terça-feira, 22 de novembro de 2011

A Pele que Habito

















Insanidade Cruel

A genialidade no melhor estilo que consagrou Pedro Almodóvar agora está mais madura e perversa, com toda a frieza deste diretor neste fabuloso drama espanhol mesclado com suspense e horror em A Pele que Habito, adaptado livremente do livro Tarântula, de Thierry Jonquet. O longa contém um abismo de evidências traiçoeiras que levam para uma vingança marcada por equívocos, quando se busca justiçar pelas próprias mãos o suposto mal que bate com força na porta da vítima. Mas há fatores intrínsecos e extrínsecos que somente serão percebidos dentro de uma justiça plena num julgamento equânime, que não acontece e dá margem para uma revolta interior.

Seu filme anterior já fora maravilhoso e estimulante, tendo todo o brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009), que pagou sua dívida, pois estava devendo um grande filme. Ou seja, fez dois filmes, pois realizou um dentro do outro, com todo seu charme, elegância e irreverência, que lembrou o belo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), não pela semelhança, mas pela estética e pelos desdobramentos; assim como o notável Fale com Ela (2002). Acontece que desde o seu primeiro filme Pepi, Luci e Bom (1980), se estabeleceu um agente provocador; passando por Má Educação (2004); Volver (2006) sendo a ode máxima ao feminino; bem como nos demais Ata-me (1990); De Salto Alto (1991); Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

O cineasta mostra todo seu poder de criação ao conduzir o longa como peças que vão se encaixando num jogo de xadrez bem estudado e magistralmente concatenado com o tempo, buscando nos flashbacks as respostas para os espectadores aturdidos e estonteados com a sucessão de acontecimentos que vão desfilando pela tela, numa trama que se delineia com mais verossimilhança nos momentos finais. Até o Brasil é citado numa cena na favela, em que cirurgião plástico teria alguma raiz, sendo entoada uma música em português pela filha do médico.

O diretor se debruça sobre a transexualidade com desenvoltura plena, resultando naquela criatura andrógina do laboratório, a mulher idealizada Vera advinda de Vicente (Elena Anaya- a belíssima que já atuou com Almodóvar em Fale com Ela e com Julio Medem em Lucía e o Sexo (2001) e Um Quarto em Roma (2009). É um experimento fantástico fruto da perda da razão e da consciência plena do médico cirurgião plástico Robert (Antônio Banderas- num papel contido e sem excessos histriônicos). Impossível deixar de ver a influência do filme Frankenstein (1910), de J. Searley Dawley, ou ainda da versão de 1931, dirigida por James Whale, todos adaptados do livro escrito em ritmo novelesco por Mary Shelley, onde o doutor Frankenstein retalhava e criava uma criatura monstruosa em um laboratório de ciências; ou ainda do longa O Abominável Dr. Phibes (1973), de Robert Fruest.

A trama tem amores reprimidos, traições e mortes violentas familiares, revelações e atitudes bizarras e cruéis. Há situações surpreendentes e inimagináveis, com todo estilo do cineasta se fazendo presente, como nas cores fortes mas harmônicas com predomínio do vermelho, listrados e xadrezes sem ser gritantes ou com agressão visual. Num estilo típico e revelador dentro de um cenário de estravagâncias com finesse e requinte almodovariano. É difícil dizer o que mais cativa no filme; se as interpretações como de Banderas no papel do médico ensandecido, ou de Marisa Parentes como a mãe cúmplice, ou se de Elena Anaya; do instigante roteiro macabro e suas vinganças; do cenário, em especial do laboratório tétrico num universo sombrio; da fotografia colorida e marcante; ou se tudo mesclado, com uma direção inventiva ao melhor estilo de Hitchcock com um preciso domínio de linguagem, abstraindo os preconceitos, deixando fluir as amarguras e tristezas familiares pelas imagens e atos se unindo com sutileza e clarividência. Há os grandes dramas pessoais absorvidos pelas fraquezas e as vicissitudes agonizadas pelo ser humano.

Almodóvar busca e atinge indiscutivelmente uma renovação com fôlego em A Pele que Habito, sendo incansável no seu método de abordar questões polêmicas. Tem toda uma lucidez magnífica aflorada na revolta da criatura desalmada metamorfoseada contra o criador. Ganha o cinema pela arte paradoxal da vingança com sabor de cereja, diante do terrível equívoco pelo ilusionismo do suposto estupro de uma inocente fobia social, estopim da barbárie e do patamar indigesto da loucura numa mente perturbada em um singular desfecho.

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