quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Os 10 Melhores Filmes do Ano
Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas
Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2011, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:
01. A Árvore da Vida (foto acima), de Terrence Malick;
02. Meia-Noite em Paris, de Woody Allen;
03. Biutiful, de Alejandro González Iñarritu;
04. Bravura Indômita, dos irmãos Ethan e Joel Coen;
05. Gainsborg- O Homem que Amava as Mulheres, de Joann Sfar;
06. Poesia, de Lee Chan-dong;
07. Submarino, de Thomas Vinterberg;
08. Incêndios, de Dennis Villeneuve;
09. O Garoto da Bicicleta, dos irmãos Dardenne;
10. A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar.
Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:
- Homens e Deuses, de Xavier Beavois;
- Inverno da Alma, de Debra Granik;
- Inquietos, de Gus Van Sant;
- Lola, de Brillante Mendoza;
- Um Lugar Qualquer, de Sofia Coppola.
Inquietos
Poema da Morte
O norte-americano Gus Van Sant é um diretor que vem se firmando no cenário internacional como um tradutor dos jovens, desde sua estreia com o filme independente Mala Noche (1986), sobre os desajustes da juventude na sociedade e a homossexualidade abordada em Milk- A Voz da Igualdade (2008), bem recebido pelos críticos. Também as drogas se inserem em suas temáticas nos longas Drugstore Cowboy (1989) e Garotos de Programa (1991). Filmou as lindas paisagens em Gerry (2002) e flutuou pelos superficiais Gênio Indomável (1997) e Encontrando Forrester (2000).
Mas com Elefante (2003) há a inspiração no massacre de Columbine, e Paranoid Park (2007) faz um estudo sobre o mundo do paraíso dos skatistas que sobem num trem de carga, sem imaginar o problema que teria. É nestes dois últimos filmes que atinge um grau mais elevado de sua filmografia e a morte está muito presente com todos os seus significados e os personagens desajustados dos adolescentes perdidos e conflitados. Retoma novamente com maturidade o tema da finitude mesclada com um grande amor, embora a morbidez esteja presente com toda sua dura realidade e uma tristeza entranhada neste magnífico Inquietos.
Van Sant usa com elegância o silêncio para mostrar a dor na trama através dos olhares em que Annabel (Mia Wasikowska- de grande interpretação, foi também a Alice no filme dirigido por Tim Burton em 2010) conhece Enoch (Henry Hopper- irrepreensível no papel; é filho do ator Dennis Hopper). Uma história pessimista sobre os jovens e sua existência, tendo na dupla uma constante convivência com a morte. Annabel sofre de câncer terminal e seu encontro com Enoch se dá num funeral, local frequentado assiduamente pelo rapaz como fuga e entretenimento.
Há uma busca ferrenha pela explicação da perda trágica de seus pais em acidente de carro, razão pela qual abomina automóveis. Deixou de estudar por ter sido expulso do colégio e sua tia, por quem é criado pouco entende a revolta. O relacionamento lúgubre lembra em muito o longa Love Story (1970), de Arthur Hiller, embora sem o melodrama deste que levou milhões de pessoas a chorarem copiosamente pela morte da garota diagnosticada com a mesma enfermidade de Annabel.
O existencialismo e suas traiçoeiras engrenagens fazem os jovens refletirem sobre o relativismo de Einstein ou sobre a teoria da evolução de Charles Darwin, sempre presentes nos quadros e livros da dupla que se completa pelas nuanças agridoces oriundas da perda da vida. É um filme que corrói os sentimentos e mostra toda sua angústia dilacerante advinda da morte à espreita em forma de um poema dolorido e perturbador; como reveladora a bela cena dos jovens na floresta que é utilizada como símbolo da paz e do aconchego, após fugirem dos pretensos inimigos no Dia das Bruxas.
O cineasta muito atento não esquece de dar uma cutucada com o personagem Hiroshi, um japonês em forma de fantasma, que surge logo após ser mencionado o episódio da bomba atômica lançada pelos EUA sobre Nagasaki, como bem evidencia a película pela sua presença constante. Apresenta-se no epílogo de fraque e cartola para o momento sublime, pois sempre esteve ao lado do inseparável amigo em todos os acontecimentos, numa espécie de anjo da guarda espiritual para aconselhamentos. Não o deixaria agora agonizando sem ajuda, diante de uma necessidade premente e indispensável, fruto de uma solidariedade dos que já partiram.
Inquietos é um filme magistral pela beleza plástica das imagens mesclada com a dor e o sofrimento do casal. É eloquente e marcante com traços pela perda absolutamente esperada, diante de um realismo pessimista e com poucas esperanças que vicejam a trajetória de dois jovens perdedores com poucos episódios de felicidade, mas aproveitados até onde foi possível.
Talvez o mais maduro e enxuto filme de Van Sant, marcado pela extrema sutileza dos gestos, afastando a pieguice desmesurada e soltando a emoção bem dosada com o clamor dos que lutam até o fim. Embora o otimismo esteja longínquo e a realidade misture-se com a delicadeza contraditória dos funerais e cemitérios visitados mesclado com bons momentos da doçura da vida. É uma obra maior e quase que inigualável na sua temática, uma das melhores realizações passadas nas salas do Brasil em 2011, embalada pela música "Two of Us", dos Beatles.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
Dawson- Ilha 10
Idealistas Prisioneiros
O cinema do Chile tem bons cineastas, como por exemplo Raoul Ruiz, morto recentemente, sem antes deixar um longa-metragem apreciável como Os Mistérios de Lisboa (2010), com quatro horas de duração, baseado no livro homônimo de Camilo Castelo Branco. Foi premiado como Melhor Filme Estrangeiro pela International Press Academy, que reúne centenas de jornalistas americanos e estrangeiros radicados nos EUA. Já seu colega cineasta Miguel Littín sempre esteve ao lado do presidente morto tragicamente Salvador Allende, durante o golpe militar de 11 de setembro de 1973, em circunstâncias até hoje discutíveis, que durou quase 20 anos sob o comando militar. Seu grande filme, um dos maiores do cinema do Chile, foi El Chacal de Nahueltoro (1969), abordando o assassinato de uma mulher e seus cinco filhos por um alcoólatra incivilizado e analfabeto.
Allende teria se suicidado? Littín questiona esta tese em seu belo filme Dawson- Ilha 10, uma produção chilena em parceria com o Brasil e a Venezuela, mostra os horrores da ditadura e as humilhações impostas aos ministros, embaixadores e autoridades do governo deposto abruptamente, com o respaldo da CIA, como bem é gizado com cores fortes no longa, através de depoimentos marcantes. O diretor é fiel em seu relato, num misto de drama e documentário, mostra os sucessivos depoimentos do presidente alijado do governo pelos militares comandados pelo tirano general Pinochet, inclusive nos seus momentos derradeiros e angustiantes no ataque ao Palácio de La Moneda.
O filme é baseado e contado na primeira pessoa pelo ex-ministro do governo Sérgio Bitar (Benjamin Vicuña), que escreveu o livro Isla 10, no qual o cineasta mostra o absurdo amplamente questionável de seres humanos serem torturados física e psicologicamente em seus intermináveis interrogatórios pelos militares, sob o comando do oficial do exército durão (Cristián de La Fuente), diante da pífia alegação acusatória de serem presos políticos comunistas e entreguistas do governo chileno para a Rússia. As pessoas aprisionadas perdem seus nomes de origem e são apenas reconhecidas por numeração, numa demonstração cabal de desrespeito humilhante.
O paradeiro dos prisioneiros é a gelada e inóspita Ilha de Dawson, no extremo sul do país, sem luz, poucas camas para os presos, ausente de recursos materiais e de saúde como insulina para os diabetes e anestesia para os feridos. É utilizada como um legítimo campo de concentração para que eles não tenham tempo de ler, pensar ou se manifestar contrários ao regime militar imposto em conluio com os EUA. Marcante a cena em que Bitar se pergunta: “O que é que eu fiz? Onde errei, para merecer tamanho castigo e trabalhos forçados?” A divisão da esquerda chilena é abordada com sutileza, pois não houve um apoio em bloco ao presidente, que viu seu governo ruir sem uma solidariedade esperada, vendo-se apenas um racha fundamental para o golpe.
Littín não construiu um filme com mágoas, rancor ou revanchista. Afasta-se do maniqueísmo simplista com extrema sutileza, como na cena da divisão do pão e da geleia entre o capitão Figueroa e o arquiteto prisioneiro, após a conclusão da restauração da igreja. O militar cumpria seu papel, mas não esquecia de ser solidário com seus irmãos chilenos, numa demonstração de humanismo e amor ao próximo. Também o soldado Pablo pagou caro por ser acusado de traição, embora fosse leal às forças armadas, a ingenuidade lhe custou muito.
Dawson- Ilha 10 é um filme feito com maturidade e a música está presente no “Está Chegando a Hora”, numa referência a esperada noite de Natal cantada pelos presos que receberam um violão supostamente da ONU, sob a enfatizada Convenção de Genebra, alegando que são presos políticos confinados e são tratados pelo referido acordo internacional. Como na morte do célebre poeta Pablo Neruda, os prisioneiros ouvem embevecidos numa galena- um rádio medieval- alguns fragmentos recitados em sua homenagem.
Um magnífico filme pela denúncia de maus tratos no campo de concentração dos presos políticos no Chile, logo após a queda do Allende e seus ministros, com o fim da democracia e a instalação de um governo rígido e ditatorial, bem representado metaforicamente na sensível cena do epílogo do afastamento de um pai e seu filho do caminhão, ou a marcha para a morte coletiva, prevalecendo a mentira e o uso em vão do nome da ONU. Fica além do valor histórico da película, a aula de humanismo pela solidariedade numa narrativa de personagens bem construídos numa civilização questionada pelas suas complexidades e paradoxos da destruição de vidas inocentes.
