quarta-feira, 24 de abril de 2013

Hoje



















Fantasma do Passado

Vencedor do Festival de Brasília de 2011 e selecionado em 2012 para o Festival de Verão de Porto Alegre e o Festival Latino-Americano do Novo Cinema em Havana, estreou finalmente o badalado filme Hoje, com direção de Tata Amaral, roteiro de Jean-Claude Bernardet, baseado no livro Prova Contrária, de Fernando Bonassi. Ambos já trabalharam com a diretora nos longas Céu de Estrelas (1996) e Atrás da Janela (2000).

O drama Hoje tem uma linha própria de simplicidade, na cidade de São Paulo, com um cenário único dentro de um apartamento fechado em 1998- exceto na última cena-, como visto recentemente no extraordinário Amor (2012) de Michael Haneke, ou no bom filme Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski, ou ainda no magnífico Vocês Ainda Não Viram Nada!, de Alain Resnais. Quando há criatividade o resultado é uma obra profunda e notável em todos os seus aspectos, como nos referidos dramas de cenário único. Mas Tata Amaral não convence e seu filme peca por inércia e falta de dramaticidade cênica, embora paradoxalmente os intérpretes estivessem muito bem em seus papéis. Denise Fraga como Vera/Ana Maria, sem abusar do histrionismo característico, tem uma boa desenvoltura, com uma atuação sóbria e convincente, protagoniza com o ótimo ator uruguaio César Troncoso (O Banheiro do Papa-2007), que está lúcido como o ativista Luís, desaparecido durante o regime militar.

A trama tinha tudo para ser consistente e provocar o espectador, mas o resultado causa um marasmo desanimador na plateia pelo exagerado tom arrastado. Luís reaparece no dia da mudança de Vera- conhecida pela alcunha de Ana Maria na clandestinidade-, quando os funcionários da transportadora estão desenrolando os móveis e utensílios domésticos no novo apartamento. Há um jogo de cena que pareceria deslanchar com o desenvolvimento do enredo. Culpa e questionamento sobre o vínculo com o passado que acarretou na queda do “aparelho” dos ativistas são colocados num diálogo frio e sem emoção. A protagonista é questionada sobre a aquisição do imóvel, oriunda da indenização do companheiro dado como morto pela lei de 1995, depois do desaparecimento em 1974 de Luís, que surge e se materializa exatamente no dia em que a viúva está se instalando em sua nova residência. Afloram os fantasmas do passado e os anos de chumbo de 1964 a 1985 vem à tona como o fato causador. Os traumas sofridos pela dupla são manifestados, mas sem a força e a catarse de contundência de um Arnaldo Jabour em Eu Sei Quer Vou Te Amar (1986), onde um casal faz um jogo de palavras memorável através de uma esplendorosa terapia filmada de forma arrasadora, dissecando e derrubando normas preconceituosas e tabus existentes entre duas pessoas que se amam.

A cineasta que perdeu o marido aos 19 anos, ele com 20, admite que seu episódio pessoal influenciou o relato da perda e da morte em vida da protagonista, ao desabar logo após descobrir que nunca mais veria o companheiro. Não é um filme de imagens eloquentes que falam, nem há uma forte emocionalidade, embora a leitura de documentos e vídeos da época causem algum impacto sensorial ilusório, porém está aquém da expectativa. A tortura e a morte são relatos cênicos pobres de uma dramaturgia teatral pouca imaginativa. Não que isto impedisse o clímax, mas a ausência de um realismo é relevante e leva o drama para um abismo de diálogos frouxos e escorregadios, sem a atitude corporal ou de um magnetismo eficiente que poderia envolver a trama.

O filme empaca na simplicidade incontida de uma câmera fixa, com alguns movimentos pelo espaço fechado, abrindo em raros contraplanos cansativos, sem levar a lugar algum por tenras imagens sem força dramática. Ao optar por não utilizar o recurso do flashback contado em apenas um dia, há uma sonegação do passado que dá uma falsa impressão de encobrir os estragos provocados por um regime totalitário de barbáries sem escrúpulos.

