sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2021)

Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Já é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos nos cinemas e nas plataformas de streaming em 2021 devido à pandemia. Também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Meu Pai, de Florian Zeller (foto acima);

02. Druk- Mais uma Rodada, de Thomas Vinterberg;

03. Ataque dos Cães, de Jane Campion;

04. Bagdá Vive em Mim, de Samir;

05. Vera Sonha com o Mar, de Kaltrina Krasniqi;

06. Nomadland, de Chloé Zhao;

07. Pieces of a Woman, de Kornél Mundruczó;

08. Jogo do Poder, de Costa-Gavras;

09. Agente Duplo, de Maite Alberdi;

10. O Tigre Branco, de Ramin Bahrami.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

 - De Volta Para Casa, de Wayne Wang;

- Marighella, de Wagner Moura;

- A Mão de Deus, de Paulo Sorrentino;

- Minha Irmã, de VéroniqueRaymond e Stéphanie Chuat;

- Relatos do Mundo, de Paul Greengrass.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A Mão de Deus

 

Tributo Felliniano

Paulo Sorrentino obteve reconhecimento internacional com Le conseguenze dell'amore (2004), porém ao ganhar diversos prêmios e concorrer à Palma de Ouro ficou conhecido por Il Divo (2008), uma apreciável cinebiografia do ex-primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti (1919- 2013). No filme A Grande Beleza (2013), possivelmente sua obra-prima, realizou um drama de reverência à beleza estonteante e os encantos de amor para Roma, a cidade eterna que foi a protagonista em Roma de Fellini (1972) e A Doce Vida (1960), ambos de Federico Fellini. Tinha um cenário no terraço luxuoso com vista para o Coliseu, onde a elite estava reunida para falar de superficialidades: um empresário que vende brinquedos para a China, a rica escritora engajada, um colecionador de artes e uma editora anã. Falavam deles mesmos e as conquistas pessoais, os projetos e a situação do país, bem como a ironia aos turistas. Depois veio A Juventude (2016), que buscava a construção de seu personagem central resgatado no universo felliniano do clássico Oito e Meio (1963), na caracterização com o visual de Marcello Mastroianni. Já em Silvio e os Outros (2018), aborda o ex-primeiro- ministro italiano Silvio Berlusconi sentindo a ausência do poder ao ser derrotado na última eleição por 25 mil votos, veio integrar a oposição e está bastante incomodado com o ocaso momentâneo.

Agora chega pela Netflix o magnífico A Mão de Deus, indicado ao Oscar de 2022 pela Itália, venceu o Grande Prêmio do Júri no 78º. Festival de Veneza. É uma espécie de homenagem ao gênio Fellini que tanto é admirado e reverenciado pelo realizador em todos seus filmes. Conta a história do menino Fabietto (Filippo Scotti), na conturbada Nápoles dos anos 1980, foi inspirado nas experiências pessoais da adolescência de Sorrentino. Soa como traços marcantes de uma autobiografia repleta de alegrias inesperadas, como o anúncio e a tão aguardada chegada do ídolo do futebol argentino Diego Armando Maradona, que trará esperanças para o Napoli, clube de amor e paixão da família retratada no longa-metragem. O título do filme é uma alusão ao gol com a mão na final da Copa do Mundo de 1986, ocorrida no México, entre Argentina e Inglaterra, que seria o simbolismo da vingança dos argentinos aos britânicos pela fatídica Guerra das Malvinas. Há várias referências ao atleta entre 1984 e 1991, que ocupa considerável parcela do enredo para entrelaçar com a carreira do craque tachado de "o melhor jogador de futebol de todos os tempos” no prólogo, apresentando a fase da inocência que acaba desarmando uma situação desastrosa familiar. A narrativa poética mostra a veneração do protagonista pelo ídolo que irá impedir uma tragédia surpreendente ainda maior, diante do circunstancial envenenamento por monóxido de carbono da lareira, caso tivesse ficado em casa com os pais (Toni Servillo e Teresa Saponangelo).

