Eurídice e Orfeu
O longevo diretor Alain Resnais, com seus 90 anos de idade
bem vividos, novamente apronta positivamente com Vocês Ainda Não Viram Nada!, fundindo teatro e cinema para realizar
o último desejo de Antoine (Denis Podalydès), um famoso dramaturgo que morre de
repente e deixa uma mensagem num vídeo convidando seus melhores amigos para
remontar livremente, em quatro atos, a peça escrita por Jean Anouilh Eurídice e o relacionamento conturbado
com seu amante Orfeu. A proposta inusitada é transmitida pelo mordomo aos
atores que atuaram nas duas versões anteriores, logo que chegam na suntuosa
mansão para participarem do funeral, porém este já acontecera rapidamente por
desejo do morto.
A ironia mesclada com um humor sutil são marcas registradas
deste extraordinário cineasta francês, como visto recentemente no notável Medos Privados em Lugares Públicos
(2006) e em Ervas Daninhas (2009),
este um pouco abaixo da expectativa. A carreira do velho mestre é brilhante e
tem em sua filmografia os ótimos Amores
Parisienses (1997) e Beijo na Boca,
Não (2003), bem como as obras-primas Hiroshima,
Meu Amor (1959) e O Ano Passado em
Marienbad (1961). Seu talento é inerente aos diretores decanos do cinema,
como o português Manoel Oliveira, 104 anos, esbanjando lucidez no atual O Gebo e a Sombra (2012), sucesso na
última Mostra de Cinema de São Paulo ocorrida ano passado.
Vocês Ainda Não Viram
Nada! é um drama magnífico, onde o teatro e a sua formalidade estrutural e
cênica na apresentação da remontagem da peça dá vazão para um mergulho no
imaginário do espectador da sétima arte. A encenação com Sabine Azéma e Pierre
Arditi como Eurídice e Orfeu está espetacular, bem acima do casal na versão
posterior Lambert Wilson e Anne Consigny. O cineasta brinca e se diverte com a
linguagem teatral e cria um atmosfera de amor e ódio, alegria e tristeza entre
os atores convidados que chegam na residência do recém-falecido. Aos poucos
começam a se envolver no clímax farsesco proposto em vídeo pelo mordomo. Vão
entrando cautelosamente na encenação e tomam por todo o espaço do cenário com
bastante rigorismo para colocarem como realidade suas interpretações.
É bem original a jogada cênica, como foi também intuitiva a
criação de Eduardo Coutinho em seus documentários Jogo de Cena (2006) e Moscou
(2009). Mas bem distante em matéria de inovação a Roman Polanski em Deus da Carnifina (2011), que se baseou
na peça da dramaturga francesa Yasmina Reza. A estética apurada do veterano
diretor é consistente e tem guarida nas abrangentes atuações de Michel Piccoli
e Mathieu Amalric, além dos atores que interpretam o casal nas versões
reeditadas.
O equilíbrio cênico encontra sustentação no roteiro enxuto e
sofisticado para uma atmosfera que vem à tona com lucidez e que são fatores
primordiais para o desenlace surpreendente do longa, de certa forma como bem
induz o título. Não dá para piscar o olho no final, diante do epílogo
elucidativo do cemitério, pois tal qual Eurídice e Orfeu, há o encontro
revelador para o grande amor eterno, diante dos indícios reflexivos do
dramaturgo Antoine com a atriz e musa que se esconde na última cena. Embora
tudo pareça ser uma brincadeira juvenil do diretor, porém a chave do enigma
está bem alicerçada num molho saboroso desta obra singular de cinema teatral do
incansável Resnais.
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