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
Tudo pelo Poder
Bastidores da Política
A campanha aética e toda sua podridão política são os principais componentes do roteiro na trama que enfoca o governador democrata Mike Morris (George Clooney- numa atuação discreta), visando à presidência dos EUA. Tudo pelo Poder tem em seu personagem central um misto do charme e elegância de John Kennedy e as aventuras sexuais de Bill Clinton com sua estagiária que sacudiram o governo e tremeu a Casa Branca. A direção é de Clooney, em seu quarto longa-metragem, com destaques para os anteriores Confissões de Uma Mente Perigosa (2002); sendo o melhor de todos Boa Noite e Boa Sorte (2006), numa verdadeira aula do bom jornalismo e suas investigações éticas.
A trajetória do filme é instigante e leva ao clímax somente no final, pois nos primeiros trinta minutos é meio sonolento, gira entre as armações quase que sem saída entre os coordenadores e assessores de campanha. De um lado o idealista político Stephen Myers (Ryan Gosling- ator canadense de estupenda interpretação, trabalhou no longa Namorados para Sempre (2010), parece ser meio ingênuo, às vezes passa por cínico, em suas armadilhas com seu chefe, o marqueteiro (Philip Seymour Hoffmann- sempre em boa forma) e do lado oposto o assessor do candidato republicano (Paul Giamatti- de notável atuação).
No meio do turbilhão do processo que se desenvolve a campanha, Stephen envolve-se com uma estagiária (Evan Rachel Wood), que teve um caso com o candidato Morris, numa clara alusão ao escândalo de Mônica Lewinsky. Tudo está por ir água abaixo e o candidato ouve de seu assessor o seguinte: “Você poderia roubar, mentir e enganar. Qualquer coisa, menos transar com a estagiária”. Mais explícito seria impossível, pois surge o episódio de Clinton com Mônica como um escândalo em erupção, tal qual um vulcão, após as revelações bombásticas de gravidez e complicações futuras. Para piorar o quadro crítico, surge a jornalista investigativa (Marisa Tomei), que está à procura de notícias retumbantes e já possui algumas informações indicativas para publicar no jornal em que trabalha, nada menos que o The New York Times. As primárias em Ohio correm um risco insustentável pelo fantasma da estagiária e o escândalo que se avizinha como iminente e devastador.
Clooney busca na política novamente a inspiração para seu novo filme, tendo um roteiro complexo baseado numa peça de Beau Willimon, mostra toda a parafernália dos bastidores de uma eleição para presidente dos EUA. É levada com muito dinheiro e mentira, como se vê na plataforma política de Morris, bem arquitetada pelo Partido Democrata, prometendo cursos universitários financiados por troca de trabalhos voluntários no setor público; uma energia limpa em uma década, através de investimentos em tecnologia; diplomacia máxima e urgente nas relações exteriores. Tudo soa falso e vazio, mas aos poucos vai virando uma contraditória verdade no discurso empolgado do carismático, bonitão e charmoso candidato, em sua busca obstinada pelo poder.
Tudo pelo Poder é um filme que aborda os ardis inescrupulosos, torna-se cético e tem uma forte consistência de personagens com diálogos equilibrados e às vezes chega na contundência, revertendo e mudando as expectativas que poderiam se encaminhar. O diretor não nega a influência do grande filme Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan Pakula, com Robert Redford e Dustin Hoffman, que culminou com a queda do ex-presidente dos EUA Richard Nixon, após o rumoroso escândalo político Watergate.
A película não é só uma reflexão ou crítica aos bastidores de uma campanha eleitoral para a presidência norte-americana, mas o paradoxo da mentira para fazer valer o ideal, como no episódio da suposta contratação de Stephen pelo oponente coordenador republicano e o envolvimento de seu próprio chefe. Muitos golpes baixos e deslizes de assessores numa campanha tumultuada pela falta do decoro, onde não há lugar para ingênuos e bonzinhos. O maquiavelismo está explícito onde “os fins justificam os meios”, parece ser copiado com maestria do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, criador do verdadeiro manual da política.
O filme se não é o melhor de Clooney, pois embora pareça ingênuo por mostrar o que se imagina como óbvio, cumpre seu papel objetivo de apresentar as falcatruas das abjetas coligações, o jogo da politicagem e a sujeira empurrada para debaixo do tapete, vender a alma para o diabo, os conflitos de lealdade e confiança, o questionamento da ética na vida pública de assessores e candidatos máximos. Fica a visão doentia dos homens públicos pelo poder e seus envolvimentos com situações escabrosas, dignas de maracutaias da melhor estirpe. A política sempre rendeu bons filmes e grandes tramas envolventes e Clooney não deixa de dar sua contribuição valiosa para esta temática milenar da politicagem e a posição de desilusão dos norte-americanos com seus dois partidos maiores, representados ultimamente por Bush e Obama.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
O Céu Sobre os Ombros
Vidas Desnorteadas
Mais um documentário brasileiro que faz sucesso entre o público aficionado em cinema é este instigante O Céu Sobre os Ombros vindo de Minas Gerais, em que aborda com dignidade o retrato das vidas perturbadas de três criaturas aparentemente exóticas na cidade de Belo Horizonte, com uma direção bem equilibrada, embora pessimista do mineiro Sérgio Borges. Foi vencedor do Festival de Brasília 2010 como Melhor Filme, Direção, Prêmio Especial do Júri aos Atores, Roteiro e Montagem. Também participou da Mostra do 7º. Festcine de 2011, em Goiânia.
O cineasta usa personagens reais para construir um filme que mescla ficção e documentário. Não utiliza um roteiro tradicional, dando margem para questionamentos sobre a clássica narrativa e a linguagem do cinema. Seu mérito maior é buscar personagens bem peculiares e fruto de uma pesquisa detalhada e consistente na capital mineira, que ele tão bem conhece em todos os meandros e as consequências das dificuldades impostas aos cidadãos menos favorecidos pelo destino.
Seu painel na trama é composto pelo transexual Everlyn Barbin, que se prostitui à noite e dá aulas como professora durante o dia, demonstra seu talento e grande conhecimento acerca da literatura, mencionando especialmente Freud e Foucault; já Edjucu “Lwei” Moio é um escritor marginal africano descendente de portugueses que nunca publicou seus livros e que passa os dias em casa se lamentando, vive dos parcos ganhos da esposa e uma ajudinha da mãe, tem a dor do pai que convive ao lado de um filho com deficiência mental e sonha ter o reconhecimento de seu trabalho ignorado; e por último, o atendente de telemarketing Murari Krishna é um fanático torcedor integrante de uma torcida organizada do Atlético Mineiro, skatista e adepto fervoroso do movimento Hare Krishna.
O longa-metragem tem como fator primordial ser híbrido, onde a ficção mistura-se com a realidade e os indivíduos vão passeando e apresentando suas diferenças e dificuldades pela tela, deixando registradas as aspirações de três personagens- que não são atores profissionais- mas que vivenciam o cotidiano de uma cidade caótica e fria com as pessoas. Até o ar que se respira não está adequado com o dia a dia dos transeuntes nas calçadas, parece ser denso e chocante, assim como a própria existência humana está pesada na sua rotina, a ponto de entortar e jogar para baixo os ombros sobrecarregados por uma carga psicológica imensurável.
A película mostra que embora cada um busque seu espaço com certo pessimismo, sem ter muita eloquência nos atos, fica expressa a vontade de serem amados e terem vidas úteis na sociedade. A força e a esperança nem sempre andam juntas neste documentário, mas os objetivos estão aliados. Os lugares escuros são como metáforas da vida e dos destinos mal iluminados daquelas criaturas perdidas na noite e em seus propósitos como ideais de vida e de futuro.
No filme o transexual é o personagem mais carismático e comove com seu drama íntimo, especialmente na cena em que faz a explanação clara sobre a cirurgia para troca de sexo. Mostra-se inteirado do problema e é sabedor da falta de prazer, caso venha concretizar seu sonho, optando em permanecer em seu “status quo”, ou seja, teria mais dissabores do que felicidade se levasse adiante seu desejo de mudança.
O Céu Sobre os Ombros é um bom documentário, sem ser deslumbrante, porém tem grandes qualidades narrativas, como o cenário sóbrio num digno lusco-fusco noturno. É uma satisfatória e bem equilibrada amostragem das criaturas afastadas do convívio social desejado e que vivem quase como zumbis, funcionam como elementos de protesto e insatisfação.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Leite e Ferro
Cotidiano das Presidiárias
Leite e Ferro é uma narrativa em formato de documentário das vidas de algumas detentas no Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa- CAHMP-, em São Paulo, no ano de 2007. O local foi fechado alguns meses após as filmagens e as 70 mulheres com seus respectivos filhos foram realocadas em centros hospitalares. Venceu nas categorias de melhor direção e documentário no Festival de Paulínia de 2010. A direção é da estreante Cláudia Priscila, formada em jornalismo, antes dirigiu os curtas Parachacal (2001), Sexo e Claustro (2005) e Phedra (2008), e recentemente, junto com Kiko Goifman, dirigiu seu segundo longa Olhe Para Mim de Novo (2011), vencedor do prêmio especial do júri para documentário no Festival do Rio.
