-americano Jim Jarmusch, responsável pelo bem
elaborado roteiro enxutíssimo, com a maravilhosa fotografia de Frederick Elmes.
O cineasta é um dos realizadores mais aclamados pela crítica e pelo público,
tem em sua filmografia importantes títulos do cinema. Trabalhou como assistente
de Nicholas Ray enquanto escrevia o roteiro de seu primeiro longa Férias Permanentes (1980). Dirigiu
filmes como Estranhos no Paraíso
(1984), vencedor do prêmio Caméra D’Or no Festival de Cannes e do Leopardo de
Ouro no Festival de Locarno, Daunbailó
(1986, 11ª Mostra), Trem Mistério (1989),
Homem Morto (1995), Flores Partidas (2005) e Amantes Eternos (2013).
Com uma narrativa linear e emblemática sobre o cotidiano
simples de um casal, no qual Paterson (Adam Driver) que leva o nome da cidade,
em Nova Jersey, dirige um ônibus sempre na mesma rota e vai observando a
paisagem que se revela pela janela, ouvindo fragmentos de conversas pitorescas
que o rodeiam de segunda a sexta-feira. Folga sempre nos sábados e domingos,
levantando-se diariamente entre 6h e 6h30min, para deslocar-se ao trabalho
nesta metódica rotina, como manusear a caixa de fósforos e pronunciar uma
repetitiva frase. O motorista faz poesia nas horas vagas, escrevendo suas
inspirações num pequeno caderno de anotações que guarda com carinho e todo o
cuidado no porão da casa, para num futuro publicar um livro, tal qual seu
conterrâneo famoso sempre citado com emoção. Sua mulher é a jovial Laura
(Golshifteh Farahani- a linda atriz iraniana de À Procura de Elly e Dois
Amigos) que fica em casa fazendo minibolos com coberturas também repetitivas,
conhecidos como cupcakes, além de pintar tecidos artesanalmente em preto e
branco. O casal não tem filhos, somente a presença do atento cachorro da raça buldogue
inglês, que irá aprontar para seu dono com estragos irreversíveis.
Jarmusch é um artesão na construção de personagens sofridos
na vida e em situações que beiram o abismo. Em Paterson, a rotina é rigorosamente a mesma naquela semana filmada
com sobriedade na forma de desconstrução de sonhos e ambições. O filme inicia
numa segunda-feira para ter seu desfecho na próxima semana, no mesmo dia. O
condutor do coletivo segue seu ritual diário, levanta cedo, observa a mulher
dormindo candidamente, às vezes ela conta seus sonhos noturnos repletos de
fantasias juvenis, em outras nem o vê sair. Ao retornar à noite para casa, pega o cão para
passear nas proximidades, vai sempre ao mesmo bar boêmio na penumbra para beber sua cerveja no
balcão, ao som de jazz ao fundo. É lá também que ouve algumas lamúrias de
casais desencontrados, assiste a discussões mais acirradas, dentre as quais a
de um rapaz negro apaixonado e desprezado pela namorada, apelidados pelo
proprietário de Romeu e Julieta.Volta para casa para encontrar
Laura, que aprova seu cheiro de álcool para agradá-lo. Ao contrário do marido, ela
busca mudanças e sonha com algo melhor e pouco convencional, embora não seja
uma transformadora na essência, tem seu apoio, pois ela o encoraja e vislumbra algum
talento na poesia.
O filme tem uma trama simples, construído para uma reflexão
sobre a existência e os aspectos da solidão. A trilha de Sqürl reflete com
precisão na melodia que embala os notívagos, em que o silêncio da noite dos frequentadores
só é quebrado por algum lamento, ou uma eventual invasão de um desafortunado do
amor, a mesmice diária atordoante. Há vitórias e derrotas da vida cotidiana, pelos
detalhes da singeleza de uma poesia que ainda teima em permanecer para
evidenciar a razão de continuar a se viver com pureza. Eis um espetacular drama
alicerçado com sobriedade das tintas sombrias da razão e da emoção contida dos
dias que passam sem um objetivo maior no futuro do casal de pouca perspectiva.
Há o inusitado fato após a volta de uma sessão de cinema, mas nem tudo está
perdido, nem tudo é só pessimismo e só desesperança.
Há uma saída para a dolorosa tristeza, surge um misterioso
japonês de Osaka na praça como um elemento de luz no fim do túnel, que trará um
alento com a sábia doação de um bloco em branco, sem escrita, para incentivar a
reabilitação do poeta anônimo desestruturado e perdido no tempo pelo incidente
caseiro. A naturalidade é o elemento básico e pontual neste drama de cenas repetitivas
propositalmente no transcurso do enredo, seguindo o mestre genial da reiteração
Abbas Kiarostami, que se consagrou com a obra-prima Gosto de Cereja (1997), ganhadora da Palma de Ouro em Cannes. Paterson é um filme imperdível pela
singularidade, não só pelas fantasias e sonhos contrapondo-se com o tédio
visceral, mas pelo contexto amargurado, o pessimismo sombrio, mas com uma
brecha para se continuar na busca da dignidade humana.
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