Hoje aborda a sexualidade de Vera como uma forma agressiva para se defender do fantasma que atormenta seu futuro, mas o resultado é um simplório e desvirtuado vulgarismo para uma mulher que busca encontrar forças para viver um novo amanhã e cicatrizar as feridas que latejam. O desfecho pela ida até a praça, diante da conclusão da ruptura com o passado e que o marido não retornará é precário e não convence. Faltou cinema, sobrou uma certa acomodação numa linguagem teatral banalizada, sem perturbar ou provocar o espectador.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Vocês Ainda Não Viram Nada!



Eurídice e Orfeu

O longevo diretor Alain Resnais, com seus 90 anos de idade bem vividos, novamente apronta positivamente com Vocês Ainda Não Viram Nada!, fundindo teatro e cinema para realizar o último desejo de Antoine (Denis Podalydès), um famoso dramaturgo que morre de repente e deixa uma mensagem num vídeo convidando seus melhores amigos para remontar livremente, em quatro atos, a peça escrita por Jean Anouilh Eurídice e o relacionamento conturbado com seu amante Orfeu. A proposta inusitada é transmitida pelo mordomo aos atores que atuaram nas duas versões anteriores, logo que chegam na suntuosa mansão para participarem do funeral, porém este já acontecera rapidamente por desejo do morto.

A ironia mesclada com um humor sutil são marcas registradas deste extraordinário cineasta francês, como visto recentemente no notável Medos Privados em Lugares Públicos (2006) e em Ervas Daninhas (2009), este um pouco abaixo da expectativa. A carreira do velho mestre é brilhante e tem em sua filmografia os ótimos Amores Parisienses (1997) e Beijo na Boca, Não (2003), bem como as obras-primas Hiroshima, Meu Amor (1959) e O Ano Passado em Marienbad (1961). Seu talento é inerente aos diretores decanos do cinema, como o português Manoel Oliveira, 104 anos, esbanjando lucidez no atual O Gebo e a Sombra (2012), sucesso na última Mostra de Cinema de São Paulo ocorrida ano passado.

Vocês Ainda Não Viram Nada! é um drama magnífico, onde o teatro e a sua formalidade estrutural e cênica na apresentação da remontagem da peça dá vazão para um mergulho no imaginário do espectador da sétima arte. A encenação com Sabine Azéma e Pierre Arditi como Eurídice e Orfeu está espetacular, bem acima do casal na versão posterior Lambert Wilson e Anne Consigny. O cineasta brinca e se diverte com a linguagem teatral e cria um atmosfera de amor e ódio, alegria e tristeza entre os atores convidados que chegam na residência do recém-falecido. Aos poucos começam a se envolver no clímax farsesco proposto em vídeo pelo mordomo. Vão entrando cautelosamente na encenação e tomam por todo o espaço do cenário com bastante rigorismo para colocarem como realidade suas interpretações.

É bem original a jogada cênica, como foi também intuitiva a criação de Eduardo Coutinho em seus documentários Jogo de Cena (2006) e Moscou (2009). Mas bem distante em matéria de inovação a Roman Polanski em Deus da Carnifina (2011), que se baseou na peça da dramaturga francesa Yasmina Reza. A estética apurada do veterano diretor é consistente e tem guarida nas abrangentes atuações de Michel Piccoli e Mathieu Amalric, além dos atores que interpretam o casal nas versões reeditadas.

O equilíbrio cênico encontra sustentação no roteiro enxuto e sofisticado para uma atmosfera que vem à tona com lucidez e que são fatores primordiais para o desenlace surpreendente do longa, de certa forma como bem induz o título. Não dá para piscar o olho no final, diante do epílogo elucidativo do cemitério, pois tal qual Eurídice e Orfeu, há o encontro revelador para o grande amor eterno, diante dos indícios reflexivos do dramaturgo Antoine com a atriz e musa que se esconde na última cena. Embora tudo pareça ser uma brincadeira juvenil do diretor, porém a chave do enigma está bem alicerçada num molho saboroso desta obra singular de cinema teatral do incansável Resnais.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Rânia



















Conflito das Danças

A promissora diretora cearense Roberta Marques retrata no seu longa ficcional de estreia Rânia um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a estratificação social e o papel da mulher através da captação da câmera que percorre já no prólogo um bela cena, onde a protagonista que empresta seu nome ao título (Graziela Felix), demarca seu território e os limites que deverão ser costurados e as arestas a serem aparadas, para sair daquele lugar-espaço que lhe é pequeno. A dança é o voo que pretende alçar num futuro bem próximo, pela visão de uma jovem sonhadora e irrequieta com a situação de mesmice dos pais separados e acomodados.