A trama enfoca o período das presas na fase do aleitamento, onde as crianças têm menos de 6 meses, sendo que com esta tenra idade são retiradas do convívio materno e literalmente depositadas em instituições de menores, sem o acompanhamento ou visita das mães, que sequer podem optar ou indicar uma amiga ou parente próximo para ficar com a guarda. São encaminhadas à adoção de forma abrupta, como ficou bem frisado nos relatos. As presidiárias falam sobre tudo, inclusive sobre os motivos que as levaram até o cárcere e a maioria é por envolvimento com tráfico de drogas, discutem a violência da polícia, os desejos sexuais e a fidelidade para seus amores bandidos; outras se mostram religiosas e cantam músicas evangélicas positivas e tentam converter as colegas.
Cláudia Priscilla peca ao deixar a câmera à deriva para captar as imagens e em alguns momentos o longa fica solto demais, parecendo uma feira livre, onde todas as mulheres falam e pouco se entende, num som captado direto e de péssima qualidade, quase que inaudível. Outro equívoco da cineasta é a tomada excessiva de closes, excedendo o limite tolerável para um bom cinema, afastando-se da realidade e do núcleo da linguagem propriamente dita. A câmera passeia dezenas de vezes pelo mesmo corredor, do início ao fim, deslocando-se pelas portas, como a induzir e ilustrar a limpeza do chão e das aberturas no Centro. Fica a sensação de um ambiente de SPA, nem de longe lembra os terríveis e infectos presídios imundos do Brasil.
O tema é complexo, mas pela ótica distorcida da diretora não necessita de muita mudança, numa abordagem vazia de conteúdo, salvo algumas exceções, como o destino dos recém-nascidos após completarem os 6 meses. Impossível fazer qualquer comparação na temática, pois poderia parecer um sacrilégio, com o magistral Leonera (2008), de Pablo Trapero, um drama argentino contundente e viril, que esbofeteia os espectadores e atinge como um soco no estômago, perturbador e denunciante dos horrores do sistema penitenciário do país vizinho, numa cadeia específica para mães e grávidas sentenciadas. Um retrato quase documental de uma mulher em sua jornada para continuar vivendo dignamente na nova fase de sua vida e que muda sua maneira de encarar o mundo, de lidar com sua mãe, de reconhecer o amor. São lançadas reflexões sobre a Argentina, sobre a maternidade, sobre a forma como as coisas devem ser.
Mas pela visão perceptiva induzida em Leite e Ferro tudo estaria aparentemente bem e pouco deve ser mudado ou demonstrado como problema crônico, há inclusive uma prisioneira afirmando, sem ironia, que seu companheiro é partidário da prisão, pois a vida por lá é bem melhor, não há a necessidade de se preocupar com a alimentação, luz, água e habitação. Ou seja, estaria o conforto ao alcance das mães? Embora uma outra mulher mencione timidamente que o bom mesmo é estar livre e com o afeto da família.
O documentário é pouco elucidativo como crítica social e se perde nos diálogos excessivos e confusos por serem pueris, num tema instigante e que renderia mais se fosse bem explorado por um diretor mais ambicioso. Leite e Ferro ficou emperrado no discurso vazio e inconsequente, diante de uma profundidade rasa em que é abordado. Sucumbe com todas as pretensões para um filme de maiores amplitudes sobre a fase do aleitamento após darem à luz e a condição das presidiárias com seus filhos no cárcere.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
Walachai
Retrato da Colônia Alemã
Walachai é um documentário produzido no Rio Grande do Sul, numa abordagem com dignidade e extrema sensibilidade em uma comunidade descendente de alemães que vivem em Walachai, designação de lugar muito longínquo, encravado dentro de Morro Reuter, próximo de Novo Hamburgo e distante 70 Kms de Porto Alegre. Também foram feitas imagens em povoados vizinhos no mesmo município, tais como: Jammerthal, Batatenthal, Padre Eterno e Frankenthal.
Esta película tem na direção Rejane Zilles, em seu primeiro longa-metragem, que viveu lá toda sua infância, está radicada há mais de 20 anos Rio de Janeiro. Lança um olhar de reminiscência e ternura para seus conterrâneos que não gostam de ver televisão, ouvem preferencialmente rádio portátil de pilha; sem a interferência da internet e do celular. Nem o carteiro chega naquelas redondezas e seus habitantes desconhecem correspondência. Vivem num mundo solitário e isolado dos civilizados.
As crianças pensam em ser professores, lembrando dos seus mestres que lhes deram aulas e fica explícita a crítica ao governo de Getúlio Vargas que decretou, em meio a 2ª. Guerra Mundial, a abolição terminantemente do uso da língua alemã nas escolas, obrigando peremptoriamente o uso exclusivo do vernáculo português, sem uma transição gradual. Houve dificuldades de aprendizado e comunicação até mesmo entre os moradores que viviam aterrorizados com o estigma da proibição.
“Um pedaço do Brasil ainda desconhecido pelos próprios brasileiros”, assim a diretora define Walachai, que nada lembra o movimento, as cores e os sons de uma cidade grande. É mostrada a vida dos moradores, seus costumes e as peculiaridades, totalmente opostos aos da vida urbana bem próxima. São comunidades rurais isoladas, descendentes de imigrantes alemães que falam um antigo dialeto da região do Hunsrück, hoje raro na Alemanha, porém é a primeira língua de quem nasce em Walachai. É transmitida de geração para geração no dia a dia esta mescla de alemão com português, em que não é entendido nem pelos alemães e sequer pelos brasileiros. Muitos desconhecem a língua portuguesa e o próprio vernáculo germânico clássico.
Este é um singular painel de relatos contados pelos habitantes, em que pessoas humildes que tiveram muitas dificuldades no passado para superarem seus obstáculos, sendo que destes há de tudo um pouco. O mérito maior da cineasta é saber selecionar da galeria de depoimentos aqueles mais consistentes e emocionantes sob o ponto de vista humano e com força de um pensamento de esperança sem pieguices. Deixa as pessoas à vontade para cultuarem seu povoado e querem ali morrer, pois não se imaginam longe daquele vale de árvores e pássaros entrecortado por córregos. Falam da felicidade de serem autossustentáveis, pois plantam e trabalham para comer e se comunicarem entre eles e dormir com as portas abertas à noite e distante da civilização tecnológica.
Aborda com fidelidade os relatos de felicidades e recordações gostosas de seus entrevistados, como a mulher que toca o sino há mais de 40 anos; ou o casal que sorve o chimarrão à beira do fogão a lenha, que não conhece a Alemanha e pouco ouviu falar deste país; como o casal que tem uma dupla de bois de canga para produzir derivados de cana de açúcar; a família que produz fumo em rolo artesanalmente, de maneira bem primitiva. Todos tomam seu mate amargo nas suas casas bem pintadas com contrastes vermelho e azul, tendo nos jardins floridos a beleza e o cuidado da limpeza como marca registrada. Há os jogos de futebol com torneios nos finais de semana entre as comunidades vizinhas; mas nada se compara com os “kerbs” que duram três dias, onde se reúnem para dançar e comer, com muita música de bandinha típica, visando o encontro das famílias e os desimpedidos buscam seus novos amores, embora haja aqueles que preferem ficar solteiros a se mudarem para uma cidade próxima, como enfatizou uma jovem.
A diretora teve muita sensibilidade para se debruçar na temática dos colonos descendentes de alemães, até porque tem conhecimento de causa. Uma bela amostragem de estreia, numa abordagem antropológica sem estereótipos, demonstra uma cineasta promissora e já amadurecida neste relato em tom conficional, que refletiu com ternura e sutileza um dolorido tema sobre os futuros dos jovens, embora sem se afastar da eloquente felicidade dos adultos em suas terras sui-generis veneradas ao extremo, retratadas numa exuberante fotografia e com uma trilha sonora impecável assinada por Felipe Radicetti, incluindo composições de Vivaldi e Bach. Um documentário saboroso para ser lembrado por todas as gerações.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
A Pele que Habito
Insanidade Cruel
A genialidade no melhor estilo que consagrou Pedro Almodóvar agora está mais madura e perversa, com toda a frieza deste diretor neste fabuloso drama espanhol mesclado com suspense e horror em A Pele que Habito, adaptado livremente do livro Tarântula, de Thierry Jonquet. O longa contém um abismo de evidências traiçoeiras que levam para uma vingança marcada por equívocos, quando se busca justiçar pelas próprias mãos o suposto mal que bate com força na porta da vítima. Mas há fatores intrínsecos e extrínsecos que somente serão percebidos dentro de uma justiça plena num julgamento equânime, que não acontece e dá margem para uma revolta interior.
Seu filme anterior já fora maravilhoso e estimulante, tendo todo o brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009), que pagou sua dívida, pois estava devendo um grande filme. Ou seja, fez dois filmes, pois realizou um dentro do outro, com todo seu charme, elegância e irreverência, que lembrou o belo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), não pela semelhança, mas pela estética e pelos desdobramentos; assim como o notável Fale com Ela (2002). Acontece que desde o seu primeiro filme Pepi, Luci e Bom (1980), se estabeleceu um agente provocador; passando por Má Educação (2004); Volver (2006) sendo a ode máxima ao feminino; bem como nos demais Ata-me (1990); De Salto Alto (1991); Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).
O cineasta mostra todo seu poder de criação ao conduzir o longa como peças que vão se encaixando num jogo de xadrez bem estudado e magistralmente concatenado com o tempo, buscando nos flashbacks as respostas para os espectadores aturdidos e estonteados com a sucessão de acontecimentos que vão desfilando pela tela, numa trama que se delineia com mais verossimilhança nos momentos finais. Até o Brasil é citado numa cena na favela, em que cirurgião plástico teria alguma raiz, sendo entoada uma música em português pela filha do médico.
