sábado, 29 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (Paterson)


Paterson

A 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo já tem um filme extraordinário, um dos melhores da cuidadosa seleção de 322 produções de vários países do mundo. Trata-se de Paterson, do cultuado diretor norte-americano Jim Jarmusch, responsável pelo bem elaborado roteiro enxutíssimo, com a maravilhosa fotografia de Frederick Elmes. O cineasta é um dos realizadores mais aclamados pela crítica e pelo público, tem em sua filmografia importantes títulos do cinema. Trabalhou como assistente de Nicholas Ray enquanto escrevia o roteiro de seu primeiro longa Férias Permanentes (1980). Dirigiu filmes como Estranhos no Paraíso (1984), vencedor do prêmio Caméra D’Or no Festival de Cannes e do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, Daunbailó (1986, 11ª Mostra), Trem Mistério (1989), Homem Morto (1995), Flores Partidas (2005) e Amantes Eternos (2013).

Com uma narrativa linear e emblemática sobre o cotidiano simples de um casal, no qual Paterson (Adam Driver) que leva o nome da cidade, em Nova Jersey, dirige um ônibus sempre na mesma rota e vai observando a paisagem que se revela pela janela, ouvindo fragmentos de conversas pitorescas que o rodeiam de segunda a sexta-feira. Folga sempre nos sábados e domingos, levantando-se diariamente entre 6h e 6h30min, para deslocar-se ao trabalho nesta metódica rotina, como manusear a caixa de fósforos e pronunciar uma repetitiva frase. O motorista faz poesia nas horas vagas, escrevendo suas inspirações num pequeno caderno de anotações que guarda com carinho e todo o cuidado no porão da casa, para num futuro publicar um livro, tal qual seu conterrâneo famoso sempre citado com emoção. Sua mulher é a jovial Laura (Golshifteh Farahani- a linda atriz iraniana de À Procura de Elly e Dois Amigos) que fica em casa fazendo minibolos com coberturas também repetitivas, conhecidos como cupcakes, além de pintar tecidos artesanalmente em preto e branco. O casal não tem filhos, somente a presença do atento cachorro da raça buldogue inglês, que irá aprontar para seu dono com estragos irreversíveis.

Jarmusch é um artesão na construção de personagens sofridos na vida e em situações que beiram o abismo. Em Paterson, a rotina é rigorosamente a mesma naquela semana filmada com sobriedade na forma de desconstrução de sonhos e ambições. O filme inicia numa segunda-feira para ter seu desfecho na próxima semana, no mesmo dia. O condutor do coletivo segue seu ritual diário, levanta cedo, observa a mulher dormindo candidamente, às vezes ela conta seus sonhos noturnos repletos de fantasias juvenis, em outras nem o vê sair. Ao retornar à noite para casa, pega o cão para passear nas proximidades, vai sempre ao mesmo bar boêmio na penumbra para beber sua cerveja no balcão, ao som de jazz ao fundo. É lá também que ouve algumas lamúrias de casais desencontrados, assiste a discussões mais acirradas, dentre as quais a de um rapaz negro apaixonado e desprezado pela namorada, apelidados pelo proprietário de Romeu e Julieta.Volta para casa para encontrar Laura, que aprova seu cheiro de álcool para agradá-lo. Ao contrário do marido, ela busca mudanças e sonha com algo melhor e pouco convencional, embora não seja uma transformadora na essência, tem seu apoio, pois ela o encoraja e vislumbra algum talento na poesia.

O filme tem uma trama simples, construído para uma reflexão sobre a existência e os aspectos da solidão. A trilha de Sqürl reflete com precisão na melodia que embala os notívagos, em que o silêncio da noite dos frequentadores só é quebrado por algum lamento, ou uma eventual invasão de um desafortunado do amor, a mesmice diária atordoante. Há vitórias e derrotas da vida cotidiana, pelos detalhes da singeleza de uma poesia que ainda teima em permanecer para evidenciar a razão de continuar a se viver com pureza. Eis um espetacular drama alicerçado com sobriedade das tintas sombrias da razão e da emoção contida dos dias que passam sem um objetivo maior no futuro do casal de pouca perspectiva. Há o inusitado fato após a volta de uma sessão de cinema, mas nem tudo está perdido, nem tudo é só pessimismo e só desesperança.

Há uma saída para a dolorosa tristeza, surge um misterioso japonês de Osaka na praça como um elemento de luz no fim do túnel, que trará um alento com a sábia doação de um bloco em branco, sem escrita, para incentivar a reabilitação do poeta anônimo desestruturado e perdido no tempo pelo incidente caseiro. A naturalidade é o elemento básico e pontual neste drama de cenas repetitivas propositalmente no transcurso do enredo, seguindo o mestre genial da reiteração Abbas Kiarostami, que se consagrou com a obra-prima Gosto de Cereja (1997), ganhadora da Palma de Ouro em Cannes. Paterson é um filme imperdível pela singularidade, não só pelas fantasias e sonhos contrapondo-se com o tédio visceral, mas pelo contexto amargurado, o pessimismo sombrio, mas com uma brecha para se continuar na busca da dignidade humana.

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