quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2020)










Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Já é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos nos cinemas e nas plataformas de streaming em 2020 devido ao vírus da Covid-19. Também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Você Não Estava Aqui, de Ken Loach (foto acima);

02. Não Há Mal Algum, de Mohammad Rasoulof;

03. Rede de Ódio, de Jan Komasa;

04. Aqueles Que Ficaram, de Barnabás Tóth;

05. Aranha, de Andrés Wood;

06. Crimes de Família, de Sebastián Schindel;

07. Ninguém Sabe que Estou Aqui, de Gaspar Antillo;

08. Ema, de Pablo Larraín;

09. O Farol, de Robert Eggers;

10. Mank, de David Fincher.

Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

 - Aos Olhos de Ernesto, de Ana Luiza Azevedo;

- Mignones (Lindinhas), de Maïmouna Doucouré;

- Democracia em Vertigem, de Petra Costa;

- Correndo Para o Céu, de Mirlan Abdykalykov;

- Narciso em Férias, de Renato Terra e Ricardo Calil.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Mank

 

Cidadão Kane Revisitado

O eficiente cineasta David Fincher conta a polêmica história do crítico de teatro e roteirista Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman- de estupenda atuação) sobre os bastidores em Hollywood da obra-prima Cidadão Kane (1941), dirigida pelo jovem prodígio do rádio e do teatro Orson Welles, aos 25 anos, em seu filme de estreia, inspirado no magnata William Hearst. Travou-se uma árdua luta pela autoria do célebre roteiro e o respectivo crédito no longa-metragem, apontado por uma grande parcela dos críticos como o maior filme de todos os tempos. Mank é uma mescla de drama com cinebiografia e foi escrito por Jack Fincher, pai do realizador David, que morreria em 2003. Desenvolveu o projeto ao lado do filho por muitos anos até ser finalmente bancado pela Netflix. Deverá ter várias indicações ao Oscar de 2021. O enredo segue com muita engenharia a tumultuada disputa de Mankiewicz- conhecido no meio cinematográfico como Mank- pela inserção de seu nome nos créditos, chegando a desistir de receber quaisquer valores previamente acertados com a produção. Eis um dos filmes mais autorais e intimistas do diretor, que tem em sua filmografia Seven (1995), Zodíaco (2007), O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) e A Rede Social (2010).

O lado obscuro de Hollywood quase sempre foi um tema abordado dentro de um exercício satírico e crítico que já rendeu obras memoráveis de diretores inesquecíveis. Assim foi com Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, Assim Estava Escrito (1953), de Vincente Minnelli e O Jogador (1992), de Robert Altman. Os mais recentes que fizeram alusão ou alguma crítica velada foram Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas, o festejado vencedor do Oscar Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância (2014), de Alejandro González Iñarritu, e Mapas para as Estrelas (2014), do veterano cineasta canadense David Cronenberg, quando satirizou de forma irônica a perversidade infiltrada no charmoso mundo de futilidades e ambições sem limites das celebridades hollywoodianas, recheado de sarcasmo para dar vida e consistência devastadora à indústria norte-americana. Recentemente tivemos Era Uma Vez em...Hollywood (2019), do cultuado Quentin Tarantino, prestando uma homenagem prazerosa à indústria cinematográfica mais famosa do mundo, ambientada em Los Angeles, no ano de 1969, em apenas três dias na vida de dois atores em decadência diante das profundas mudanças sociais e políticas convergentes no universo dos mortais.

O realizador coloca de maneira hábil e equilibrada esta perturbadora trama em que são inoculadas as verdades mescladas com mentiras relatadas através da magia das grandes fábulas naquele universo fantástico de sonhos realizados ou frustrados. A desglamourização é acentuada na inventiva subversão ficcional contrapondo com a realidade de fatos ocorridos de repercussão. Um retrato significativo de Mank, cujas tendências de esquerda são apontadas para macular o roteirista quase que marginalizado pelos discursos anticomunistas de produtores e os responsáveis dos grandes estúdios. Tachado de ser somente um inveterado alcoólatra e fanfarrão de comportamentos obsessivo-destrutivos por alguns, visto como um profissional genial por outros, em diálogos marcantes e profundos de uma narrativa em tom quase que documental. Mas está presente a ironia embutida pela atmosfera do bom humor com sutilezas nas belas imagens de um cinema elucidativo, registrado por uma fascinante fotografia em preto e branco, assinada pelo competente Erik Messerschmidt, plenamente harmonizada com a atmosfera da época, embora traga um sabor amargo de uma artificial realidade.

Méritos para Fincher que faz com sensibilidade uma revisita à Era de Ouro em Hollywood fustigada pela crise financeira e ao processo conturbado do projeto do clássico Cidadão Kane. Num cenário antigo faz um passeio ao imaginário do espectador, recriando com esmero e fidelidade através de uma produção impecável de figurinos, automóveis e prédios que nos remetem para os anos de 1930. Logo após a Grande Depressão que ocasionou uma forte recessão econômica atingindo o capitalismo internacional e terminando apenas com a Segunda Guerra Mundial. Uma autêntica reconexão com o passado para contar um consistente imbróglio, sem cair na armadilha de prestar falsos tributos. Um mergulho inexorável num ambiente marcado por fofocas, bizarrices, intrigas e vaidades, na qual o personagem central tinha dúvidas pelas circunstâncias afloradas nos confrontos com o então neófito diretor Orson Welles. Lança reflexões sobre os pensamentos individuais dos personagens envolvidos pelas batalhas pessoais num contexto de incertezas dos princípios econômicos em jogo. Eram os prazos se esgotando e o irmão de Mank, Joe, assumindo a finalização do roteiro para terminar a obra com sérias dificuldades financeiras, que seria celebrizada posteriormente. Havia preocupação com o povo sem dinheiro para pagar ingresso no cinema e a proposta para projetar os filmes na rua mesmo.

Mank retrata uma desconstrução de Hitler e o povo alemão é colocado em xeque, os interesses políticos em evidência, em especial a ode ao Partido Republicano dos EUA e as falsas notícias lançadas supostamente pelo Partido dos Democratas na eleição da Califórnia, em um intrincado confronto entre socialismo e capitalismo, além da relação com a eleição no Canadá do simpático candidato que agradaria aos norte-americanos. Entre os interesses políticos, há uma abordagem sobre a Associação dos Roteiristas por melhores salários em rota de colisão com os grandes estúdios da MGM e Warner, bem como as aquisições e as trocas de acionistas, além dos filmes com informações falsas (fake news) para alavancar e proteger determinado candidato sintonizado com as ideologias defendidas por poderosos estúdios. Neste contexto, se insere o casamento em ruínas, após 20 anos, de Herman J. Mankiewicz, embora o filme esteja focado no protagonista e sua fiel escudeira, a secretária e datilógrafa. Eles estão permanentemente no rancho contrastando com os bons momentos de Hollywood e sua rotina de grandes tomadas de cavalos, mocinhos e vilões em verdejantes campos imensos. Porém, o desfecho catártico é revelador pelos vômitos escatológicos simbolizando as injustiças sociais metaforicamente invocadas através do imortalizado personagem Dom Quixote no jantar de gala dos poderosos, entre os quais estava William Hearst, com os astros e estrelas hollywoodianos, em uma história complexa neste admirável filme de época a ser prestigiado.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Mostra de Cinema São Paulo (Não Há Mal Algum)

 










Não Há Mal Algum

Um dos filmes mais aguardados que correspondeu à expectativa depositada é o fabuloso Não Há Mal Algum, vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim. A direção é do festejado cineasta iraniano Mohammad Rasoulof, que também assinou o roteiro, emprestando credibilidade para a calorosa recepção da crítica e laureado pelo público na categoria de Melhor Filme de Ficção Internacional nesta on-line 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo. O realizador dirigiu importantes títulos exibidos nas edições anteriores da Mostra de SP anteriores, tais como: O Crepúsculo (2003), A Ilha de Ferro (2005) e Adeus (2011), no qual levou o prêmio de melhor diretor no Um Certo Olhar do Festival de Cannes. É dele também Manuscritos Não Queimam (2013) e A Man of Integrity (2017), obra que foi premiada como melhor filme da seção Um Certo Olhar, em Cannes. Em 2010, Rasoulof foi preso, enquanto trabalhava ao lado do cineasta conterrâneo Jafar Panahi, sendo condenado a um ano de detenção e impedido de deixar seu país desde 2017.

Mesmo com todas as dificuldades de filmar no Irã, realizou este instigante drama sociopolítico em coprodução com a Alemanha e a República Tcheca para abordar uma temática pouco explorada, que é o perfil dos executores para a aplicação da pena de morte. O longa retrata a escolha de quatro homens para serem os carrascos divididos em quatro episódios. Não importa a decisão tomada, ela irá transformar os aspectos psicológicos dos verdugos e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles, direta ou indiretamente. Nos 152 minutos, que passam rapidamente, as histórias são apresentadas como temas cruciais ao redor de questões morais e da pena capital imposta. A liberdade individual tem pouco valor e não pode ser expressa como livre expressão de vontade em um regime tirânico diante das ameaças incontornáveis como verdades absolutas e inquestionáveis, deixando traumas indeléveis em seres humanos submetidos a execuções.

O realizador usa com acidez a frase irônica “se o homem foi condenado à morte, ele deve ter feito algo para estar ali”, sendo repetida reiteradamente. Parte-se da premissa que a polícia e o judiciário não erram, por isto, pressupostamente, não há falha na engrenagem funcional, e sendo assim inexiste espaço para questionamentos sobre alguma perseguição política contrária ao conjunto de leis baseadas no Alcorão que fortalecem o regime teocrático vigente. Portanto, os pressupostos dos ditames do ordenamento jurídico determinam que o cidadão comum se não estivesse envolvido em ilicitudes que acarretam em condenações e, se foi punido, alguma coisa fez e deve ao Estado, por ser irresponsável ou criminoso. O primeiro capítulo não determina os motivos da conduta de Heshmat (Ehsan Mirhosseini), um funcionário compenetrado da classe média e aparente exemplar marido atencioso. Ele anda de carro com a mulher e a filha, depois de buscar a criança na escola, vão ao supermercado e acabam jantando num restaurante. Depois de algum vacilo em ir trabalhar, ao chegar ao local, aperta o botão friamente para revelar seu segredo e a ansiedade incontida da tarefa dolorida da execução dos condenados à forca.