O diretor se debruça sobre a transexualidade com desenvoltura plena, resultando naquela criatura andrógina do laboratório, a mulher idealizada Vera advinda de Vicente (Elena Anaya- a belíssima que já atuou com Almodóvar em Fale com Ela e com Julio Medem em Lucía e o Sexo (2001) e Um Quarto em Roma (2009). É um experimento fantástico fruto da perda da razão e da consciência plena do médico cirurgião plástico Robert (Antônio Banderas- num papel contido e sem excessos histriônicos). Impossível deixar de ver a influência do filme Frankenstein (1910), de J. Searley Dawley, ou ainda da versão de 1931, dirigida por James Whale, todos adaptados do livro escrito em ritmo novelesco por Mary Shelley, onde o doutor Frankenstein retalhava e criava uma criatura monstruosa em um laboratório de ciências; ou ainda do longa O Abominável Dr. Phibes (1973), de Robert Fruest.
A trama tem amores reprimidos, traições e mortes violentas familiares, revelações e atitudes bizarras e cruéis. Há situações surpreendentes e inimagináveis, com todo estilo do cineasta se fazendo presente, como nas cores fortes mas harmônicas com predomínio do vermelho, listrados e xadrezes sem ser gritantes ou com agressão visual. Num estilo típico e revelador dentro de um cenário de estravagâncias com finesse e requinte almodovariano. É difícil dizer o que mais cativa no filme; se as interpretações como de Banderas no papel do médico ensandecido, ou de Marisa Parentes como a mãe cúmplice, ou se de Elena Anaya; do instigante roteiro macabro e suas vinganças; do cenário, em especial do laboratório tétrico num universo sombrio; da fotografia colorida e marcante; ou se tudo mesclado, com uma direção inventiva ao melhor estilo de Hitchcock com um preciso domínio de linguagem, abstraindo os preconceitos, deixando fluir as amarguras e tristezas familiares pelas imagens e atos se unindo com sutileza e clarividência. Há os grandes dramas pessoais absorvidos pelas fraquezas e as vicissitudes agonizadas pelo ser humano.
Almodóvar busca e atinge indiscutivelmente uma renovação com fôlego em A Pele que Habito, sendo incansável no seu método de abordar questões polêmicas. Tem toda uma lucidez magnífica aflorada na revolta da criatura desalmada metamorfoseada contra o criador. Ganha o cinema pela arte paradoxal da vingança com sabor de cereja, diante do terrível equívoco pelo ilusionismo do suposto estupro de uma inocente fobia social, estopim da barbárie e do patamar indigesto da loucura numa mente perturbada em um singular desfecho.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Digital
Corações Solitários
É da Argentina esta comédia romântica contemporânea Medianeras, com uma temática sobre a solidão na Buenos Aires na era do amor virtual, como bem sugere o subtítulo do primeiro longa-metragem dirigido por Gustavo Taretto, que abocanhou o prêmio de melhor filme latino, melhor diretor e prêmio do júri popular no 39º. Festival de Gramado deste ano, inserindo-se como um promissor cineasta, após deixar boa impressão na sua estreia atrás das câmeras.
Medianeras é um termo técnico usado na língua espanhola para definir a parte lateral de um prédio, sob o ponto de vista da arquitetura com seus pontos cegos sem aberturas. Este é o mote do filme que tem na trama Mariana (Pilar López Ayala- de bela interpretação) e Martin (Javier Drolas- pouco convincente), dois vizinhos que nunca se veem. Ambos estão sempre dedicados aos seus trabalhos e afazeres domésticos. Mariana é uma arquiteta que na realidade trabalha como vitrinista, na esperança de ser vista e observada como mulher e ser humano. Faz sexo com o manequim da loja; fuma muito; ingênua e sonhadora na busca do amor. Observa nos prédios de Buenos Aires muitos fios que acabam por isolá-la do mundo externo e da convivência com os seres terráqueos de forma paradoxal. Já Martin é um designer de sites na internet; sofre da doença do pânico e toma calmantes; pede tudo pela tele-entrega; se acha um Paulo Coelho depressivo; por ter um cão pequeno é confundido como gay.
Taretto busca na solidão de dois vizinhos que moram na mesma rua, mas não se conhecem, numa abordagem da solidão e do vazio existencial de duas criaturas jovens neste mundo da era virtual e moderna. A mesma solidão que tenta aproximar dois vizinhos pelo impasse da construção de uma janela, no longa argentino O Homem ao Lado (2009), de Mariano Cohn e Gastón Duprat, na reflexão magistral da privacidade e das relações em sociedade de duas famílias envolvidas pela complexidade dos seres humanos e pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores das vidas e das amizades. Mariana ao fazer a abertura para a construção de uma janela em Medianeras, está na realidade é buscando a aproximação com o próximo, e especialmente com o mundo exterior.
A solidão também é muito bem abordada no comovente filme portenho Chuva (2008), de Paula Hernández. Outro longa que serve de inspiração ao cineasta argentino é o estupendo Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, tendo dois personagens sozinhos o tempo todo, sofrendo com o fuso horário em Tóquio, não conseguem dormir e se encontram por acaso, no bar de um hotel de luxo, e em pouco tempo tornam-se grandes amigos. Mas nada se compara com o inesquecível filme sobre solidão no episódio Shaking Tokio, dentro do longa Tóquio (2008), dirigido pelo coreano Bong Joon-ho, num dos mais melancólicos e devastadores relatos de solidão humana contado no cinema, onde um rapaz está enclausurado em sua própria casa há mais de 10 anos, isolado do mundo e das pessoas, exceto quando recebe o entregador de pizzas. Conhece uma moça pela tele-entrega, num dia de terremoto que assola a cidade, que também ingressa no mundo claustrofóbico de distanciamento com o ser humano. A corrida louca do jovem pelas ruas completamente vazias se contrapõe com imagens coloridas e esquizofrênicas, ainda há tempo para um possível e enigmático relacionamento de uma paixão que por si só poderá romper com as amarras da doença contagiante das vidas solitárias e sem perspectivas numa cidade futurista e fria.
O cineasta segue com sua câmera filmando o contraponto do urbanismo com a intimidade solitária de seus seres, homenageando explicitamente Martin Handford, o criador britânico dos cartuns de Onde Está Wally?, que serve de cenário e de procura do ponto de partida de alguns personagens metaforicamente perdidos no universo da cidade cosmopolita e empresta o nome ao rapaz solitário da comédia. Nem Woody Allen fica de fora da homenagem velada às suas criaturas sofridas e sozinhas dentro do mundo.
O diretor observa atentamente o crescimento desordenado da sua cidade e da população de sua época, completamente envolvida num emaranhado de fios advindos do progresso, neste bom filme engraçado e dolorido que tem o encontro inusitado, como não poderia deixar de ser, acaba por parar no You Tube. Sem antes se debruçar no nadador compulsivo e na mocinha que carrega os cães para passearem, ou ainda no colega que convida Mariana para jantar no 20º. andar, vitimada pela fobia dos espaços fechados, numa reflexão dos indivíduos que estão bem próximos de cada um de nós.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
O Palhaço
Riso Tristonho
Encerrada a grandiosa 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo, com ótimos e inesquecíveis filmes já analisados, voltamos à realidade porto-alegrense. Para começar já temos O Palhaço, segundo longa-metragem de Selton Mello que mostrou todo seu talento e sua criatividade na excelente estreia com Feliz Natal (2008), em que se debruçava sobre as relações familiares corroídas pelo tempo e o balanço da vida do personagem principal, na busca de reencontrar-se para o mundo.
Mello agora entra no drama circense de personagens que buscam pelo interior do Brasil suas glórias e a maneira de sobreviver. Seu estilo é muito semelhante na forma buscada na galeria de figuras bizarras e a peregrinação pelas estradas poeirentas, como vistas no notável Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, que tinha no roteiro três artistas mambembes cruzando o país, fazendo espetáculos para o setor mais humilde da população brasileira e que ainda não tem acesso à televisão. Recentemente vimos um filme que tratava sobre o circo, oriundo da Espanha o irregular Balada do Amor e do Ódio (Balada Triste de Trompeta- título original-2010), de Álex de la Iglesia, uma comédia que abordava o período do franquismo, sob a ótica conflitada de dois palhaços.
O Palhaço é uma película que aborda os bastidores dos personagens no circo e a difícil arte de fazer rir, através de Benjamin, que usa o codinome Pangaré (Selton Mello- em irrepreensível atuação), numa bonita homenagem ao palhaço negro Benjamin de Oliveira, falecido em 1954. O relacionamento é marcante entre o filho Pangaré com o pai (Paulo José- em ótima performance), dono do circo, que vai levando sua trupe mambembe para o interiorzão brasileiro e descobrindo algumas caricaturas humanas. Há algumas criações de personagens bem interessantes como os irmãos mecânicos (Tonico Pereira) nas suas idiossincrasias familiares; o delegado Justo (Moacyr Franco) na verdade um corrupto mais apaixonado pelo seu gato do que qualquer outra coisa; o prefeito que força a entrada do filho no circo para declamar versinhos decorados em sua ridícula homenagem; a moça do Aldo Auto Peças que apronta para o coitado do palhacinho; o fazendeiro Juca Bigode (Jackson Antunes) que fica celebrizado com sua frase de efeito: “O gato bebe leite, o rato come queijo e eu faço o que sei”, adaptado depois por Pangaré para “…e eu sou palhaço”; também marcaram passagens de personagens esquisitos com seus maneirismos típicos criados por Ferrugem, Thogun e Jorge Loredo.