A trama mostra uma garota que não aceita continuar ali e no seu traçado de vida surgem ideias e tentativas, que até podem ser frustradas, mas a teimosia em não desistir está encravada visceralmente em sua personalidade contestadora daquela menina que vive em Fortaleza, no morro Santa Terezinha e ajuda a mãe nas lidas da casa, que estuda numa escola municipal, trabalha numa barraca e vive sonhando em ser bailarina. Tem como amiga inseparável Zizi (Nataly Rocha), de passagem meteórica e nada alentadora pela Itália, que a leva para uma boate de dança erótica, com o sugestivo nome de Sereia da Noite, onde a boemia e o dinheiro fácil estão presentes em parceria com a prostituição.

O conflito interior da adolescente se estabelece e a disciplina da dança entra em choque com as facilidades ali existentes, quando conhece a coreógrafa e dona da companhia de dança Estela (Mariana Lima). Uma mulher com os pés no chão e consciente de seu papel na formação de futuras profissionais. Logo dá as cartas e se posiciona com rigor para eventuais falcatruas. Ir para o Exterior requer a anuência do pai, um homem rude e voltado para o seu barco com o casco avariado. Está mais preocupado é com o conserto e voltar a pescar em alto-mar, única coisa que sabe fazer na vida e determinar que a filha cuide dos dois irmãos menores. A mãe é uma mulher típica sofredora e oprimida, que além do cotidiano caseiro, tem que costurar para sobreviver e alimentar os filhos.

O longa mergulha na vontade daquela menina em ser artista e dançar como uma grande estrela, pois é o que mais almeja e faz de tudo para atingir seu objetivo. Ao seguir o instinto de libertação, haverá interferências que surgirão como possibilidades remotas ou buscar o caminho da facilidade pela aproximação da ilicitude. A diretora mostra um Nordeste com poucas chances, como também foi retratado por Kleber Mendonça Filho no comovente O Som ao Redor (2012), onde a natureza silenciosa e ameaçadora serviu como metáforas de um Brasil inseguro e rodeado pela miséria e pela onda de violência.

Marques vai pelo sensível atalho dos dois caminhos colocados para a protagonista, sem demagogia ou alarde pirotécnico. Indica que há uma opção do caminho sem volta, que é o dinheiro falando mais alto e aparentemente sem problemas através de uma clientela para uma ninfeta bonitinha e saudável. O outro caminho é mais difícil e serpenteado por agruras, requer obstinação individual e coletiva dentro de um regramento para atingir o ápice da carreira artística. Ser famosa por méritos próprios está inserido numa grande entrega profissional, como se viu no extraordinário documentário Pina (2011), de Wim Wenders. O olhar feminino contextualizado em Rânia, também se faz presente nos ótimos O Céu de Suely (2006), de Karim Aïnouz, A Casa de Alice (2007), de Chico Teixeira e Riscado (2010), de Gustavo Pizzi.

Ressalte-se o elenco consistente sem grandes arroubos interpretativos e cênicos, encaixando-se bem com a sutileza dos diálogos que evitam os clichês e excessos, atinge o público de modo sóbrio e ao mesmo tempo com a delicadeza proposta pela cineasta, onde há uma trilha sonora adequada para os personagens, com destaque para a bela voz de Cat Power. Mas nem tudo soa perfeito na harmonia do filme, pois a cineasta peca por não dar ênfase num olhar que deveria ser mais severo e crítico sobre o prostíbulo quase glamourizado sobre o realismo do turismo sexual ali existente. Embora não queira, deixa-se trair em muitas cenas no desenrolar da trama, exceto no surto do namorado de Zizi, próximo de uma realidade apresentada.