No capítulo 2, “She Said: ‘You Can do It’”, há uma clara e manifesta insurreição do soldado que tentar renegar a qualquer custo cumprir sua tarefa maldita de matar. Tenta fazer um acordo e pagar um companheiro para realizar o ato determinado, tendo em vista que este necessita de dinheiro para os remédios da irmã. No episódio posterior, “Birthday", o rapaz retorna à casa da namorada para o seu aniversário e quer noivar com a garota. Durante o tempo que esteve prestando serviço militar, a família da futura noiva abriga um político refugiado. A festa sofrerá abalos com revelações importantes sobre os fatos que se sucedem. Há um choque de ideias do soldado cumpridor da lei com a situação que lá encontrou. Habilmente o cineasta, após um segredo revelado, aborda os reflexos do passado que irão contaminar uma relação de amor e paixão. Arrependimento e culpa são ingredientes colocados para uma profunda reflexão diante da catarse de mágoas e tristezas que irão marcar para sempre os personagens principais envolvidos. No último episódio, “Kiss Me”, há uma conexão como sequência do segundo, o médico em estado adiantado de uma moléstia, com um olhar distante, sem carteira de habilitação, recebe em sua residência com a esposa uma jovem da Europa. Ele cria abelhas e caça javalis e raposas. O segredo contado à hospede irá mudar seus destinos e a visão do cotidiano de abates de animais, como da raposa e seu olhar de gratidão no epílogo. Uma metáfora da perseguição sobre as mortes brutais do regime totalitário com o dia a dia no deserto que abriga um microcosmo familiar e seus problemas conjunturais do passado que refletem no presente e apontam para um futuro de poucas perspectivas.

Com um elenco de atores coesos e sem reparos nos seus respectivos papéis nas belas imagens em scope de grandes planos gerais iluminadas nos esplendorosos cenários. Destaque para a estupenda fotografia de Ashkan Ashkani, como no último episódio locado em chão batido de terras poeirentas entre montanhas, onde se consagraram Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), e a obra-prima Gosto de Cereja (1997); notabilizou Mohsen Makhmalbaf com A Caminho de Kandahar (2001); bem como Jafar Panahi em O Balão Branco (1995) e O Círculo (2000). Porém, o roteiro lida com a responsabilidade ética e o arrependimento dos escalados para matar, principalmente nos três últimos episódios. Cada história apresenta os danos psicológicos dos executores construídas com cenas de exemplar naturalismo sobre as vidas e as peculiaridades dos amores e amizades de cada um e a relação com o exército. O foco do drama não é a vítima e nem a dolorosa perda da vida, porém se debruça nos dramas pessoais irreparáveis dos algozes cumprindo ordens superiores decorrentes do obrigatório treinamento no serviço militar. Aponta o diretor com lucidez e um olhar melancólico para as mortes praticadas por aqueles homens. As conseqüências são as cicatrizes que permanecem abertas neles pelos atos cometidos involuntariamente. Não Há Mal Algum é uma pequena obra-prima de uma história fragmentada e retumbante na complexidade da essência cinematográfica esmiuçada para uma aprofundada reflexão aterradora dos grotescos julgamentos dos não alinhados ao regime.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Mostra de Cinema São Paulo (Aranha)

 

Aranha

O Chile em coprodução com o Brasil e a Argentina tem um digno representante em exibição nesta on-line 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo. O contundente drama sociopolítico Aranha retrata as artimanhas do terrorismo da extrema direita para destituir em 1973 o governo democrático de Salvador Allende, eleito pelo povo em 1970, para instalar a ditadura sob o comando do general Augusto Pinochet. A direção é do conceituado Andrés Wood, que tem uma filmografia respeitada A Febre do Louco (2001), o cultuado Machuca (2004), com o qual obteve sucesso internacional e Violeta Foi para o Céu (2011), uma coprodução que chegou a ser indicada para o Oscar daquele ano, tendo vencido o Festival de Sundance, nos EUA, com os prêmios do público e do júri internacional; melhor atriz em Guadalajara, prêmio do júri em Miami; e ainda um dos finalistas do prêmio Goya, na categoria de produção ibero-americana. Foi sucesso total e campeão de público chileno em 2011, sendo assistido por mais de 400.000 espectadores.

Seu último filme, Aranha, foi produzido em 2019, e está fazendo sucesso na Mostra de SP deste ano, tanto junto ao público como pela maioria da crítica. Com um roteiro dinâmico de Guillermo Calderón, que também escreveu Ema (2019), de Pablo Larraín, o drama faz um retrato fiel do violento grupo nacionalista Pátria e Liberdade, alinhado à ala conservadora chilena e com suposto apoio dos EUA, que organizava ataques e crimes para espalhar desordens com protestos nas ruas. Havia o intuito de derrubar o governo de Allende, tachado de comunista. Organizado pela reacionária e dissimulada candidata a miss de seu país, Inés (Mercedes Morán na fase adulta e Maria Valverde na juventude) e o marido Justo (Felipe Armas), receberam a participação eficiente de Gerardo (Marcelo Alonso já envelhecido e Pedro Fontaine quando jovem). O trio nomeou a liderança para Antonio (Caio Blat), que depois se afastou. Inés e Gerardo mantinham um relacionamento secreto extraconjugal, mas em uma operação, onde eles matam uma pessoa por motivos políticos em circunstâncias de acidente, e um ato de traição que irá separá-los aparentemente para sempre, por um longo período, diante das relações que ficaram abaladas.

O enredo dá um salto de quarenta anos, quando inesperadamente Gerardo surge inspirado para uma possível vingança, e também com o propósito da obsessão de reviver a causa nacionalista do cerceamento das liberdades fundamentais que tanto lutou no passado. Irá enfrentar a resistência de Inés, agora uma empresária de sucesso, e com uma coluna no jornal, que fará de tudo para impedir que sua vida pretérita e do marido doente venham à tona. Ela também sofre pressão do filho que tenta buscar respostas convincentes sobre as articulações dela e do pai na juventude, mas sempre recebe respostas evasivas. O ex-amante é preso em flagrante e acusado de matar um suspeito de assalto na rua. Sente-se ainda um justiceiro para eliminar políticos corruptos. Em sua casa são encontradas diversas armas, pois tem ainda em mente os resquícios de quando integrava o grupo terrorista de outrora. Laudos médicos são falsificados para proteger criminosos da extrema direita, tornando-os inimputáveis, no afã de evitar um julgamento digno.

Um dos méritos do diretor é saber explorar as atrocidades contrárias aos anseios da população que elegeu pelas urnas um governo, sem cair nos excessos. É uma ótima abordagem com dignidade do ocaso de uma era estigmatizada pela barbárie. Já em Machuca havia boa abrangência de fatos sendo denunciados, através de um panorama mais sombrio e melancólico. Aranha traz nas sutilezas as perspicácias bem elaboradas na linha de denúncias eloquentes de um período hostil e tenebroso que viveu o Chile. Um mergulho sobre questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham as situações marcantes que pulverizaram a política e suas consequências sociais que abrem as mazelas para introduzir um regime de tirania marcado pelos fuzilamentos, as sessões de torturas e o triste índice de milhares de desaparecidos, como sugere o enredo, após o golpe militar. O drama social retrata a política suja e seus meandros com os bastidores de um grupo nazifascista enrolado na bandeira do nacionalismo sendo colocado em xeque diante das atrocidades para derrubar o governo de Allende.

Outra ideologia abraçada pelo extremismo é o repugnante xenofobismo da discriminação pela ojeriza aos imigrantes, como no episódio da cena dos haitianos sendo metralhados covardemente. O epílogo deste drama com tom de suspense mostra o latente ódio visceral oriundo dos simpatizantes da repressão. Uma história contada sobre a sociedade chilena elitizada repleta de uma ignorância com tintas fortes da alienação burguesa em conluio com os crimes cruéis. Neste contexto está a própria personagem central que lança sua candidatura à prefeitura. Uma admiradora fervorosa de seus ideais ditados por um brutal reacionarismo na defesa de um capital selvagem embevecido pelo egoísmo num mundinho de cinismo. Quer manter a zona de conforto e os privilégios da riqueza desfrutada pelas simbologias evidentes sobre as futilidades e a pusilânime violência maquiavélica do fim justificando os meios. São apontadas com vigor a gratuidade da ira feroz para atingir o poder. A narrativa vibrante deste relato histórico traz um olhar sobre os infortúnios do cotidiano político e a manutenção do status quo aristocrático ainda presente. Uma extraordinária realização para reflexão sobre as feridas abertas que continuarão latejando pela dor da truculência que dominava um país com uma democracia fragilizada, diante de antagônicos interesses escusos de disputas extremas para forjadas verdades que agasalham traumas não superados.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Mostra de Cinema São Paulo (Correndo Para o Céu)


Correndo Para o Céu

Vem do Quirguistão o perturbador e sensível drama familiar Correndo Para o Céu em exibição on-line  na 44ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Vencedor do Prêmio da Crítica do Festival Internacional de Busan, realizado anualmente em Haeundae-gu, Coreia do Sul, é um dos festivais de cinema mais significativos da Ásia. A direção é de Mirlan Abdykalykov, em seu segundo longa-metragem, que também assina o enxuto roteiro em parceria com Ernest Abdyjaparov. O jovem diretor de 38 anos teve experiência como ator no protagonismo de três filmes dirigidos pelo pai, Aktan Arym Kubat: The Swing (1993), O Filho Adotivo (1998, exibido na 22ª. Mostra de SP) e O Chimpanzé (2001, presente na 25ª. Mostra de SP). Tem em sua filmografia o curta-metragem Pencil Against Ants (2010), tendo estreado em longa com Nômade Celestial (2015, esteve na 39ª. Mostra).