O filme tem fartos subsídios, mas peca pela falta de uma eloquência mais inventiva, fica um gosto déjà vu, como da obra inspiradora de A Estrada da Vida (1954), de Federico Fellini, pois Mello não consegue se libertar para impor e obter o mesmo clímax e forma estrutural de filmagem como atingiu no elogiado Feliz Natal. Não lhe falta comando de direção, muito antes pelo contrário, há um digno bom roteiro com fidelidade ao drama, mas não deslancha, pois é truncado, como pelos constantes olhares de Pangaré para o distante horizonte, muitas vezes perdidos e procurando algo filosófico para se ancorar. Por vezes deixa se levar por um ritmo inadequado, com sequências vazias de conteúdo. O Palhaço é a tentativa de buscar o riso no circo A Esperança, nome bem sugestivo desta caravana de atores circenses de uma produção mambembe, de poucos recursos que ainda sofre furtos de uma colega de trabalho, o assédio de um policial para obter ingressos gratuitos, diante da falta do alvará de licença e o desgaste do cansaço imposto pela rotina.
É um filme que tem um ar melancólico e saudosista dos velhos palhaços. Há os sorrisos marotos das plateias por onde passa aquele grupo de comediantes, quase que constrangedor e tristonhos em algumas situações. Poderia ter alcançado, assim mesmo, um padrão melhor, tendo obtido apenas um resultado razoável, embora tivesse tudo para arrasar. Faltou alguma coisa, o algo mais dos palhaços fellinianos ou de Chaplin, embora a homenagem aos artistas circenses desiludidos fosse relevante e interessante sob o ponto de vista emocional.
sábado, 29 de outubro de 2011
Mostra de Cinema São Paulo (A Casa)
A Casa
A Eslováquia dá sua contribuição valiosa nesta 35ª Mostra de Cinema de São Paulo com A Casa, primeiro longa-metragem para o cinema da diretora eslovaca Zuzana Liová, que antes realizou dois curtas e um filme para a TV. Inova e mostra todo seu vigor, demonstrando ter talento para continuar a realizar outras obras iguais e até melhores do que esta bela surpresa alegórica. Há que se ressaltar a bela fotografia buscada num cenário adequado para uma proposta tão vigorosa.
Tem na trama a construção pelo pai de duas casas para as suas filhas, uma maior e outra ainda menor de idade. Imrich é um homem tosco, extremamente disciplinador, de uma rudeza incivilizada, religioso de carteirinha, guarda para si seus sérios problemas de saúde, porém busca a perfeição no reino familiar. Apesar de tudo tem um bom coração e sua esposa é submissa, sempre na busca da pacificação para evitar maiores conflitos.
A filha mais velha Jana ao ficar grávida é expulsa do lar e sua casa em construção fica paralisada. Logo aparece com três filhos e a situação se complica por problemas financeiros com o marido, falta de pagamento do aluguel e os constantes conflitos familiares aparentemente insolúveis. A coisa não anda e vai de mal a pior. Com a filha menor Laura que toca piano na igreja, ajuda na construção de sua casinha, um sonho de infância que aos poucos vai se dissipando, pois agora pretende é ir mesmo para a Inglaterra fazer intercâmbio cultural. Está prestes a se formar na faculdade, envolve-se por acaso com seu professor, um amor proibido pelas circunstâncias civis do mestre. Diga-se de passagem, um enrolador e tanto.
O filme parece ser uma tempestade que desabou no seio de uma família pacata e acomodada numa cidadezinha interiorana, mas não é só isso, pois no bojo da proposta está a alegoria da abertura democrática da divisão com a República Tcheca. Há a visita a Praga de Laura com seu amor proibido, ao passar uma noite espetacular e perfeita, sobrando muita alegria na realização de um contagiante pré-sonho. Ou seja, viajar para qualquer lugar e libertar-se das amarras do pai protetor e sem perspectiva. É a premissa de uma antevisão de seu futuro desejado.
A figura patética do pai é a metáfora da redenção e da abertura de um país fechado hermeticamente, advindo da divisão em dois e a emancipação de ambos, tal qual Laura procura com ardor sua liberdade para viver plenamente sua juventude e suas aspirações profissionais. Se Jana é a filha rebelde que realizou parte de seus propósitos idealizados, mas no final demonstra aptidão para a reconstrução paterna que simboliza um país se reencontrando com seus filhos, simbolizados pela família e na continuação da obra da casa.
Uma magnífica película alegórica, onde uma casa serve como símbolo metafórico para um notável exercício instigante de conclusão e redenção de seus filhos, amparados por uma sequência de personagens que evoluem de uma base familiar para o topo, sendo construídos artesanalmente com a dignidade de um grande filme europeu.
Mostra de Cinema São Paulo (Dance Town)
Dance Town
Vem da Coreia do Sul este significativo drama social mesclado com política em Dance Town, com direção segura e precisa de Jeon Kyu-hwan. Já dirigiu Mozart Town ((2008) e Animal Town (2010), sendo que agora completou sua trilogia bem emblemática entre as relações dos povos, da política e da cultura entre as duas Coreias divididas, como ocorrera com as Alemanhas no passado.
Agora com o fechamento do ciclo, tendo no trunfo o mote em Jung-Nim, que se vê obrigada a fugir de seu país Coreia do Norte e exilar-se na Coreia do Sul, pelo fato pitoresco e banal de ter assistido uma fita pornográfica na sua casa com o marido. Tentam fugir, mas somente ela obteve sucesso e o esposo foi preso e sua situação se complica completamente, pois na Coreia do Norte é crime tentar fugir ou ajudar terceiros para outro país, especialmente para o Sul.
O diretor tem um olhar crítico também da Coreia do Sul, pois a refugiada é apenas um pano de fundo para abordar com eficiência os problemas que ocorrem no capitalismo, sendo frequentes os abortos clandestinos, alcoolismo entre jovens e idosos, a inconformidade com os baixos salários e os desníveis sociais. Kyu-hwan questiona com pertinência do por quê apenas uns vivem em melhores condições em detrimento de outros que dão duro e ralam para sobreviverem. Há a comprovada marginalização de muitas pessoas, levando ao crime de pequenos furtos, como na cena da bolsa de Jung-Nim jogada na sarjeta.
O diretor fixa-se especialmente nos bêbados inveterados que perturbam o trânsito, ou saem dos restaurantes e vão para os karaokês beberem até cair. O trabalho ingrato e cansativo na lavanderia destinado à fugitiva, que é vigiada por câmeras, sob a suspeita de ser uma espiã. Sai exausta da engrenagem de lavar, passar e secar. As atribulações da vida encontradas pela norte-coreana têm suas compensações positivas como a liberdade de expressão, o trabalho digno com contraprestação salarial e até a experiênca afetiva no envolvimento com um policial elegante e boa-pinta. Sem nunca esquecer é claro o marido que ficou para trás, pois lhe soa como um pesadelo diário com remorsos e arrependimentos.
Eis um bom longa-metragem que não invoca o conservadorismo e sequer é moralista, embora a culpa seja uma companhia permanente, mas a vida continua com suas tropelias e divisões entre irmãos da mesma raça, por decorrência dos governantes. O que vem acontecer são as consequências nefastas de um regime ditatorial fechado e hermético que pune seus filhos que ousam buscar a liberdade.
O mérito do cineasta é não fazer a ode do capitalismo instalado na Coreia do Sul com o apoio dos EUA, como bem demonstrado nas cenas do americano que por lá se alojou definitivamente. Fica flagrante que nem tudo é tão maravilhoso como se divulga, embora no Norte governado pelos comunistas inexiste igualdade e reivindicação, sendo a ditadura ferrenha e imperdoável para os supostos “traidores” que pretendem evadir-se. O filme se debruça com eficiência sobre o choque cultural que se estabelece com a chegada da norte-coreana desacostumada com uma vida tão versátil, tendo as mulheres total liberdade para enfrentarem os homens no mesmo grau de igualdade, com direitos e deveres assegurados pela democracia.
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Mostra de Cinema São Paulo (As Canções)
As Canções
O veterano Eduardo Coutinho está presente novamente com seu singular painel de relatos contados pela boca de personagens do povo. Geralmente são pessoas humildes que tiveram muitas dificuldades no passado para superarem seus obstáculos, sendo que destes há de tudo um pouco, da grande paixão arrebatadora e inesquecível até o ladrão do morro que viveu com traficantes e todo o tipo de marginais.
O mérito maior do Coutinho é saber selecionar da série de depoimentos aqueles mais consistentes e emocionantes sob o ponto de vista humano e com força de um pensamento positivo de esperança. Sem ser piegas ou ufanista, longe disso, pois sabe controlar e dar o tom na entrevista. É um emérito perguntador, deixando as pessoas à vontade para falarem algo interessante ou até mesmo grandes besteiras.
Este seu último documentário tem muito de sua obra-prima Edifício Master (2002), onde sete dias uma equipe de cinema filmou o cotidiano dos moradores de um prédio condominial, situado em Copacabana, com 276 apartamentos conjugados, onde moravam cerca de 500 pessoas, foram entrevistados 37 moradores, com um resultado fabuloso de histórias íntimas e reveladoras. De sua filmografia de mais de dez filmes temos o memorável Jogo de Cena (2007), um achado que mescla realidade e ficção.
As Canções aborda com fidelidade as angústias e tristezas mescladas com os amores fundidos em felicidades e recordações amargas ou deliciosas de seus entrevistados. Se em Edifício Master não sai da memória o morador que ria e chorava ao cantar a música My Way, de Frank Sinatra, numa cena encantadora e humanística. Não dá para esquecer agora Queimado, um morador negro do morro, cabelo escovinha, que confessa roubos e depois se converte num apaixonado de Jesus, criando vários filhos com a mulher de sua vida; ou o comandante aposentado com seu pensamento conservador, mas muito engraçado como diz as frases; ou na personagem que guarda as cartas de seu grande amor; mas tem aquela senhora de cabelos brancos que daria sua última gota de sangue para salvar o marido que sempre amou e a fez feliz; e o rapaz de religião batista que se emociona ao falar da música da mãe que cantava na cozinha; tem a simpática negra de 82 anos, mas parece ter 60; e a deficiente que cantava a música “dó, ré, mi”, da manhã à noite com o marido, agora canta com o filho, numa verdadeira overdose diária.