A estrutura da realização mostra momentos da vida do adolescente que encontra um amigo contrabandista inesperado num dia de jogo; as reuniões de família com brigas, lágrimas, traições; perda da virgindade com a transição para a fase adulta; o desejo de ser cineasta por tomar suas próprias decisões, mesmo sendo influenciado por todos os acontecimentos inerentes de sua vida. O cineasta cria nesta comédia dramática seu painel com o jovem ingênuo, e observa várias personalidades excêntricas locais que se comportam de forma absurda, onde a bizarrice é uma constante. Inspiração esta buscada no inesquecível Amarcord (1973), do mestre Fellini. Começa com a tia Patrizia (Luisa Ranieri) visitando o misterioso pequeno monge, depois é bolinada e desperta a fúria do marido ciumento, toma banho de sol pelada em público, provoca o sobrinho que a vê como sua musa, mas pela ousadia e estar muito à frente do tempo acaba num hospício, possivelmente internada como louca pela sociedade machista. Tem também a matriarca desbocada, a vizinha baronesa e seus invasivos palpites, o pai comunista, a mãe que gosta de fazer suas peraltices com os parentes e telefonar para a vizinha se dizendo assistente do diretor Zefirelli, o irmão (Marlon Joubert) que troca de namorada como de camisa, o velho tio (Renato Carpentieri) que nutre uma paixão incondicional por Maradona, o modo desprezível e cruel dos familiares rindo do namorado da tia, um sujeito manco e que usa um microfone de laringe para falar.

Se em A Grande Beleza era uma gratidão à Itália com a Roma sagrada e profana mostrada, sob os auspícios da bela trilha sonora erudita, com temas baseados em músicas religiosas, passando pela contemporânea e desembocando num som eletrônico, tendo as assinaturas de Arvo Pärt, Vladimir Mastynov, Zbigniew Preisner, John Tavener e Henryk Górecki. Em A Mão de Deus foca no destino que desempenha um papel fundamental para o futuro do protagonista, de Nápoles para Roma, através de uma história intensa e muito pessoal do realizador, pelo personagem com seus próprios pensamentos à procura de um significado para seus desejos e motivações existenciais. Com uma estética primorosa que transita de uma alegoria extravagante para um poema lírico com mares, casas, cenografias maravilhosas e uma cuidadosa locação de objetos e figurinos em momentos fascinantes de uma fotografia ímpar. A descrição sem excessos está convincente na estruturação de seus personagens resgatados do universo felliniano. Reacende uma enlouquecedora paixão por um ídolo, diante das lembranças do presente remetendo para o passado, em que foi avivado depois da agonia da descoberta na razão do rompimento por novos horizontes.

Eis um passeio cultural e histórico nesta viagem de regresso a Nápoles por Sorrentino, vinte anos depois, com o glamour ao melhor estilo do mestre inspirador, como o fabuloso Oito e Meio (1963), bem caracterizado na obra. O passado de incertezas encontrará respaldo na morte trágica que chegará para separar uma trajetória. Há meditação sincera sobre o avanço da idade com leveza sutil, diante dos percalços. Uma redenção diante de uma situação de amor inocente que ficou para trás irremediavelmente neste retrato fiel do reencontro de um homem com seu passado e suas memórias com o sentido prazeroso de viver, diante de suas divagações reflexivas. A sensibilidade conduz para absorver os infortúnios e buscar a retomada dos encantos que a vida oferece, numa narrativa com tom de sátira sarcástica sobre o painel familiar excêntrico e tragicômico com situações surreais. É comovente e arrebatador no aspecto psicológico construído com primazia sobre o ser humano depurando as angústias num epílogo de amor em êxtase, apontando como referência ao título numa consequente suavidade. Provoca estímulos pela emoção e a crença de que o cinema está em flagrante resistência para manter a chama acesa pela efervescência cultural inesgotável da arte que permanecerá como legado.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Ataque dos Cães

Desconstrução dos Mitos

A cineasta Jane Campion, aos 67 anos, realiza com grandes méritos seu primeiro western esbanjando sobriedade, formalismo e firmeza neste admirável Ataque dos Cães. Concorrerá e é forte candidato em doze categorias ao Oscar de 2022, entre elas: melhor filme, direção (ganhou neste ano o Leão de Prata no Festival de Veneza), ator, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, fotografia e trilha sonora, está disponível na Netflix. É o retorno da festejada diretora doze anos depois de seu último longa-metragem, Brilho de Uma Paixão (2009). Baseado no livro de Thomas Savage, publicado em 1967, no qual ela escreveu o roteiro que se passa no ano de 1925, ambientado em Montana, um Estado que fica ao oeste dos EUA, foi rodado nas lindas paisagens dos verdes prados da Nova Zelândia, país de origem da realizadora. Cria com sensibilidade e muita sutileza personagens fortes e marcantes numa história de faroeste crepuscular para desconstrução do mitológico caubói macho alfa invasivo e agressivo. Tem em sua filmografia vários sucessos como a série policial Top of the Lake (2013-2017), Cada Um Com Seu Cinema (2007), Retrato de Uma Mulher (1996), e sua obra mais aclamada ainda é O Piano (1993), quando ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e recebeu o Oscar de Melhor Roteiro Original.