A trama é uma realização instigante sobre a interação do núcleo familiar desconstruído para a contextualização com a vizinhança e seu cotidiano inerente. Explora as fraquezas sem limites do ser humano, o prazer pela aventura com as digressões amorosas pelos destemperos de uma mãe que foge e vai embora com outro companheiro, além do sofrimento cruel do marido, Erkin (Ruslan Orozakunov), que se lastima diante da separação e se entrega ao vício do alcoolismo sem controle. O trabalho de tratorista puxando um arado acoplado no campo para a plantação remete para uma economia em frangalhos. Já o sócio, um suposto amigo que nada mais é do que uma falsa e perigosa pessoa usurpadora das fragilidades com a bebida do viciado dependente. Rompe com o velho patriarca e a idosa genitora, que ainda tenta a reconciliação com eles. São situações colocadas em xeque para um olhar sem preconceito através da crise de valores dos respectivos papéis ora contaminados pelos descaminhos do destino.

O mote do enredo está na figura angelical do solitário garotinho de 12 anos Jekshen (Temirlan Asankadyrov), residente em um povoado encravado no belo cenário de montanhas, com lindas imagens do fotógrafo Talant Akynbekov, tem o apoio da namoradinha da escola e de alguns adultos da vizinhança. Ele é visto e celebrado por muitos daqueles homens e sua professora de educação física como um corredor excepcional. Eles o encorajam a participar da tradicional grande corrida, um certame que pode mudar sua vida para melhor, sendo o prêmio máximo um potro puro sangue estimado em três mil dólares. Uma disputa que lembra momentos tensos do cultuado filme Carruagens de Fogo (1981), de Hugh Hudson, sobre dois corredores: um filho de imigrantes judeus e o outro um protestante de origem escocesa, que defendem a Inglaterra nas Olimpíadas de 1924, que decidem competir para superar desafios pessoais.

O menino vive com o pai alcoólatra, jogado em qualquer lugar da casa dormindo ou na rua, raramente está lúcido, e um galo de estimação, um fiel escudeiro, que simboliza o lado pitoresco daquele lugarejo rural escondido do mundo, através de uma alegoria de coragem e perseverança da brava criança que sofre bullying dos coleguinhas na escola por não ter dinheiro para honrar com a mensalidade destinada para as despesas e manutenção do estabelecimento de ensino. Ouve gracejos de que o pai gasta tudo com bebida, por isto ele é inadimplente, inclusive com a anuência do áspero professor. A esperança de chegar ao estrelato começa numa primeira corrida, em que um menininho de tenra idade da região terá cortado os grilhões atados aos pés, uma simbólica láurea de estímulo e libertação como metáfora da vida e que faz parte do folclore do povoado através de um cerimonial. Os pesadelos à noite, o pai distante do esforço do filho e entregue à bebida, e o retorno da mãe que não o convence a ir embora com ela, irão dar contornos dramáticos bem equilibrados na narrativa verossímil do cineasta, que busca na andorinha solitária sobrevoando elementos de garra e persistência.

Uma obra que aborda de forma clara e inequívoca o vício, a traição, o bullying, a disputa e as contradições de uma aldeia que refletem uma sociedade em ruínas. Um falso universo de paz nas relações humanas civilizadas num contexto amargo pelas circunstâncias precárias, com poucas condições de dignidade para uma população humilde. Correndo Para o Céu tem um final inusitado após o término da grande corrida com a canção de ninar da mãe distante, por ser revelador de uma criança renegada e sofrida, tanto pelo abandono maternal como pelo pai e seus problemas existenciais num filme seco e direto sem grandes rodeios ou exercícios pirotécnicos. É contagiante na essência cinematográfica pelo simbolismo do descaso e a ausência de um vínculo mais afetivo na relação do microcosmo familiar diante dos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele lugarejo com seus costumes intrigantes de fatos que ocorrem e passam a fazer parte do dia a dia dos habitantes. O drama explicitado comove o espectador, perturba pela boa narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas diferenças que levam para um epílogo pouco comum a ser refletido.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Aos Olhos de Ernesto

Vidas Solitárias

A gaúcha Ana Luiza Azevedo estreou com o longa-metragem Antes Que o Mundo Acabe (2009), uma produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, onde a diretora foi fundadora. Obteve os prêmios de Melhor Direção de Ficção, Figurino, Trilha Sonora, Direção de Arte e Fotografia no II Festival de Paulínia, em 2009. Em uma trama aparentemente simples, embora houvesse complexidade, retratou as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram em suas vidas futuras. Havia similitude em seu conteúdo de questionamento da infância com outras belas obras, tais como: Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho e o magnífico As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky. Inspirou-se na disputa de uma garota pelos dois amigos que se apaixonam pela mesma mulher em Jules e Jim- Uma Mulher para Dois (1962), de François Truffaut. Tem em sua filmografia o curta Dona Cristina Perdeu a Memória (2002), tendo dividido a direção com Jorge Furtado no telefilme Doce Mãe (2012) e o badalado curta Barbosa (1988).

Dez anos depois, a cineasta está de volta com o comovente Aos Olhos de Ernesto, em que divide o roteiro com Furtado, sendo produzido novamente pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Foi lançado recentemente nas plataformas da Net Now, Oi Play, Vivo Play e Looke. Recebeu o prêmio da crítica na Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado e foi laureado pelo público no Festival de Punta del Este, no Uruguai. O drama acompanha o fotógrafo viúvo uruguaio radicado em Porto Alegre, de 78 anos, Ernesto (Jorge Bolani- de ótima atuação, o mesmo ator do cultuado filme uruguaio Whisky, de 2004), que está perdendo a visão por decorrência da idade, mas que tenta dissimular, achando que consegue enganar as pessoas mais próximas. Casualmente, aproxima-se da jovem 23 anos, Bia (Gabriela Poester- convincente no papel), uma cuidadora de cães que apanha do namorado usurpador, que lhe abrirá novos horizontes para o mundo, ao ler e escrever cartas do idoso para Lucía, um amor antigo de 65 anos de espera que acabou de enviuvar no seu país de origem. A improvável amizade dos dois terá uma relação fraternal que possibilitará uma impressionante capacidade de superar as dificuldades existentes no ancião. Uma temática contemporânea sempre latente e difícil de abordar em nossa sociedade atual de consumo com descarte dos mais velhos e a recepção dura para os mais jovens.

Ana Luiza coloca os traumas das perdas e dissabores do envelhecimento com muita sutileza e sensibilidade para uma profunda reflexão. O personagem central não é uma pessoa ressentida, pois tem no vizinho amigo, Javier (Jorge d’Elia), um bom suporte para continuar vivendo, diante das leituras do jornal impresso diariamente pela manhã, mesmo sendo incomodado pela fumaça do charuto. O filho Ramiro (Júlio Andrade) é um recém-separado que vai embora para dar continuidade em sua vida, mas presta ajuda financeira ao pai. A diarista está sempre atenta aos desmandos do patrão e, às vezes, se torna inconveniente pelo seu negativismo. Ele quer viver de forma independente porque tem em mente que ainda pode se divertir e comprar roupas para rejuvenescer, fazer novas amizades e deixar fluir sua paixão de outrora, o que nos remete para o romance O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, lançado em 1985, que depois foi levado para o cinema pelo diretor Mike Newell, em 2007, protagonizado Javier Bardem.

O ritmo cadenciado e suave da canção de Caetano Veloso remete para o epílogo das sonatas dos violoncelos de Bach, com imagens das ruas da Capital gaúcha, especialmente a Alberto Torres, onde mora o protagonista num apartamento escuro rodeado de livros e lembranças do passado. Há uma madura direção que demonstra controle sobre a narrativa e sobram méritos por não deixar cair em pieguismos ou exageros sentimentais pela eficiência da condução equilibrada dos diálogos ásperos ou ternos entre a jovem e o seu velho protetor que a trata como uma neta. As diferenças gigantescas de suas faixas etárias marcam as conversas e seus duelos de ideias distintas, entrecortadas pelo divertimento que encontram nas poucas saídas pelas ruas, como na manifestação em que Ernesto recita “Por que Cantamos”, do escritor conterrâneo Mario Benedetti, texto oriundo da época da ditadura militar. Existem alguns choques de gerações que se estabelecem quando o personagem central se nega a assistir o clássico Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, pelo celular; enquanto que a jovem acha estranho e impensável colocar na carta de Ernesto para a sua amada o termo “estimada”, bem como escrever na máquina manual de escrever em detrimento da caligrafia.