Coutinho é hábil e extrai o substrato de cada entrevistado, fazendo-os cantarolar suas canções preferidas e inesquecíveis, predominando as canções de Roberto Carlos, outras foram compostas pelos protagonsitas. São homens machistas na maioria e mulheres submissas que se soltam numa cadeira preta em um palco de um teatro, tendo no fundo a cortina que se abre e fecha para os protagonistas.
Sobra muita emoção contida como se fosse uma sessão de terapia, onde o psicanalista é o diretor com seu jeito de paizão. Coutinho sabe ouvir os amores e as tristezas relatadas com detalhes. Tanto nas mortes lembradas como nas grandes paixões cultivadas e expressadas com dor, cada um deles tem sua canção preferida que é interpretada do fundo do coração, pois suas vidas foram marcadas por elas.
Um excelente documentário saboroso para ser lembrado e sorvido, com uma grande dose reflexiva para ser memorizada. Sobram problemas neste universo de vidas conflitadas e amargas, porém sem perder a luz da esperança que soa junto com as gostosas canções entoadas.
Mostra de Cinema São Paulo (Irmãs jamais)
Irmãs Jamais
Marco Bellocchio arrasou em Vincere (2009), um filme que tinha todos os ingredientes das relações familiares, na controvertida vida de Benito Mussolini, dividido entre o poder, mulher e um filho que nasceu, foi reconhecido, e em seguida renegado. É uma página negra da história da Itália, ignorada na biografia oficial do Duce. Outro grande filme de Bellocchio foi Bom Dia Noite (2003), que narra a história do Primeiro Ministro da Itália Aldo Moro, em 1978, sequestrado e morto pelo grupo extremista Brigada Vermelha. Mas antes ainda filmou o notável Em Nome do Pai (1971), contando a história de um atentado a bomba do IRA que mata cinco pessoas num pub, em 1974, com os julgamentos equivocado dos acusados: um jovem rebelde, seu pai e três amigos.
Agora quando se esperava um filme ainda maior, surge esta produção bem menor e longe das qualidades do diretor que todos conhecem e se sabe de suas aptidões diferenciadas. Irmãs Jamais é uma obra vazia de conteúdo, no período de 1999 a 2008, com uma precária direção, ficou devendo em técnica de segurança, ritmo e profundidade, apesar de tentar equivocamente passar para os espectadores uma proposta de lembranças do passado para alicerçar um presente.
A trama tem duas tias velhinhas que perderam a irmã, mãe dos jovens que retornam à pequena cidade rural chamada Bobbio, que nunca teve uma celebridade ali nascida, segundo informa um protagonista. Um dos sobrinhos busca empréstimo bancário com aval das titias para se livrar dos credores que estão à sua procura; já sua irmã deixa a filha menor, sob os cuidados das anciãs e de seu irmão, para tentar a carreira de atriz de teatro. As tias anciãs aceitam qualquer coisa, menos chegar atrasadas para assistirem a ópera Il Trovatore, num dos raros momentos de lucidez e beleza da película. Antes houve o som de algumas notas musicais regionais da cidade natal da família. Mas os irmãos buscam estabilidade financeira e profissional em suas vidas e abafam as peculiaridades pitorescas de Bobbio, mal explorada e pouco convincente no que conseguiu mostrar.
Nem mesmo o acontecimento teoricamente inusitado do afogamento, nas filmagens realizadas pelo irmão; o surgimento de uma garota do passado com promessas de amor ou a tentativa de venda da propriedade das titias conseguem salvar a película da beira da chatice. Tudo muito vago numa indolência enorme, tornando-se gratuitas as cenas inseridas sem uma continuidade e uma melhor elaboração. Bellocchio deixa o filme andar como um barco sem timoneiro. Filmou mais à noite com uma fotografia discutível e de má qualidade, esteticamente depreciativa e tudo muito escuro e sem graça. Deveria ver como se faz ma filmagem à noite com o diretor Nuri Bilge Ceylan, do extraordinário Era Uma Vez na Anatólia (2010), um dos destaques desta Mostra de Cinema de São Paulo.
Este é um filme biográfico e feito para toda família Bellocchio se divertir e brincar de fazer cinema. Não é à toa que nos créditos só dá os parentes de todos os graus. Faltou lucidez e criatividade nas situações de relacionamento familiar soltas no roteiro, sem construção adequada dos personagens, com diálogos frouxos e inconsistentes, foram a tona deste equivocado longa que não consegue manter-se num ritmo de emoção harmonizado com os problemas inerentes de uma família. Ficou no meio do caminho entre documentário e drama intimista de nostalgia. O resultado foi nenhuma coisa e nem outra.
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
Mostra de Cinema São Paulo (Veneza)
Veneza
Um filme vindo da Polônia sempre é bom conferir de perto, pois os resultados quase sempre são satisfatórios e dificilmente frustram. Foi o que aconteceu com Veneza, um drama de guerra mesclado com fábula moderna adulta, num resultado simplesmente fabuloso. A direção foi do surpreendente Jan Jakumb Kolski. É dele também os outros dois longas-metragens Grajacy z Talerza (1995) e Pornografia (2003). O cineasta brilha neste magnífico Veneza, entrando para o clube dos cineastas críticos ferrenhos do morticínio da 2ª. Guerra Mundial, onde estiveram envolvidos regionalmente os países da Polônia, Itália, Alemanha e a Rússia. Evidentemente que o viés é polonês, mas as consequências para seu país que foi invadido foram as piores possíveis.
Recentemente veio o extraordinário Katyn (2007), filme polonês de Andrzej Wajda, numa antológica reflexão também sobre a 2ª. Guerra Mundial, em que são mostradas as atrocidades contra seu povo na invasão da Rússia em 1939, quando estava aliada ao governo nazista da Alemanha. Há o lamentável massacre dos polacos nas florestas daquela cidade. Morreram 15.000 prisioneiros de guerra poloneses, embora haja informações extraoficiais de 25.000. Essas atrocidades bárbaras foram comandadas pela polícia secreta soviética.
Veneza surpreende e encanta o espectador pelo seu roteiro em forma de guerra como fábula moderna como visto no longa Terra Sonâmbula (2009), dirigido pela brasileira, radicada em Moçambique, Teresa Prata. São abordados os caminhos de um simbólico ônibus ardendo em chamas numa estrada perdida, tendo na escavação pelas próprias mãos de um menino o milagre de brotar água por enxurradas, levando para o mar e purificando aquele país miserável de perdidos num mundo sem segurança. Finalizando com o ônibus boiando num rio imaginário até o navio que se encontra aquela mãe aprisionada nos diários da revolução civil. Kolski tem no garoto Marek de 11 anos seu sonhador, que só pensa em ir para Veneza e passar o carnaval dentro das gôndolas ouvindo piano e violino. Mas novamente a guerra entra na vida de uma criança e estraga as fantasias infantis com seu poder bélico ultrajante e arrebatador da desconstrução familiar, repleta de mortes absurdas e abjetas, sem o menor sentido da existência humana. O garoto acaba parando na casa antiga e obsoleta de uma tia no interior da Polônia, ao invés de ir para a mítica cidade italiana tão sonhada. Reencontra lá suas primas e o irmão que vai posteriormente, bem como outras tias e a avó sempre calada, num espécie de refúgio das artilharias dos inimigos invasores, mas que logo aparecerão para humilhar e mostrar seu poder de força dominante ocupacional.
Kolski faz lembrar voluntária ou involuntariamente o filme Terra Trêmula, quando dá vazão ao seu instinto criança e deixa o roteiro abrir uma fenda no porão da casa e inundá-la. Ali se estabelece a tão sonhada versão de Veneza para Marek. As tias realizam o sonho do sobrinho e tocam piano, usam máscaras no carnaval veneziano, há o violino do coleguinha vizinho, tragicamente desaparecido depois. As mortes se sucedem pela guerra sem escrúpulos, mas Marek quer mesmo é que a mãe lhe ame tanto quanto o irmão e seja mais presente, pois o pai foi lutar e dificilmente voltará.
Um libelo contra a guerra neste singular filme da Polônia em que o cineasta coloca sutilmente, ao som de um piano melancólico, a derradeira cena dos horrores repugnantes de uma carnificina. Eis um longa-metragem imperdível que irá para a cinematografia desta revelação como diretor antibelicista, que com toda sua classe e visão crítica de seu povo, realiza esta mini obra-prima cinematográfica. Insere-se como um dos melhores filmes da 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.
Mostra de Cinema São Paulo (Gromozeka)
Gromozeka
A Rússia está representada na 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo por uma de suas apostas com o insuficiente Gromozeka, com direção de Vladimir Kott, que tem na filmografia uma produção para a televisão The Silver Samurai (2006) e o longa Mukha (2008), além do curta The Door (2004). Kott erra feio nesta produção tida como promissora, ao abordar nesta trama interessante até certo ponto como em retratar os dramas sociais de três amigos integrantes de uma banda de rock, tocando músicas positivas e alvissareiras, dando esperança de vida para o amanhã, sob as belas imagens das frequentes nevascas.