Os limites impostos a serem ultrapassados soam como amarras indecifráveis, talvez outro equívoco da diretora. Porém os conflitos da protagonista são bem racionalizados e a dúvida da opção fica no ostracismo de um futuro incerto dentro de um contexto de passividade dos pais, num cenário poético e deslumbrante, mas que no epílogo fica um certo vazio, embora sem maniqueísmos, deste bom drama social brasileiro dos sonhos convulsivos que buscam uma existência.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Pietá



















Culpa e Vingança

O diretor sul-coreano Kim Ki-duk tem em sua filmografia o sensível e comovente Primavera, Verão, Outono, Inverno e...Primavera ( 2003); depois realizou Casa Vazia (2004), sobre um jovem sem rumo que costumava invadir casas estranhas quando os donos estavam fora, mas tudo muda quando encontra a proprietária no local. Agora ousa de forma contundente com Pietá, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2012. Derrotou as produções daquele ano, tais como: o representante da Itália A Bela que Dorme, de Marco Bellocchio; a produção americana O Mestre, de Paul Thomas Anderson e ainda o badalado norte-americano Passion, de Brian de Palma.

A trama do novo longa deste festejado cineasta é centrada em Kang-do (Lee Jung-jin), um cruel cobrador de dívidas impagas aos agiotas. Usa de métodos violentos e torna-se um homem respeitado por ser implacável em seu trabalho solitário e com resultados devastadores para suas vítimas, que acabam sendo mutiladas sem dó e nem piedade. A violência crua faz parte da vingança neste drama social seco e frio das relações familiares distantes dentro de um capitalismo desenfreado que passa por cima dos valores em flagrante crise, onde o dinheiro fala mais alto e a construção de espigões se avoluma e o casario antigo tende a desaparecer.

Com o surgimento repentino em cena da suposta mãe do algoz (Jo Min-su) que o teria abandonado na infância, a fragilidade toma conta daquela criatura de pouco mais de 30 anos. Pede perdão e canta música de ninar para o suposto filho que se esboroa psicologicamente, tornando-se com o passar do tempo uma criança grande dependente e distante daquela falsa fortaleza física insuperável. Um equívoco no roteiro é a tentativa vazia de incutir naquele verdugo que o dinheiro só traz problemas para o ser humano, pois por onde começa fatalmente levará para um fim dolorido. Embora um tanto quanto pueril em seus conselhos, consegue manipular pelo carinho e a atenção como intento proposital de uma artimanha escabrosa.

O filme promete surpresas para o final, tendo no prólogo a cena do gancho que irá materializar a reveladora verdade. São situações familiares não resolvidas, tendo naquela mãe simbolizando as demais e a revelar o enigma, diante da violência que ainda continuará persistindo até o desenlace. Ki-duk vem de uma escola de cinema com méritos invejáveis de seu país, com um cinema onde a crueldade radicalizada já teve outros diretores abordando com eficiência, como no longa Oldboy (2003), de Park Chan-wook; O Hospedeiro (2006) e Mother (2009), ambos de Joon-ho Bong.

Há méritos inegáveis do cineasta ao manter o suspense com bom clímax, deixando a plateia e o filho em dúvidas para aceitar a mãe desnaturada, daí a razão de maltratá-la e o incesto parecer iminente, diante de um cenário de rejeição, onde não faltam tapas no rosto de parte a parte. O microcosmo familiar se abre como um leque na teoria da violência pelo abandono materno, embora exite em aprofundar o tema com o brilhantismo talvez esperado, mas consegue mexer com o espectador e fazê-lo crer num primeiro momento na família como centro universal do indivíduo numa planície de questões debatidas para as soluções apresentadas.

Mesmo com o surpreendente desfecho, dá guarida para a construção da precária pessoa em cena. A crueldade e a solidão do ser humano são fatores resultantes em um núcleo familiar desestruturado e fragilizado pelo sistema em decomposição. A relação de mãe, pai e filho é fartamente abordada, ainda que não seja completamente esgotada, há um indício e uma revelação como de um indivíduo sem raízes e desprovido de vínculos familiares ser levado para a condição de uma fera incivilizada, ou um monstro com o estigma da maldade. É difícil resistir ao apelo materno, como demonstra o diretor, embora a emboscada psicológica esteja presente como uma grande vingança.

Pietá é um filme vigoroso sobre a interação da família como núcleo e base contextualizada, para abordar o sadismo sem limites de um torturador que busca através da invalidez das vítimas resgatar a dívida dos clientes para o mandante na condição de patrão. Mas não é só por este ângulo da perversidade e o prazer pela dor e o sofrimento do próximo que este drama cruel se apoia, pois há uma reflexão clarividente sobre o papel da mãe em xeque, além do brutal avanço do capitalismo e da crise de valores.