Eis um mergulho nos confrontos e adversidades da chamada ironicamente "melhor idade" e o espectro da solidão melancólica. A cineasta retrata com dignidade e até com algum otimismo a temática do envelhecimento, assim como já o fizera Daniel Burman em Dois Irmãos (2009), pelo afago final das águas do rio que servem de cenário para o domicílio daquelas idosas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar. Ou pela beleza estética de Laís Bodanzky no notável drama Chega de Saudade (2008), tendo como cenário um clube de São Paulo com suas diversas histórias numa noite de baile, aflorando as ilusões e desilusões, perdas e ganhos, amor e traição, para sintetizar tudo num imenso isolamento social. Ou pelo olhar de Marcos Bernstein no ótimo O Outro Lado da Rua (2004), refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos rumos. Ou ainda com GranTorino (2008), de Clint Eastwood, sobre as perdas hereditárias e os valores dos descendentes colocados em xeque de forma exuberante pelo herói de guerra decadente. Aos Olhos de Ernesto é um jogo de xadrez, metáfora bem utilizada nas partidas realizadas entre os personagens, e a importância pelas nuances das relações de amizade, fio condutor para o desfecho do processo de libertação das emoções e a vazão para o grande amor nunca esquecido pelo longínquo tempo, a ser reconciliado, neste magnífico drama existencial lírico e humano alicerçado com simplicidade sobre o angustiante tema universal da terceira idade.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mignonnes (Lindinhas)

 

Prematura Sexualização

A diretora e roteirista Maïmouna Doucouré, de 35 anos, tem muitos méritos no seu polêmico filme de estreia Mignonnes (Cuties no título em inglês; batizado no Brasil como Lindinhas). Pela temática abordada, afirmou ter recebido ameaças de morte e insere-se como uma promissora cineasta. O lançamento ocorreu em 10 de setembro e está tendo uma controvertida acolhida na plataforma de streaming da Netflix, que se envolveu gratuitamente numa celeuma motivada por um pôster supostamente sexualizado de meninas de 11 anos. Causou ira em uma parcela de assinantes, que entenderam ser um incentivo à pedofilia. O cartaz que anunciou a estreia mundial é bem diferente do usado na França, no qual as menininhas alegremente carregam sacolas de compras. Na divulgação da Netflix, o que elas vendem sugeriu manifestações controversas e induziram a equivocadas interpretações ao posarem com roupas supostamente sensuais, grudadas ao corpo, motivando uma campanha no Twitter para boicotar e até retirar o filme da plataforma. No dia 20 de agosto, houve a substituição do cartaz com pedido de desculpas.

O drama contemporâneo atualíssimo, baseado em fatos reais, mostra as publicações que se tornaram eficientes na internet voltadas para a maldade cibernética. A realizadora franco-senegalesa venceu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Sundance (Estados Unidos) e a obra está focada numa crítica à hipersexualização de meninas, diante da fase de transição que passa pela pré-adolescência e adolescência. Na realidade, é uma abordagem aprofundada em defesa da criança decorrente de fatos relevantes que aceleram a passagem pelas descobertas nas redes sociais e suas armadilhas encontradas facilmente nos celulares e os perigos que deles rondam. A trama gira em torno de Amy (Fathia Youssuf- impecável em seu papel), que mora com a mãe (Maïmouna Gueye), uma tia e dois irmãos menores num conjunto habitacional em um subúrbio da França. A protagonista é uma francesa de ascendência senegalesa, de 11 anos, que está emocionalmente abalada e chora embaixo de uma cama ao ver a mãe conflitada com o pai retornando do Senegal com outra mulher para se casar e morar com elas. Seus hormônios estão em ebulição e a sexualidade aflora precocemente com a primeira menstruação. Sofre rejeição de colegas no novo colégio por não saber dançar. A adaptação é difícil e as mudanças na vida familiar causam impactos relevantes.

A diretora coloca com habilidade elementos de discórdia no microcosmo da família, como na cena em que a mãe reserva um quarto da casa para o marido que está por chegar com a futura esposa. A menina ouve como consolo que “a água lava os pecados”, porque não admite o pai bígamo. A mãe, mesmo contrariada, aceita a situação atípica por motivos da religião que permitem a poligamia e o dever de obediência ao esposo. A tia acusa a protagonista de prostituta e de usar um vestuário fora dos patrões comportamentais. As situações conflitantes existentes são fatores que registram a hipocrisia suprema de uma sociedade tolerante por dogmas religiosos. Amy vê na dança a liberdade de expressão pela sua coreografia ousada e tem na vizinha Angelica (Médina El Aidi-Azouni) uma aliada que a estimula a participar do concurso pelo grupo de amigas que dá o título ao filme. É uma válvula de escape para afogar as mágoas e enfrentar o reinante conservadorismo advindo da religião islâmica seguida pelos imigrantes senegaleses. É um filme que não explora o corpo infantil, mas contextualiza a exploração num sentido amplo da mulher precocemente submissa. A cena da filha e da mãe vestidas para o segundo casamento do pai e marido é outro indicativo de resignação ao mundo masculino.

Mignonnes (Lindinhas) não é somente um filme ostensivamente antidogmático, mas uma realização que mergulha em um novo contexto para reescrever sem preconceitos e tabus pregados pelo falso moralismo. Indica um norte para um olhar atento da prematura sexualização como sintoma dos perigos disseminados que brotam das redes sociais. Soa como um alerta geral para pais interessados em resolver problemas e não fazer campanhas para proibir um filme que denuncia uma dolorosa realidade, como na instigante cena em que a personagem central aproveita por estar coberta com o véu durante um encontro religioso coletivo para ver clipes eróticos. Retrata a exposição potencializada de crianças no ambiente digital sem o acompanhamento dos pais, no qual há um território que estimula o exibicionismo excessivamente competitivo. A pré-adolescente se insurge pela cultura de liberdade irradiada da dança contra a permissividade religiosa concedida e principalmente pela opressão às mulheres. A pecha da suposta culpa não é das garotas dançarinas que nada mais fazem do que imitar as coreografias escancaradas ao público de vídeos musicais protagonizados por adultos.

Doucouré faz com veemência um exemplar libelo através de uma realização sem concessões da sexualização precipitada e uma “adultização” antecipada com caras e bocas erotizadas, decorrentes do palco em que se realiza o concurso promovido somente por pessoas adultas. O objetivo é de perturbar o espectador com uma proposta consistente para um alerta com horizontes amplos para afastar aquele olhar mirrado do conservadorismo predominante de nossos dias. A pior cegueira é aquela do tapar os olhos através de uma visão míope da proibição imposta. O redentor epílogo surpreende ao remeter a menina vitimada pelo contexto para um momento lúdico da criança alegre e inocente pulando cordas na rua como uma metáfora de libertação do estigma da falsa adulta perdida no palco. Um admirável drama intimista de denúncia com muito equilíbrio e humanismo carreados para um questionamento verossímil na turbulência das contradições que o universo feminino sofre e carrega, estando muitas vezes num isolamento de cobranças diárias sem limites e impostos pelo fechado espaço machista com reflexos no complexo núcleo familiar.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Narciso em Férias

Memórias da Cadeia

A histórica noite da grande final da 3ª. edição do Festival da Record, realizada em 21 de outubro de 1967, foi retratada com muita lucidez no documentário Uma Noite em 67 (2010). Dirigido com simplicidade e sem perfumarias por Renato Terra e Ricardo Calil, acabou sendo uma boa surpresa o trabalho destes diretores estreantes. O filme reabilitou e renovou aos espectadores os memoráveis festivais de música popular brasileira na antiga Rede Record de Televisão, palco que serviu para lançamento de artistas iniciantes e promissores como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que mais tarde formariam o Movimento Tropicália ou Tropicalismo, com Gal Costa e Maria Bethânia, onde se realçava as roupas coloridas e diferentes que ditavam a moda na época, tendo nos comportadinhos Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo e seus fiéis seguidores trajando smokings, com aparências de bons moços dentro de uma formalidade para as apresentações noturnas impostas.

A dupla de realizadores está de volta com o badalado documentário Narciso em Férias, com exclusividade na plataforma de streaming da Globoplay, para contar a saga da prisão do cantor e compositor Caetano Veloso em 27 de dezembro de 1968, pelo regime militar. Um relato triste e sem artifícios melodramáticos, embora com bom humor, de suas memórias desse período sombrio da história brasileira no qual foi levado de seu modesto apartamento, em São Paulo, em que residia com esposa Dedé, para uma cadeia no Rio de Janeiro, permanecendo por 54 dias encarcerado. O músico foi preso com o amigo Gilberto Gil pela madrugada, logo após cantar algumas canções como Súplica e Assum Preto. Com precisão lembra que faziam 14 dias da publicação do famigerado Ato Institucional nº. 5 (AI-5), que concedia amplos poderes ao Presidente decretar Estado de Sítio, suspender os direitos políticos dos cidadãos por até dez anos, cassar mandatos políticos, suspender garantias constitucionais, demitir, dispensar, reformar ou transferir os servidores públicos.

Caetano conta na primeira pessoa sua viagem ao passado em um cenário simples com uma parede fria de cimento ao fundo acinzentada, que remete para um calabouço, sentado numa cadeira o tempo todo, sendo questionado pelo entrevistador. Relembra que foi colocado inicialmente numa sala comprida na presença de um general do Exército que jantava tranquilamente. Foi transferido num camburão para outro local, sendo jogado numa solitária com jornais velhos que acabou lendo por falta de opções, uma latrina e janelões altos sem ver o sol; Gil ficou em outra próxima. As refeições eram ruins e servidas por uma portinhola, sem contato com os carcereiros. Os documentaristas deixam correr livres os relatos de Caetano que enfatiza a falta de ânimo sequer para se masturbar ou chorar, pois se sentia ressequido de lágrimas, bem como não saber por que estava detido e sequer era interrogado. Após algum tempo, obteve na clandestinidade dois livros: O Bebê de Rosemary, de Ira Levin e O Estrangeiro, de Albert Camus.

