Conflito das Danças
A promissora diretora cearense Roberta Marques retrata no
seu longa ficcional de estreia Rânia
um drama que reflete a preocupação do cinema autoral com a estratificação
social e o papel da mulher através da captação da câmera que percorre já no
prólogo um bela cena, onde a protagonista que empresta seu nome ao título
(Graziela Felix), demarca seu território e os limites que deverão ser
costurados e as arestas a serem aparadas, para sair daquele lugar-espaço que
lhe é pequeno. A dança é o voo que pretende alçar num futuro bem próximo, pela
visão de uma jovem sonhadora e irrequieta com a situação de mesmice dos pais
separados e acomodados.
A trama mostra uma garota que não aceita continuar ali e no seu
traçado de vida surgem ideias e tentativas, que até podem ser frustradas, mas a
teimosia em não desistir está encravada visceralmente em sua personalidade
contestadora daquela menina que vive em Fortaleza, no morro Santa Terezinha e
ajuda a mãe nas lidas da casa, que estuda numa escola municipal, trabalha numa
barraca e vive sonhando em ser bailarina. Tem como amiga inseparável Zizi
(Nataly Rocha), de passagem meteórica e nada alentadora pela Itália, que a leva
para uma boate de dança erótica, com o sugestivo nome de Sereia da Noite, onde
a boemia e o dinheiro fácil estão presentes em parceria com a prostituição.
O conflito interior da adolescente se estabelece e a
disciplina da dança entra em choque com as facilidades ali existentes, quando
conhece a coreógrafa e dona da companhia de dança Estela (Mariana Lima). Uma
mulher com os pés no chão e consciente de seu papel na formação de futuras
profissionais. Logo dá as cartas e se posiciona com rigor para eventuais
falcatruas. Ir para o Exterior requer a anuência do pai, um homem rude e voltado
para o seu barco com o casco avariado. Está mais preocupado é com o conserto e
voltar a pescar em alto-mar, única coisa que sabe fazer na vida e determinar
que a filha cuide dos dois irmãos menores. A mãe é uma mulher típica sofredora
e oprimida, que além do cotidiano caseiro, tem que costurar para sobreviver e
alimentar os filhos.
O longa mergulha na vontade daquela menina em ser artista e
dançar como uma grande estrela, pois é o que mais almeja e faz de tudo para
atingir seu objetivo. Ao seguir o instinto de libertação, haverá interferências
que surgirão como possibilidades remotas ou buscar o caminho da facilidade pela
aproximação da ilicitude. A diretora mostra um Nordeste com poucas chances,
como também foi retratado por Kleber Mendonça Filho no comovente O Som ao Redor (2012), onde a natureza
silenciosa e ameaçadora serviu como metáforas de um Brasil inseguro e rodeado
pela miséria e pela onda de violência.
Marques vai pelo sensível atalho dos dois caminhos colocados
para a protagonista, sem demagogia ou alarde pirotécnico. Indica que há uma
opção do caminho sem volta, que é o dinheiro falando mais alto e aparentemente
sem problemas através de uma clientela para uma ninfeta bonitinha e saudável. O
outro caminho é mais difícil e serpenteado por agruras, requer obstinação
individual e coletiva dentro de um regramento para atingir o ápice da carreira
artística. Ser famosa por méritos próprios está inserido numa grande entrega
profissional, como se viu no extraordinário documentário Pina (2011), de Wim Wenders. O olhar feminino contextualizado em Rânia, também se faz presente nos ótimos
O Céu de Suely (2006), de Karim
Aïnouz, A Casa de Alice (2007), de
Chico Teixeira e Riscado (2010), de
Gustavo Pizzi.
Ressalte-se o elenco consistente sem grandes arroubos
interpretativos e cênicos, encaixando-se bem com a sutileza dos diálogos que
evitam os clichês e excessos, atinge o público de modo sóbrio e ao mesmo tempo
com a delicadeza proposta pela cineasta, onde há uma trilha sonora adequada para
os personagens, com destaque para a bela voz de Cat Power. Mas nem tudo soa
perfeito na harmonia do filme, pois a cineasta peca por não dar ênfase num
olhar que deveria ser mais severo e crítico sobre o prostíbulo quase glamourizado
sobre o realismo do turismo sexual ali existente. Embora não queira, deixa-se
trair em muitas cenas no desenrolar da trama, exceto no surto do namorado de
Zizi, próximo de uma realidade apresentada.
Os limites impostos a serem ultrapassados soam como amarras
indecifráveis, talvez outro equívoco da diretora. Porém os conflitos da
protagonista são bem racionalizados e a dúvida da opção fica no ostracismo de
um futuro incerto dentro de um contexto de passividade dos pais, num cenário
poético e deslumbrante, mas que no epílogo fica um certo vazio, embora sem
maniqueísmos, deste bom drama social brasileiro dos sonhos convulsivos que
buscam uma existência.
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