Um tema instigante e sempre interessante como dos personagens entrelaçarem-se em alguns momentos do drama, por circunstâncias meramente pelo acaso profissional num artifício bem explorado e batido nos roteiros atuais dos bons filmes. Mas falta o ritmo e o clímax em quase todas as cenas, onde o artificialismo vai se encaixando até o final, numa quebra de ritmo sequencial terrível para quem esperava algo bem melhor. A trama é constituída de três senhores cinquentões, com diversos problemas profissionais e particulares, onde o estresse está sempre presente. Um policial vive seu dilema com seu filho adulto que não quer nada com trabalho fixo e muito menos trabalhar junto com o pai. Prefere fazer freelances em serviços escusos. Tem ainda o conflito com sua mulher que está apaixonada por outro homem e todo muito sabe.
O segundo personagem é um taxista que não suporta ver a filha única atuar como atriz pornô e vai até as últimas conseqüências, adotando uma solução escabrosa; já o último do trio é um médico com uma doença grave e insolúvel, mas além de tudo está dividido entre o amor da esposa oftalmologista com o da amante radiologista. Apesar de que o apoio do colo e do braço amigo virá de um travesti, que o acalenta no pior momento de sua vida, num raro momento de lucidez do filme.
Porém o diretor jogou fora um tema que já foi abordado pelo cinema com ótimos resultados, como Meus Caros Amigos (1975) e O Quinteto Irreverente (1983), ambos de Mario Monicelli, enfocando o passado e presente na vida dos amigos: um conde falido, um arquiteto, um dono de um restaurante, um cirurgião e o amigo morto, fora um editor de jornal. Outro notável filme sobre amizade foi Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), de Ettore Scola, numa homenagem a Fellini, o filme mostra 30 anos na história da Itália (1945-1975) e o reencontro de três grandes amigos, que não se viam desde o fim da Guerra.
O roteiro leva para um desenlace fatídico e desanda de vez do meio para o final da película, com uma proposta eminentemente conservadora. O diretor detona sua obra que tinha tudo para dar certo, diante de uma proposta boa como o tema do reencontro de amigos para tocarem numa banda. Totalmente mal aproveitada ao começar a punir os pseudosulpados, num evidente e claro falso moralismo barato e a preservação da família unida a qualquer preço, nem que para isso tenha que se infringir a legitimidade da escolha. Um final melancólico e frustrante para um filme que torna-se descartável.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Mostra de Cinema São Paulo (Era Uma Vez na Anatólia)
Era Uma Vez na Anatólia
Um filme de 157 minutos pode assustar no primeiro momento, mas Era Uma Vez na Anatólia flui e anda como num média-metragem de uma hora no máximo. Vem da Turquia o premiado longa vencedor do Grande Prêmio do Júri de Cannes deste ano, com a direção brilhante do consagrado Nuri Bilge Ceylan. É dele também os premiados em Cannes Uzak (2002), Climas (2006) e o inesquecível Três Macacos (2008).
Ceylan arrasa nesta estupenda película, solidificando-se como um cineasta preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia está presente e emperrando o desenvolvimento. O caos instala-se nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário ultrapassado e completamente inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas. O que mais surpreende e encanta o espectador é o roteiro enxuto desta mescla de filme policial noir com drama social. Não fica pedra sobre pedra, nesta trama que tem como partida uma aparente e singela investigação policial de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia. Nada funciona, a começar pelos carros corroídos pelo tempo e completamente ultrapassados, tendo inclusive que ser um deles empurrado pelos passageiros em serviço.
A enorme comitiva dos três veículos tem um médico legista (Muhammet Uzuner- em impecável atuação); o promotor que se acha parecido com Clark Gable, símbolo do estrelismo; um delegado estressado e com sérios problemas com a mulher que lhe cobra insistentemente para comprar os remédios do filho (Yilmaz Erdogan); um secretário para elaborar o relatório minucioso; dois escavadores munidos de pás implacáveis; um sargento preocupado com a exatidão das metragens e a jurisdição correta das aldeias; os motoristas; dois suspeitos do crime, sendo o principal acusado (Taner Birsel), numa bela construção de crápula arrependido.
O diretor conduz com uma técnica perfeita o filme, de um rigor formal invejável, com closes nos rostos para mostrar os sentimentos dos personagens envolvidos nesta desastrada empreitada. Corrompidos pelo pessimismo do futuro de seu país. Há os longos planos sequenciais das longínquas estradas monótonas e estreitas que somem e reaparecem instantaneamente. Um acerto estético elogiável e fabuloso para um desenrolar com poucas elipses. Elogiáveis as cenas deslumbrantes rodadas na madrugada, apenas iluminadas pelos faróis dos três carros e relâmpagos de tempestades que se avizinha, criando um sugestivo cenário de dificuldades, naquela fantástica paisagem de colinas, que lembra o filme Gosto de Cereja (1997), do iraniano Abbas Kiarostami. São reveladoras as subidas e descidas dos veículos pelas sinuosas estradas com os suspeitos à tiracolo.
São memoráveis as atrapalhadas investigativas de poucos recursos técnicos, que necessitam de uma ajuda fortuita do cão da vítima, para elucidar o local onde está enterrado o corpo tão procurado. O médico resiste até o final, mas as condições que lhe são apresentadas são deploráveis para desenvolver um trabalho digno. Sucumbe pelo desânimo, soçobrando seu profissionalismo sempre eficiente no epilogo.
Um extraordinário filme que se inscreve como um dos melhores da 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, tanto pela denúncia da corrupção como da liberação de verbas desnecessárias para o amigo do promotor. É falência espetacular de toda conjuntura estrutural de um sistema podre e decadente, sem recursos financeiros para um hospital que está caindo aos pedaços. A morte da vitima é uma alegoria para a destruição de todos os setores e organismos das células de um a sociedade hipócrita.
Mostra de Cinema São Paulo (Hanezu)
Hanezu
O longa-metragem Hanezu trata fundamentalmente dos primórdios da civilização japonesa, onde as escavações existentes estão à procura de uma amostragem fiel da história deste povo. Os três montes em disputa na região de Azuka como é relatado na película demonstram o conflito secular, ou como é informado, desde os tempos dos deuses há a batalha dos homens pelas mulheres, enfatizado várias vezes para ficar celebrizado. Uma arqueologia que busca significados e razões existenciais.
A metáfora do pássaro engaiolado sem procriar, enquanto os livres estão reproduzindo e felizes, diante do quadro de dor da jovem que recém abortou, presa aos seus dogmas de vida. O aborto é o símbolo da rejeição à criança que não é bem-vinda. O conflito com o namorado e pai do feto é interessante, pois ao mesmo tempo soa em seus ouvidos a disputa dos homens e suas propostas diferentes, tal qual está vivenciando, pois está conflitada no momento de escolha, dúvida e dor.
Mas a película tem grandes momentos marcantes, como a presença constante dos espíritos em diversas cenas, simbolizadas pelo soldado que morre ao ir para a guerra e faz contato direto com belos diálogos elucidativos com seu filho na floresta e o neto na estrada. As presenças são normais e não constrange. Tudo é muito natural e não há histeria ou medo, pois são recepcionados com amor e prazer. É dedicado explicitamente nas legendas aos espíritos que pululam os montes das escavações, símbolo da austeridade e das disputas ancestrais. Os sussuros se fazem presentes nos insetos e inundam os nossos controles auditivos de percepção.
O longa traz no seu bojo um enorme e magnífico sentimento de gratidão aos mortos do passado e encanta pelo seu grau elevado do sensorial aguçado. Uma proposta corajosa de mostrar o transcendental e o espiritual como naturalidade. Lembra o recente filme Tio Boonmie, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), de Apichatpong Weerasethakul, que se atrapalhou nos equívocos de roteiro, embora tenha o bizarro longa da Tailândia vencido o Festival de Cannes daquele ano.
Mas em Hanezu o sensorial está presente de forma harmônica, singela e bela num perfeito casamento com a espiritualidade que transcende os padrões dogmáticos de comportamentos regrados pelo conservadorismo exacerbado. Há vida e sentimento de amor e prazer nas frondosas árvores das florestas, nas águas dos córregos e rios, na terra em sua imensidão, no acasalamento dos pássaros e o nascimento dos filhotes. Contrario sensu do reino animal, há a morte induzida de uma vida humana que ficou no meio do caminho.
A diretora Naomi Kawase tem em sua filmografia os longas-metragens Shara (2000), Birth/Mother (2006) e A Floresta dos Lamentos (2007). É muito cuidadosa e artesanal na condução da trama, embora com uma leveza documental, faz o espectador mergulhar e ficar inebriado pelas sensações saborosas tiradas da natureza. Não hesita em misturar aborto com nascimento, rejeição com amor entre seres de espécies diferentes.
Vida e morte estão presentes como essência dos animais racionais e irracionais. A natureza está em tudo, nos melhores e piores momentos da humanidade e em todos do reino animal. Ou dando significado aos mortais numa contingência natural das coisas, ou elementos do mesmo universo, como atores da vida e sua existência do mundo. Um choque do presente e do passado. Eis um saboroso filme para ser degustado e sorvido, com uma boa dose reflexiva após o apagar das luzes da tela.
terça-feira, 25 de outubro de 2011
Mostra de Cinema São Paulo (O Garoto da Bicicleta)
O Garoto da Bicicleta
Os cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, mais conhecidos como os irmãos Dardenne, tratam o novo filme com mais delicadeza e menos rudeza, embora sem perderem o foco e o cerne da questão. Os personagens geralmente parecem moribundos numa Bélgica que se esqueceu das classes menos abastadas. Filhos e pais estão em confronto de relacionamento permanente, decorrente das mazelas de uma sociedade que virou as costas para uma classe menos protegida, que busca nas drogas suas realizações pessoais e profissionais. Como também os pequenos furtos para sobreviverem são marcas registradas da dupla belga em seus filmes de excluídos que vagam pelas ruas.