Das suas memórias, manifesta sem mágoas a nova transferência, que ocasionou o encontro com Perfeito Fortuna, com quem fez amizade, Paulo Francis, Ferreira Gullar e um homônimo de Antônio Calado, preso por ter o mesmo nome do famoso escritor. Relata que ficou alegre por ter contato com pessoas, mas triste por acordar à noite com gritos de pessoas sendo torturadas, que pareciam ser presos comuns e de baixa renda, como no longa Tropa de Elite. Teve o cabelo cortado, mas que metaforicamente seria uma espécie de liberdade e a sobrevivência da qual esperava, porque não tinha morrido. Na descrição de Caetano, sempre transparecendo altivez, não esqueceu as edições da revista Manchete levadas por Dedé. Revelou seu medo por baratas por serem insetos de mau agouro e o soldadinho que chorou do nada ao olhar para ele. O momento de maior emoção foi lembrar da canção Sideral e cantar Hey Jude, dos Beatles, uma música que lhe provoca uma sensação de libertação. Falou da irmã Irene e sua risada que inspirou um de seus clássicos musicais. O interrogatório ocorreria bem depois, causando medo ao ter que indicar dados de seus familiares. Finalmente acabou sendo formalmente acusado, e só aí descobriu que seu crime teria sido uma denúncia falsa de ter parodiado o Hino Nacional em ritmo de Tropicália na Boate Sucata.

Outra interessante passagem é a do oficial treinado nos EUA pela CIA, que tinha grande conhecimento sobre o Tropicalismo, na qual a juventude bradava pelo antiamericanismo e o nacionalismo como sendo o grito de guerra em forma de protesto contra a ditadura. Este movimento musical foi bem abordado pela análise importante no documentário homônimo Tropicália (2012), com direção de Marcelo Machado, que resgata uma fase cultural quase esquecida na história brasileira, diante do inconformismo de uma geração amordaçada por todos os lados. No referido filme, Caetano e Gil são exilados em Londres, pois suas canções incomodavam, apesar de serem muito sutis ao usarem metáforas, como se depreende de letras aparentemente ingênuas, tais como Baby, cantada por Gal Costa, ao pronunciar “da margarina”, “da gasolina”, dentro de um contexto de insatisfação. Caetano não era visto com muita simpatia ao interpretar Alegria, Alegria, mencionando a Coca-Cola, Brigite Bardot e bombas, embora sem maiores conotações políticas, ou na linda É Proibido Proibir.

Narciso em Férias tem uma cena marcante do inverossímil interrogatório de Caetano que literalmente lê algumas partes do documento. Com boa ironia, acha graça de alguns trechos em que o acusam de ler e se inspirar no sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano Herbert Marcuse, um crítico do capitalismo, da tecnologia moderna, do materialismo histórico, da cultura do entretenimento, por representarem novas formas de controles sociais. Apesar de admitir ter lido o filósofo, se posiciona como um defensor do pluralismo de partidos e da liberdade de expressão, refutando a pecha de admirador do sistema socialista (comunismo). Aponta com clarividência as patacoadas do sistema repressivo quando é solto, preso e solto novamente, numa confusão entre a Polícia Federal e a Aeronáutica. O desespero e a crise por perder a razão e a lucidez do artista documentado ao chegar a casa de seus familiares, em Salvador, são realçadas no epílogo. Eis um documentário sobre um relato histórico da ditadura militar instalada a partir de 1964. Um bom filme sem ressentimentos que se não é definitivo, contribui para retratar os porões dos anos de chumbo no Brasil, com suas atrocidades e os resquícios deixados pelos abalos psicológicos e físicos nos compatriotas com ideias opostas, mas com o viés da dignidade humana destruída.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Crimes de Família

 

Distopias Sociais

 Outro longa-metragem argentino que está tendo muito boa acolhida junto ao público e aos críticos é Crimes de Família, dirigido por Sebastián Schindel, que assinou o roteiro em parceria com Pablo Del Teso. Um thriller familiar realizado para a telona, mas que acabou estreando mundialmente em agosto na Netflix por decorrência da pandemia. O cenário é o luxuoso bairro da Recoleta, em Buenos Aires, para retratar de maneira direta e sem concessões uma elite arrogante, mas que se considera soberana e intocável diante das classes menos favorecidas. Uma magnífica abordagem sobre o poderio financeiro e econômico de uma casta bem-sucedida na qual o dinheiro compra praticamente tudo, com a prevalência do machismo e a pouca importância dada aos anseios da mulher. São os aspectos sociais inerentes de uma Argentina rica, embora já dando sinais de decadência, contrastando com a outra de caráter eminentemente pobre advinda do interior, especificamente a província de Misiones na fronteira com o Brasil, uma das mais esquecidas e com déficit de emprego formal.

 A história é composta por personagens bem estruturados e identificados claramente nas suas fragilidades, falta de afeto, submissão, desajustes, mesquinharias e a prepotência remanescente da época de um colonialismo de outrora. A protagonista é Alicia (Cecilia Roth- em mais uma ótima atuação), uma mãe da alta sociedade que está desesperada e faz de tudo para que seu filho Daniel (Benjamín Amadeo), um comerciante falido, drogado, acusado de tentar matar e estuprar a ex-mulher Marcela (Sofía Gala Castiglione), com quem tem um filho menor, não seja preso. O pai do rapaz é Ignácio (Miguel Ángel Solá), que contesta a tentativa da esposa de livrar a cara do jovem desregrado e pagar milhões para um advogado. Gladys (Yanina Ávila) é a empregada acusada de roubar os patrões, cometer infanticídio e tentar esconder o corpo do recém-nascido no banheiro do confortável apartamento. A doméstica é analfabeta e tem um retardo mental, não conheceu sua mãe, foi criada pelo pai de quem sofreu abuso sexual, sendo também explorada pela madrasta. Sua defesa no tribunal é feita pela Defensoria Pública. Durante o processo, os patrões adotam o filho da serviçal e a patroa acaba descobrindo um segredo que mudaria todo o rumo da trama com reflexos arrasadores na sua vida.

 Schindel faz uma bela reflexão sobre as cicatrizes abertas dos vínculos entre empregada e empregadores interrompida abruptamente, ao retratar os contrastes sociais com contundência, especialmente a hipocrisia, o desconforto e o preconceito latente que pairam e se materializam numa relação entre ricos e pobres, busca nas entrelinhas marcar a fase de ouro das elites nos seus aspectos exteriores para a defesa de familiares protegidos, bem focados nas cenas dos julgamentos sequenciais dos dois acusados. Dá elementos com bons subsídios para evidenciar o panorama dos poderosos ostentado pelo núcleo familiar de um cotidiano frio advindo de um profundo abismo nas situações do dia a dia e da dedicação cega da mãe para o filho mimado. A distopia social em xeque se faz presente também nos julgamentos, além da falsidade, da mentira e da desconfiança para com a doméstica, quando Alicia nega ter sugerido o aborto porque não iria criar outro filho dela. Nenhum apoio será acenado ou sequer uma oferta financeira para custear a defesa de Gladys.

 O infanticídio ocorrido na residência dos patrões não tem perdão e prevalece a hipocrisia tirânica pelo medo do escândalo e da repercussão negativa. Manter a empregada encarcerada e bem longe soa como um irônico alívio para manter as aparências, mesmo que esta lhe defenda e mostre grandeza, tendo em vista sua preocupação com o futuro de seu filho menor. O filme tem um desfecho surpreendente na revelação do pai da criança morta por asfixia, bem como a autoria dos furtos de dinheiro no apartamento. É uma sucessão de mentiras e desvios de conduta que irão dar contundência no enredo trágico com viés de um jogo de proteção maternal. O epílogo é edificante pelo restabelecimento da verdade e a redenção das mães em seus papéis de leoas protetoras, principalmente da protagonista capaz de ameaçar, falsear a verdade e subornar um promotor para retirar do processo uma prova que incriminaria Daniel. O drama narrado com sutilezas não afasta o impacto do distanciamento existente dos personagens envolvidos pelas diferenças, mas reflete a preocupação desta obra autoral com a estratificação social exacerbada, através da captação da câmera que percorre o suntuoso imóvel e mergulha no inferno prisional.

 Há sinais evidentes e próximos pela similitude da temática com Casa Grande (2014), dirigido pelo estreante carioca Fellipe Barbosa, um drama brasileiro retratado sem demagogia pelos paradoxos da visão social de uma sociedade representada por uma classe média alta que tenta manter valores superados, bem como também nos remete para o nacional Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, sobre os contrastes existentes nas pirâmides salariais de um contexto severo e implacável, mas incisivo na hipocrisia das relações empregatícias quando há diferenças abissais no aparo das arestas para melhorar a situação deprimente para sobreviver, pelo olhar do menos favorecido, sem cair na obviedade. Crimes de Família mescla com verossimilhança a crítica social com os filmes de tribunais para abordar as falsas aparências com a falta da verdade nas anomalias sociais em que o dinheiro compra quase tudo, menos a dignidade e o amor materno de uma submissa. Cada posição dos personagens torna-se autônoma no desenrolar do enredo, ao direcionar a abordagem das relações afetivas da empregada e seu filho com os integrantes da família patronal, mas sem perder o humanismo da dor repassada. São elementos caracterizadores e envolventes que darão com rara qualidade o retrato intimista e digno da triste realidade presente nos gestos e atitudes pelas imagens e diálogos.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Rede de Ódio

Maldade Digital

 O jovem diretor autoral de 38 anos Jan Komasa se insere com méritos incontestáveis como um promissor cineasta na ótima escola polonesa da cinematografia. Busca nos pequenos detalhes o norte para atingir a essência da sétima arte e fazer parte do rol dos autênticos artesãos conterrâneos, entre eles, os já consagrados Roman Polanski, Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski, Jersy Kawalerowicz e Pawel Pawlikowski. Foi o realizador do drama Corpus Christi (2019), que abordava um rapaz de 20 anos que experimenta uma transformação espiritual enquanto estava preso num centro de detenção para menores. Queria se tornar padre, mas isso o impossibilitava por causa de sua ficha criminal. Quando é enviado para trabalhar na oficina de um carpinteiro em uma cidade pequena, se veste de pároco acidentalmente para assumir uma igreja local. A chegada do pregador carismático é uma oportunidade para a comunidade local iniciar o processo de cura após uma tragédia que aconteceu na região. Estreou no Festival Internacional de Veneza e foi selecionado para representar a Polônia no Oscar de 2020. A obra venceu dez prêmios no Festival de Cinema Gdynia, incluindo melhor diretor e melhor roteiro, além de uma menção especial no Festival de Reykjavík.

 O realizador polonês está de volta com Rede de Ódio, escrito por Mateusz Pacewicz, o mesmo roteirista da mencionada obra anterior. O lançamento estava marcado para o início deste ano, mas diante dos transtornos da pandemia, está tendo uma retumbante acolhida na plataforma de streaming da Netflix. Eis um magnífico drama contemporâneo sobre as deturpadas faces que se tornaram eficientes na internet pelas suas redes sociais apropriadamente voltadas para a maldade cibernética. Desencandeiam-se campanhas de desinformação por opositores com discursos inflamados de um arcaico nacionalismo, xenofobia e homofobia. Um filme atualíssimo que retrata fatos que poderiam ter acontecido em qualquer país no mundo, inclusive aqui no Brasil. Uma abordagem explícita sobre a manipulação articulada por um hacker sociopata de comportamento narcisista, com a finalidade focada e mirada pela vingança e com o objetivo de interesses próprios nos grandes debates públicos lançados no Facebook e Twitter, entre algumas das mais visitadas e difundidas redes virtuais.

 A trama gira em torno de Tomasz Giemza (Maciej Musialowski), um estudante de Direito viciado em cocaína, que faz treinamento de tiros e defende o armamentismo, frio e calculista, que passa a fazer sucesso incitando o ódio e o rancor em campanhas com perfis falsos nas redes sociais para difundir fake news, atacando com crueldade desde influenciadores virtuais até políticos renomados. O alvo principal é o candidato progressista e favorito na disputa eleitoral pela prefeitura de Varsóvia, Pawel (Maciej Sthur), que prega a união do país, mas sofre ataques irascíveis na internet por ser gay e defender os direitos de LGBT. É injustamente acusado de disseminar o islamismo radical na Polônia que está ameaçando a Europa, segundo os fanáticos defensores radicais opositores que pregam uma limpeza étnica e política, a defesa da família e seus princípios basilares da tradição. Por um ato pusilânime, o candidato é atraído para uma emboscada em uma balada de homossexuais. É uma fórmula rasteira e brutal de manipular a opinião pública para atacar a reputação do alvo, tal qual ocorreu premonitoriamente na realidade do candidato a prefeito de Gdansk esfaqueado enquanto estava num palco num evento filantrópico.

 Rede de Ódio se debruça com harmonia e sutiliza sobre o protagonista que trabalha para uma agência de publicidade e marketing nas campanhas eleitorais, através de trolls travestidos de criaturas imaginárias do folclore escandinavo e robôs que espalham notícias mentirosas para liquidar com a reputação de políticos e celebridades, além de marcarem protestos de rua por movimentos fictícios. Foi contratado pela sórdida Beata (Agata Kulesza), que irá provar do próprio veneno mortal prescrito por ela mesma. É criado um verdadeiro caos pelo jovem integrante das milícias digitais em ascensão, divulgando e colando na imagem do candidato o fundamentalismo pelo terror das trevas crescente e imposto na narrativa. Usa métodos de grampos na internet para interceptar conversas sigilosas e segredos. Oscila entre o aprendiz de feiticeiro e o mestre da maldade como retrata o drama. “O inimigo deve ser manipulado e levado ao desespero”, diz uma mensagem favorável às notícias falsas. O passado do personagem central é marcado por plágio na faculdade e uma conduta perigosa pela sua mente doentia e perturbadora, o que irá causar medo e pânico na família Krasucki. O pai (Jacek Koman) e a mãe (Danuta Stenka) da garota Gabi (Vanessa Aleksander), por quem ele é obcecado, e a irmã Nathalia (Wiktoria Filus), ajudam o protagonista coberto de ressentimentos, ignorando que esteja ali um expert de truques digitais que faz parte de uma engrenagem fraudulenta e adepto da traição pela sua natureza. Faz o jogo duplo perigoso sem o menor escrúpulo ético profissional.

 Komasa coloca com habilidade a família Krasucki como representante de uma elite preconceituosa que emite comentários maldosos sobre Tomasz, como visto recentemente no cultuado drama Parasita (2019), de Bong Joon-ho, na instigante cena de ojeriza do patrão falando do cheiro dos empregados relacionados aos pobres usuários do metrô e que seria a vingança da dor humilhante. A frieza e a falsa serenidade do protagonista são características colocadas pelo olhar claro do que poderá acontecer, com movimentos de uma estabilidade equivocada de quem o conhece, mas que irá dar sinais pra o surpreendente desfecho, que também lembrará Parasita, diante do fio condutor narrativo para chegar até a violência não gratuita, mas premeditada, nada circunstancial, pelo desdobramento do enredo. O banho de sangue, ao melhor estilo de Tarantino, irá sacudir e apontar quem são os incivilizados e desmedidos de nossa sociedade, sob a batuta da inspirada trilha sonora ao som apoteótico da Nona Sinfonia de Beethoven, numa cena inesquecível e impactante do ataque orquestrado por radicais terroristas opositores extremados. O epílogo reservará uma catarse que explodirá como vingança dos ressentidos, mas não isentará a face cruel de seus organizadores frios e fraudadores da verdade neste extraordinário drama polonês sociopolítico. Uma realização singular por ser convincente, sem concessões, e com o objetivo de perturbar e tirar da zona de conforto o espectador com uma proposta mordaz e contundente. Certamente estará entre os 10 melhores filmes do ano na lista da maioria dos críticos.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Ninguém Sabe que Estou Aqui



Doloroso Passado

Vem do Chile a contundente denúncia da prática de bullying no comovente drama intimista Ninguém Sabe que Estou Aqui, filme que deveria estrear nas salas de cinema no primeiro semestre deste ano, mas que está fazendo carreira na plataforma de streaming da Netflix. Coproduzido pelo badalado cineasta Pablo Larraín, dos festejados Tony Manero (2008), No (2012), O Clube (2015), Jackie (2016) e Ema (2019). A direção é de Gaspar Antillo, vencedor do prêmio de diretor estreante no Festival de Tribeca, nos EUA. O realizador assinou o enxuto roteiro em parceria com Josefina Fernández e Enrique Videla. Outro acerto fundamental é a fascinante fotografia de Sergio Armstrong ao captar de forma magnífica os detalhes eloquentes do vazio existencial do cotidiano que devora e marca a vida do protagonista e seu silêncio inquietante decorrente de um passado misterioso nas lindas cenas das locações da zona rural no Sul chileno. São imagens majestosas como fator fundamental para passar ao espectador o clímax tenso que se faz presente.

A realização não esconde e já no prólogo mostra a prática contumaz do bullying que consiste em um conjunto de violências repetitivas na infância de Memo (Jorge Garcia- de ótima atuação, ator conhecido por encarnar um falastrão no seriado Lost (2004 a 2010). O personagem central sofreu o preconceito intolerante da gordofobia pelas suas dimensões avantajadas, com sequelas psicológicas da humilhação e intimidação que o traumatizaram definitivamente, trazendo danos profundos pelo gesto impensado, acaba por isolar-se totalmente da sociedade. A importante trilha sonora, especialmente a canção Nobody Know I'm Here (que dá título ao filme), composta por Carlos Cabezas, que o protagonista gravou quando criança, mas numa maracutaia do próprio pai, o crédito foi dado para um garoto bonito e esbelto que iria escalar para chegar à fama de pop star. Foi o pivô de um acidente trágico que deixou sequelas para sempre e ainda causa aflição para quem precisa se redimir de um passado desastroso e com inimagináveis feridas abertas, embora sendo vítima, Memo passa para a posição de algoz.

Através de flashbacks, na mescla de realismo fantástico com sonhos perturbadores, o jovem frustrado vai morar com o tio numa típica fazenda para cuidar do rebanho de ovelhas no interior do Chile. Lá, ele pinta as unhas, coloca a roupa do artista que não aconteceu e vai cantar na floresta, para soltar sua poderosa voz para um universo de isolamento do mundo. Vive de maneira solitária como um legítimo ermitão, até que surge uma jovem mulher para lhe oferece a chance de encontrar a paz que tanto procura. A relação improvável entre aqueles dois seres dá sustentação e equilíbrio ao drama, encaminhndo para uma virada no roteiro. O inusitado romance entre a bela e a fera, numa analogia com o clássico conto de fadas francês, originalmente escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot, dará a dimensão emblemática da sensibilidade e da afabilidade do protagonista para a construção de uma poesia tradicional construída e alicerçada pela redenção do amor. A dolorosa reaproximação com a suposta vítima e o perdão sugerido nas entrelinhas pela culpa imputada no trauma recorrente ainda existente soa como uma espécie de libertação.

Um filme que, na primeira parte, proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes daqueles habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os fatos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida. Diante disto, Antillo faz com habilidade o gancho dos aspectos rurais dos rebanhos nos campos contrastando com o mundo civilizado urbano e a hipocrisia reinante urbana, como no deplorável programa de televisão, que visa tão somente a audiência pelos fins econômicos capitalistas sustentados por uma massa de telespectadores sedentos de ilusões e falsidades, diante da ausência de ética dos apresentadores abastecidos pelos simulacros. É um verdadeiro caos constrangedor para todos. O roteiro se encaminha para lançar um olhar de compaixão e reaproximação entre os dois inimigos mortais. Porém, a reviravolta na envolvente história terá a resistência justamente do ora réu vitimado pela discórdia acirrada após o novo episódio, que tentará proteger para sua sobrevivência em consonância com a veneração que os fãs nutrem pelo astro desconhecido. No desenrolar do enredo, há o encontro frente a frente nada amistoso entre os antagonistas. Os dois guardam rancores de um conflito no qual rememoram um segredo pretérito que só eles conhecem. Sobram mágoas e ressentimentos que beiram à discórdia sem perspectiva de reatarem as conturbadas relações. Um trauma que atormenta e corrói pensamentos com um devastador sentimento de injustiça dos fantasmas de uma situação da qual nunca se livrou com consequências nefastas pelo abalo emocional destruidor da razão.