O rigor profundo de uma estética que aborda com virilidade e violência são novamente reafirmações dos longas anteriores, tais como: Rosetta (1999) grande vencedor de Cannes daquele ano, O Filho (2002), A Criança (2005) também vencedor do Palma de Ouro e O Silêncio de Lorna (2008), para muitos o melhor de sua notável filmografia, na extraordinária abordagem de drogadição e gravidez psicológica. O Garoto da Bicicleta tem por tema um menino de 12 anos, que busca desesperadamente encontrar seu pai que o abandonou há um mês num orfanato. Cyril (Thomas Doret) não é nada dócil, tem um comportamento com sérios desvios de conduta, torna-se agressivo ao ser rejeitado definitivamente pelo pai ausente, que só quer se livrar dele e reconstruir com outra mulher uma nova família.
Cyril encarna o protótipo do estorvo e da incomodação ambulante, mas tem sorte e é adotado temporariamente pela cabeleireira Samantha (Cécile de France- de muito boa atuação, harmonizada com sua beleza encantadora. Estrelou em Irène (2002) e Além da Vida (2009). Nem mesmo o amor da adotante para acalmar a raiva do garoto é suficiente e sua vida vira de pernas para o ar, perdendo até o namorado. É o filme mais leve dos Irmãos Dardenne, onde a esperança está presente num roteiro que não afasta o otimismo de um futuro que poderá ser melhor. Mas para se chegar até lá, há uma relação tumultuada e conturbada de dois seres que estão numa busca incessante da felicidade. Não faltam momentos altos, seguidos de deslizes frequentes e perturbadores da serenidade.
O abandono paternal é a grande causa proposta na película, deixando como consequência a cooptação na rua pelos marginais e traficantes que rondam uma presa fácil de ser fisgada. A raiva e a insubordinação aliadas à falta de pulso e limites da mãe adotiva são questionadas e colocadas em xeque para serem debatidas amplamente. O longa não é um filme tão formal como os anteriores, mas ainda assim abocanhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes deste ano. Mesmo que chamado de alegrinho e mais livre, não foge da temática e sua reflexão é profunda, deixando o rigorismo desta vez de fora, mais comedido e relativamente clássico, porém sem se afastar de seu histórico coerente, consegue mesclar novos elementos como o perdão e a compaixão.
Longe de filigranas e emoção superficial, deixa o espectador à vontade para pensar e refletir, tirando conclusões esperançosas neste bom longa minimalista de aparente simplicidade e leveza, mas nada fácil se for observado o tema do abandono e a dor do relacionamento entre pais e filhos. Um estudo elegante numa construção de personagens com suas feridas abertas de um emocional rompido da desintegração familiar e como metáfora da sociedade. Mas a esperança é plantada e cultivada.
Mostra de Cinema São Paulo (Late Bloomers- O Amor Não Tem Fim)
Late Bloomers- O Amor Não Tem Fim
Julie Gavras erra feio a mão com esta comédia de costumes, ao abordar um tema instigante e sempre interessante como a transição para a terceira idade de um casal cinquentão, logo após perceberem que estão sozinhos, pois seus três filhos já construíram seus futuros. A leveza que tentou passar à plateia foi um verdadeiro tiro pela culatra, considerando-se o resultado inócuo no melhor estilo dos filmes românticos de final feliz de Hollywood.
Jogou fora um tema que já foi abordado pelo cinema com excelentes resultados, como Ninho Vazio (2008), de Daniel Burman, sobre os filhos que sem de casa para o mundo, terão que descobrir como se acomodar à nova configuração de sua vida e salvar o casamento, e ainda o ótimo Dois Irmãos (2010), do mesmo diretor, numa abordagem provocadora e notável da terceira idade rejeitada. Também marcou com elegância o mesmo tema o filme brasileiro Chega de Saudades (2008), de Laís Bodansky, ao mostrar um baile em um clube de dança, com diversos personagens rondando o local.
No filme mais marcante de sua carreira, A Culpa é do Fidel (2006), Gavras obtém um resultado espantosamente memorável para uma diretora estreante à época. Agora perdeu-se por completo, embora com um elenco de primeira linha, tendo Adam (William Hurt) casado há mais de trinta anos com Mary (Isabela Rossellini), estão prestes a se separarem diante de uma rotina chata e dominada por irritações de parte a parte, sem tolerância de nenhum deles para bobagens que sempre aturaram, mas que agora resolveram colocar um ponto final. Evidentemente que os filhos se reúnem e não aceitam a separação, buscando de todas as formas uma maneira de evitar a desunião. Mary está sempre voltada aos idosos e busca prazer de vida na comunidade dos mais velhos, com projetos e soluções para o futuro, tentando adequar-se à sua idade, acaba por bater de frente com o marido, um bem-sucedido arquiteto muito próximo dos colegas mais jovens. Tem sede de juventude e não aceita pensar ou viver numa realidade que está chegando.
Não falta traição de ambos os protagonistas, com a clássica culpa posterior e o arrependimento dos infratores da moral e dos bons costumes. Os filhos montam uma artilharia para contornar a situação no velório da vovó materna, uma velhinha astuta com tiradas sarcásticas no melhor estilo da filosofia existencialista. A se lamentar seu desperdício no enredo e a ênfase gratuita do aproveitar a vida até seus últimos dias em todos os seus momentos, com clichês já batidos à exaustão como da “brilhante lição de vida”.
O filme não escapa do moralismo barato e a preservação da família unida e feliz para sempre. Embora houvesse ambição no projeto inicial, restou como resultado uma imensa babaquice vazia desta obra descartável de Gavras, pois prometia bem mais do que as conclusões precipitadas e decepcionantes pelo moralismo exacerbado e fora de propósito ilustradas no epílogo, com toques e requintes autobiográficos. Um final horroroso e frustrante, diante da expectativa aguardada desta promissora diretora que desandou de vez.
Debate em São Paulo
Após a exibição do filme, a diretora Julie Gavras participou de um bate-papo com o público. Durante a conversa, ela afirmou que o filme é autobiográfico, em razão de seus pais serem idosos. Falou da harmonia dos instrumentos de música utilizados na gravação e a relação deles com a leveza proposta do filme. Gavras foi lacônica nas respostas, parecendo um pouco irritada com as perguntas. Ou seria somente timidez?
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Mostra de Cinema São Paulo (O Desaparecimento do Gato)
O Desaparecimento do Gato
Vem da Argentina um filme com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da reflexão magistral de Carlos Sorin que inova e sai dos dramas intimistas de seus últimos filmes para o suspense psicológico, com este magnífico longa-metragem sobre a loucura humana. Anteriormente já havia dado mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas obras Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008). Sempre comprometido com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida, muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares, ou pela crise econômica que assolou o país vizinho e ainda não se afastou totalmente.
Agora há o gato que foge de casa, logo após seu dono retornar de uma clínica de tratamento psiquiátrico, como o mote e ao mesmo tempo dá o norte da direção ao espectador para descobrir o grande enigma proposto, o que acontecerá somente na última cena. A loucura de Luís (Luis Luque- convincente no seu papel) está curada ou não? Os médicos psiquiátricos acertaram em mandá-lo de volta para seu lar com o aval da justiça? Ou houve precipitação médica e do judiciário decadente e burocrático? São questões propostas pelo diretor que são feitas através da esposa Beatriz (Beatriz Spelzini- de impecável atuação) e desenvolvidas até o epílogo, com grandes sacadas do enxuto e maravilhoso roteiro, tais como a percepção de Luís ao aproximar-se um temporal na cidade. Ou ainda a sugestiva perda de lucidez de Beatriz, com sua ida até a casa da filha pela madrugada em estado de choque, numa aparente demência humana.
O casal programa uma viagem ao Rio de Janeiro, na paradisíaca praia de Parati, como mola propulsora da suposta cura do paciente, visando celebrar e retornar ao estado de normalidade. Ou seria uma vinda para o paraíso da impunidade? Mas as surpresas maiores estão por vir e o suspense se instala na plateia. É tudo uma farsa ou é uma realidade que se tornará bonita?
Sorin conduz com maestria sem deixar pistas verdadeiras, pois as que afloram são descartadas por serem falsas. Mas há o gato preto Donatello, um bichano intuitivo de estimação da família, que teima em permanecer sumido com a chave do segredo desta perturbadora película da Argentina. O filme tem uma excelente estrutura dos personagens centrais, com uma elaboração criativa de cada um deles que é simplesmente notável. Não esquece da filha desligada que vive egoisticamente somente para seu novo namorado, um equatoriano que canta músicas regionais; bem como o filho ausente do casal que vive no exterior e manda um vídeo da família para felicitar o pai, quando este retorna para casa.
O cineasta arrasa com este que talvez seja seu melhor e mais maduro longa-metragem. Um filme superior pela sua proposta aparentemente singela, como em todos os outros de sua inquestionável filmografia, mas que com o desenrolar da trama cresce e prende a respiração, tirando o fôlego. Mas solta homeopaticamente com toda sutileza e elegância dos grandes diretores com talento maior e acima da média. O Desaparecimento do Gato é uma película singular, que não tem grandes imagens pirotécnicas, mantendo um conteúdo poderoso com as complexidades se encontrando em forma de barbárie metafórica embutidas no duelo da lucidez com a loucura, indo até as últimas consequências, como na reveladora cena final. Um fabuloso filme de reflexão sobre o ser humano que se insere como um dos melhores da 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.
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