Eis uma realização sutil num panorama de melancolia permanente do protagonista. Num ritmo lento, o cineasta faz um belo drama silencioso, terno, humano, com dignidade de uma narrativa crescente na evolução da trama para o desfecho redentor pelo retrato de uma perda com o fantasma da infância, decorrente de preconceito ao físico e a violência da gordofobia incrustada com significados maiores. O amor paternal ausente poderá dar lugar ao romance que levará para uma nova vida redescoberta com imenso atraso. A singeleza de um gesto de afago e o calor humano sincero que irá se impor como a explosão edificante de um novo homem que irá surgir. Não é somente um relato social, mas a relação afetiva inevitável que se perdeu no tempo, ou a autoestima esmagada lentamente pelos desmandos e irracionalidades da intransigência. Mas sobra combustível para uma energia humana diante da perda iminente de suas referências, como o vínculo familiar, até então de abandono, demonstrará entusiasmo e sentimento de carinho entre os novos seres aproximados pelo amor no contexto da dor imensa do tempo pelas derrotas inevitáveis contrastantes naquela atmosfera adversa de angústia e sofrimento. Ninguém Sabe que Estou Aqui tem elementos suficientes para uma bonita história contada com simplicidade, ternura e situações típicas do cotidiano de uma bucólica região pastoril de ovelhas. Ali encontraremos a ruptura e a reaproximação forçada para uma reintegração de uma vítima do bullying no próprio seio familiar fragilizado pelas circunstâncias neste admirável drama chileno.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Ema



Novas Relações Familiares

Diante dos conturbados tempos de isolamento social, com o fechamento dos cinemas devido à pandemia do brutal coronavírus que distancia e afasta cada vez mais os seres humanos, surge como opção a busca nas plataformas de streaming. Realizada em colaboração com a Imovision, em exibição única e exclusiva na plataforma MUBI, ficou disponível por 24 horas, no feriado deste 1º. de maio, o filme Ema, do cultuado diretor chileno Pablo Larraín, com o estimulante roteiro de Guillermo Calderón e Alejandro Moreno. Além do Brasil, foi disponibilizado simultaneamente em mais de 50 países, entre os quais estão o Reino Unido, Canadá, Chile, Argentina, Coreia do Sul, Índia, Suécia e Singapura. Premiado no Festival de Veneza como melhor filme, teve ainda mais quatro indicações. Já no Festival de Liubliana, na Eslovênia, foi laureado com a melhor direção. A trilha sonora original assinada pelo produtor e músico chileno Nicolas Jaar, com o estilo musical reggaeton originário da Colômbia, foi inspirado pela disseminação das danças nas ruas de Valparaíso, e obteve premiação no Festival de Miami de 2019.

Larraín é um cineasta de 43 anos, inquieto e sempre inventivo nas suas propostas, procura lançar questionamentos profundos sobre suas realizações, mostra-se preocupado com as distorções das mazelas sociais e políticas de seu país. Na sua filmografia estão: Fuga (2006); o aclamado Tony Manero (2008; Post Mortem (2010); No (2012) foi festejado pela crítica e aplaudido pelo púbico, talvez o mais popular deles por retratar a pressão internacional sobre o ditador Augusto Pinochet, que convoca um plebiscito para avaliar seu governo sanguinário e a manutenção do regime em 1988. É dele também o badalado O Clube (2015); a comentada cinebiografia Jackie (2016), sobre a ex-primeira-dama dos EUA Jacqueline Kennedy, rendeu a indicação de Natalie Portman ao Globo de Ouro. Neruda foi sua penúltima obra, em que abordou um período pouco conhecido do poeta Pablo Neruda (1904-1973) e sua incursão como senador cassado na política chilena, bem como seu período no exílio, ao se refugiar no sul do país, foi perseguido pelo governo totalitário chileno de 1948, sob o comando do presidente Gabriel González Videla, por ser um comunista assumido e com ligações ao governo da extinta União Soviética.

O último trabalho de Larraín é emocionalmente desafiador ao contar a história do coreógrafo Gastón (Gael García Bernal- com um atuação apática) e sua mulher bailarina, que empresta o nome ao título do longa (Mariana Di Girolamo- em desempenho dignificante). A relação toma proporções iminentes de ruptura dos vínculos matrimoniais depois que o casal adota um menino problemático que provoca uma pequena tragédia com seu instinto incendiário que irá literalmente deformar o rosto da irmã da protagonista. O drama familiar tem um roteiro eclético com vários contornos e mudanças de itinerário durante sua trajetória. Quando tudo indica que seguirá um rumo, muda rapidamente e envereda para outra saída. É uma realização que traz em seu bojo a imprevisibilidade, afastando-se sempre da mesmice, por tratar de situações dos microcosmos de famílias com suas relações carregadas de problemas obscuros em tom sombrio, com algumas lembranças do passado que persistem, como o da personagem central.

Ema pode transparecer uma obra quase que intoxicante sobre sexo e suas nuances, em que o poder e o caos estão presentes manifestamente. Mas na realidade representa uma juventude do século XXI diante dos novos horizontes que afloram e o corte das amarras da transição que passa o Chile contemporâneo. Tem o viés da improbabilidade como no desfecho completamente inusitado pela reviravolta em sua amplitude e o resultado que o destino reserva e contemplará os casais envolvidos no imbróglio. Mais pela força e a busca incessante de uma solução diferente na atitude rebelde da personagem com seu visual andrógino e sua obsessão pela genetriz de gerar, tanto quanto atípica em que ela busca no homem treinado para abafar as labaredas do incêndio, bem como pela adoção e o carinho externado ao adotado. São metáforas da vida lançadas na primeira cena e depois no desenrolar da trama, em que o bombeiro surge como o herói dos conflitos naturais, mas o destino lhe reserva o protagonismo casual para ser uma figura proeminente com sua mulher no epílogo.

O casamento desmoronando depois que o casal de artistas se vê obrigado a devolver a criança que eles adotaram para o orfanato é o mote para Larraín lançar um novo olhar para esta juventude sedenta de liberdade no Chile. Para isso, usa o artifício da coreógrafa bissexual, uma mulher multifacetada com uma personalidade alicerçada sob o prisma do enigmatismo, a sensualidade advinda da dança e a relação com o fogo estreitada pelo aparelho lança-chamas que irá dar um norte para iluminar o futuro. Por ser intensa, louca e lúcida com seus paradoxos, irá construir calculadamente com sua audácia sem limites as novas polifamílias através da ousada proposta de uma sociedade que deriva diante das circunstâncias apresentadas para um novo universo dos multicasais. O mérito do realizador está em não colocar Ema como uma personagem politicamente correta, mas desnudar intrínseco e extrinsecamente a natureza de sua personalidade dúbia, por vezes; meticulosa, em outras aparições, até atingir seu desiderato persuasivo e obstinado pela continuidade com a força interior da maternidade. Ainda que haja excessos e repetições em muitas cenas, o que torna o drama arrastado, quase que entediante, embora não invalide a proposta psicanalítica complexa. A criatividade flui em um clima hipnótico pelas imagens sensoriais e da pulsação da música como ingredientes preponderantes deste bom filme, embora menor que suas realizações anteriores, há méritos a serem ressaltados e prestigiados pelo espectador.

terça-feira, 7 de abril de 2020

O Poço



As Desigualdades

Em inglórios tempos de isolamento social, com o fechamento de cinemas, teatros e museus devido à pandemia do devastador e temido coronavírus que distancia os seres humanos, é inevitável buscar nas plataformas de streaming, a alternativa para se assistir filmes e sair do jejum cinematográfico imposto corretamente por decretos municipais, estaduais e federais. A Netflix lançou mundialmente o fenômeno de público O Poço, uma produção espanhola dirigida pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia, em que o protagonista Goreng (Ivan Massagué) é o herói de um processo de desumanização. O drama distópico sobre a desigualdade social que tenta achar soluções e apontar as condições degradantes dos menos favorecidos, numa metáfora escancarada e nada sutil do capitalismo selvagem e a eterna relação com o socialismo e suas premissas utópicas de igualdade. O cenário é um lugar sombrio e misterioso, onde uma plataforma de 333 andares é projetada como prisão voluntária para 666 pessoas, numa espécie de redenção ou purificação das almas, com celas sem janelas, abrigando duas por andar.

O cineasta constrói um clima de claustrofobia para que um elevador suba e desça, uma vez por dia, por um buraco profundo, parando por poucos minutos em cada pavimento para alimentar os hóspedes reclusos voluntários daquele indescritível e controvertido lugar. Parte sempre da administração que está instalada no topo, ou seja, no último andar chamado marco zero. Ali se instala uma batalha desumana pela sobrevivência, embora os de baixo, principalmente a partir do meio, serão os mais prejudicados pela falta de sensatez e solidariedade dos que habitam a parte superior. O princípio do estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero e privação da realização espanhola vai ao encontro dos dias atuais do confinamento da população mundial pelas momentâneas circunstâncias pandêmicas decorrentes da Covid-19, que mudou a rotina de todos de uma vez só, tornando os dias e semanas difíceis e dramáticos. Os abrigados desta realização enxergam os andares superiores e inferiores pelo enorme buraco do poço, sendo que a organização é atípica e gera desconforto no personagem central, um homem com bons princípios. Ele é um abnegado leitor e seguidor fiel do clássico espanhol Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), que se insurge com as atitudes egoístas e discricionárias na forma de divisão dos alimentos, um verdadeiro banquete com iguarias de escargot e carnes apetitosas, vinho e sobremesa de panna cotta, porém mal distribuído, o que irá causar uma catarse nas cenas finais.

A falta de comida que não é reposta e proibida de ser estocada, diante da ausência de solidariedade, principalmente dos hóspedes dos níveis de cima com os de baixo, restando migalhas para os andares inferiores, irá levar os reclusos para uma desunião que explodirá sob o comando do herói quixotesco Goreng. E paramos por aí. O Poço carece de uma abordagem aprofundada sobre a ascensão social dos excluídos. Opta por uma narrativa com recorrentes cusparadas, defecações e urinadas nos alimentos por parte do frustrado e agressivo companheiro de cela do protagonista. Não falta o canibalismo cruel com situações aberrantes e sem concessões de extirpações de órgãos humanos para o sustento. Não há sugestões de violência, todas são explícitas e o realismo impera e predomina em quase todo o desenrolar da história. O estupro também se faz presente, derivando do surreal para o artificialismo lançado na esteira do enredo extravagante, por conta e risco do inexperiente e apelativo neófito realizador.

A obra sintetiza aqueles dois homens que dividem o mesmo espaço e que estão à beira da loucura, pela perda da lucidez que irá se esvaindo cada vez mais, temática bem abordada pelo diretor norte-americano Robert Eggers, no admirável O Farol (2019), e que deveria ser retratada de maneira mais lúcida e sem a exploração do fragilizado recurso da violência pela violência com os excessos de sangue jorrando por todos os lados de maneira incontida e pouco inteligente, sob a ótica equivocada de Gaztelu-Urrutia. Eggers cria um clímax hostil e pouco saudável, misturando o realismo com o imaginário, num exercício mental delirante, claustrofóbico e tresloucado dos limites propostos da ficção para um tensionado e abrangente suspense que deriva para a tragédia grega, em O Farol. Utiliza a natureza invadida se vingando do homem, quando os pássaros entram em ação para comer a carne que deverá ser regenerada como na mitologia dos gregos que ensina sobre Prometeu sendo punido ao ter seu fígado comido pelas águias para eternizar a tortura por ter roubado o fogo dos deuses. Já Gaztelu-Urrutia usa e abusa do canibalismo afetado, cru, promíscuo e agressivo, com repetições de escatologias abjetas e contrárias ao cinema de meritória qualidade.

Também não se coadunam as simplistas comparações com o multipremiado Parasita (2019), do renomado e talentoso cineasta Bong Joon-ho, por alguns apressados críticos de plantão. O filme da Coreia do Sul é uma metáfora de uma civilização doente e em vias de extinção através de uma fábula adulta com contornos trágicos na busca do topo da pirâmide para abandonar o triste isolamento da injustiça social. Emocionou por ser intenso e complexo, maduro e completo, instigante e impactante, que atingiu o patamar de uma indiscutível obra-prima. Já O Poço é um frívolo arremedo sobre discussões e controversas de contornos de pouca relevância sobre as regras e o formato que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano distópico. Se na realização sul-coreana ninguém ficava ileso desta convivência marcada por acontecimentos de alta tensão, humor e a tragédia iminente com o resultado do confronto de classes distintas e paradoxais de uma sociedade contemporânea e o questionamento lançado pelo olhar atento do seu festejado realizador, O Poço transita do suspense para o terror folhetinesco sem qualidade estética, embora tenha deixado o desfecho em aberto. Com um elenco sofrível, a fotografia é ruim, uma direção sem pulso e desprovida de uma razoável dramaturgia para um realismo chamativo e ineficaz. Abandona os valores essenciais de uma visão crítica apurada para um foco rasteiro, ao jogar fora um ótimo tema recheado de boas intenções. Faltou apuro técnico e reflexivo, mas sobraram elementos desprezíveis de um filme visivelmente comercial e descartável por ser inconvenientemente grosseiro.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Você Não Estava Aqui



Ética e Dignidade

Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas e pisoteadas pelo sistema, o diretor inglês Ken Loach, de 83 anos, nada mais é do que um humanista por natureza, e pelo seu penúltimo longa-metragem, Eu, Daniel Blake (2016), ganhou pela segunda vez a Palma de Ouro. Fez um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático naquele fabuloso drama social sobre a perversa reforma com mudanças radicais na Previdência Social. O título foi mais uma parceria com o roteirista indiano Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla. Anteriormente, já havia arrebatado o troféu em 2006 com Ventos da Liberdade, em Cannes.

Em uma espécie de continuidade do filme anterior, Loach está de volta com este magnífico Você Não Estava Aqui, novamente escrito por Laverty, para abordar o tema da moda: o empreendedorismo. Mas nem tudo soa como algo positivo, pois se escancara a falácia da servidão pelo falso milagre do negócio próprio como solução para o desemprego no mundo capitalista. São debatidas situações pouco divulgadas como a capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos e serviços. A iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças com alterações na rotina do empregado envolvem inovação e risco. Os conflitos históricos e opostos entre direita e esquerda como os princípios inerentes de divergências que irão ao encontro indubitavelmente do serviço e sua importância como meio de sustento e pilar basilar de sustentação do ser humano. A valoração moral e ética estão colocadas em xeque no drama humanista do realizador sobre o trabalho que deve dignificar o homem e não humilhá-lo como forma de destruição dos alicerces do microcosmo familiar.

A obra aponta que a informalidade não traz a recompensa prometida, e aos poucos os membros familiares entram em choque e passam a ser jogados uns contra os outros, numa catártica situação em que o cotidiano das pequenas coisas irá demonstrar pela ausência e solidão dos personagens em frangalhos focados pelas contingências da conjuntura caótica predominante. A trama é ambientada em Newcastle, norte da Inglaterra, quando o pai, Ricky Turner (Kris Hitchen), após ter passagens pela construção civil e jardinagem, resolve ser patrão de si mesmo e diante da circunstância financeira precária, decide adquirir uma van, na intenção de trabalhar com entregas de grandes empresas do comércio digital, aceitando não ter a carteira de trabalho assinada. Abdica do plano de saúde, folgas semanais, férias, horas extras, seguro e demais direitos trabalhistas legais. Assina um contrato em que se compromete a ser multado caso não cumpra com os horários preestabelecidos, pois o que interessa é “a satisfação do cliente”, alerta o rigoroso gerente Maloney (Ross Brewster). Para adquirir o veículo que fará as entregas, acaba vendendo o automóvel, que era utilizado pela esposa, Abby (Debbie Honeywood), nos deslocamentos como cuidadora profissional para atender idosos e doentes em locais distantes da residência.

A narrativa em tom naturalista pela espontaneidade de puro realismo dramático causa indignação e constrangimento no espectador atento às coisas do cotidiano na triste saga dos pais lutadores pela dignidade e sustento dos filhos: o adolescente rebelde, Sebastian (Rhys Stone) e a meiga pré-adolescente, Liza Jane (Katie Proctor). Com a ausência dos pais, o garoto passa a cometer pequenos furtos, brigas constantes na escola, com pichações em muros, até ser suspenso pelo diretor da instituição de ensino. Já a menina tem problemas para dormir, começa a sofrer de incontinência urinária, embora tente estabelecer um elo de vínculos e aproximações entre o pai e o irmão que partem para as vias de fato, acaba errando no método, tudo sob a supervisão da mãe conciliadora e dedicada, mas submissa por vezes. São causas e efeitos do desemprego batendo à porta diante da precarização do trabalho e os resultados pragmáticos e sub-humanos da “uberização”, em que o autônomo leva o pomposo nome de empreendedor franqueado. Ricky recebe uma garrafa de plástico para urinar e um bipe dispara, caso ele se afastar por mais de dois minutos do veículo, pois é monitorado pelo contratante por sofisticados programas computadorizados. Também não pode ausentar-se do trabalho para resolver problemas graves na família, exceto se deixar um motorista entregador em seu lugar, sob pena de ser multado e perder ainda as melhores rotas.

O veterano Loach demonstra vigor na condução da sua realização, embora sombria e sem grandes perspectivas para um olhar mais promissor nas relações trabalhistas futuras, nesta temática universal abordada com sensibilidade sobre a intensidade da correria do dia a dia para o sustento. As imagens do epílogo inusitado são apropriadas e desmistificadoras na tela. Cada vez mais as coisas se complicam e a explosão de raiva do filho pela passividade do pai que não reivindica seus direitos e se submete às humilhações são reveladoras da raiva contida contra o sistema vigente de demonização do trabalhador e a ruptura marcante e devastadora no núcleo familiar. Habilmente o cineasta conduz o drama com contornos de inverossimilhança pelas circunstâncias apresentadas. Você Não Estava Aqui apresenta conjunções não resolvidas colocadas como um libelo ao poder econômico pela discriminação de quem depende da oportunidade de emprego num clímax de tensão que cresce e mergulha no desespero da perda iminente da dignidade ao se encaminhar para um desfecho insolúvel.

Cria-se com extrema magia cinematográfica um doloroso painel de improbabilidades, sem fazer concessões aos envolvidos, com contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência. Há uma construção rica de elementos dentro de um roteiro enxuto e direto sem retóricas, afastando as grandes armadilhas que poderiam levar para uma história apelativa. Um drama intenso sobre a perversidade que enobrece o cinema, através de um enredo emocionante sobre os dissabores dos agentes honestos e com fibra, leva para o desequilíbrio dos que têm menos poder de reivindicação na sociedade. O conflito é fruto de um sistema instável e selvagem que vira as costas para os menos favorecidos quando estes precisam, para lançar um olhar reflexivo, através de tintas fortes e marcantes sobre os poucos aquinhoados. Um filme eloquente sobre a ausência de dignidade e ética pelas nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas, como assevera o gerente ao corrigir o futuro franqueado: “Contratação não, você se torna nosso colaborador”.