A história é contada em atos com bons artifícios conhecidos no Velho Oeste, porém sem abusar de perseguições recorrentes em obras menores, opta pela ausência de tiroteios forçados ou balas perdidas por tudo quanto é canto e lugares inimagináveis. Há na trilha sonora cativante do guitarrista e compositor britânico da banda Radiohead, Jonny Greenwood, sendo executada com perfeição, como uma mola mestra condutora vai ditando o clímax de suspense das cenas. Os cenários são grandiosos e caracterizadores do gênero, onde os cavalos estão sincronizados pelas frondosas árvores, montanhas, rios, ranchos, neve e de um pôr do sol esplêndido e por vezes revelador de um novo dia, magistralmente captados nas lentes da fotógrafa australiana Ari Wegner. Cada detalhe, movimento da câmera, luz, fotografia e o figurino estão harmonicamente distribuídos com primazia e colocados em seus lugares exatos, pontuais e com fidelidade. Segue o melhor estilo estético dos grandes clássicos. Lembra o inesquecível Os Imperdoáveis (1992), de e com Clint Eastwood; remete para Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks e Arthur Rosson; como não poderia deixar de ter referências em Rastros de Ódio (1956) e No Tempo das Diligências (1939), ambos do genial John Ford, com construções fantásticas de personagens; mas como esquecer Meu Ódio Será Sua Herança (1969), de Sam Peckinpah; ou Os Brutos Também Amam (1953), de George Stevens; e mais recentemente Bravura Indômita (2010), dos irmãos Ethan e Joel Coen, e Relatos do Mundo (2020), de Paul Greengrass.

A narrativa é bem urdida sobre Phil (Benedict Cumberbatch- a melhor interpretação de sua carreira) e George (Jesse Plemons- discreto e eficiente no papel), dois irmãos ricos e proprietários da maior fazenda da região. Enquanto o primeiro é um homem duro, cruel, homofóbico e arrogante, ainda que seja formado em filosofia, leva a vida de vaqueiro por opção, inspirado no ídolo do passado Bronco Henry, que exerce uma figura quase que paterna, mas com ilações de uma relação secreta mais íntima. Já o segundo é uma pessoa gentil, quieta, educada, que não demonstra muito interesse nesta vida de cowboy, embora esteja mais preocupado com a família, preza a justiça. A relação dos dois azeda de vez quando George se casa com a viúva alcoólatra, Rose (Kirsten Dunst), por quem o irmão mais novo nutre um desprezo pelo filho dela, ao humilhar Peter (Kodi Smit-McPhee). Faz brincadeiras grosseiras àquele jovem que estuda medicina e tem gestos e maneiras delicadas de se comportar. A abordagem reflete o poder, a inveja, a solidão e os desejos reprimidos por força de um tóxico ambiente machista na sua essência, onde é preciso manter uma postura de masculinidade intensa como dita a sociedade conservadora, sem que as fragilidades apareçam, beira a ignorância e o recalque do protagonista em relação aos demais. A realizadora retrata com profundidade rara as sutilezas e simbologias por trás de personagens psicologicamente debilitados, em especial, Phil que vai sendo desmascarado aos poucos, e o dócil Peter de aparente ternura, mas com a vingança sendo arquitetada no contexto diário de aspereza.

Ataque dos Cães teve o título baseado num trecho bíblico extraído do Salmo 22, que profetiza o seguinte: "Livra-me da espada, livra a minha vida do poder do cão". Servirá como uma espécie de aviso de que o perigo está rondando, sendo iminente as trágicas consequências. As cenas que remetem para as montanhas com as supostas gravuras de ataques caninos, deixam o espectador vigilante e atento para a realidade ou as superstições que aflorarão. O silêncio recorrente que fascina, os gestos e os olhares que falam, e progressivamente revelam as carências decorrentes daquelas aparências contraditórias num ambiente fortemente contextualizado pela hostilidade. Campion traz à baila e coloca em xeque a masculinidade através de um pseudofóbico para mirar seu foco nas fraquezas retumbantes das relações e os seus vínculos afetivos sendo demolidos com refinada delicadeza, através de pequenos detalhes, diálogos e simbolismos, no qual os desejos são anestesiados ou a homoafetividade é sufocada. Tema este que foi bem retratado no western O Segredo de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee, na qual a repressão aparece de forma contundente como uma luz lançada para a aceitação de como são os indivíduos pelas suas criações e educações familiares.

Eis uma alegoria do ranço homofóbico imperante numa comunidade conservadora com valores ultrapassados. Os resquícios de um sistema que ainda segue com os velhos tabus sem abrir mão da liberdade, especialmente das minorias, mesmo que seja um ente próximo, porém visto com desdém e com ausência de carinho e fraternidade. Os laços e vínculos irão ao encontro de pessoas desconhecidas como um ato de harmonia pela aproximação casual nos conflitos permanentes, embora haja um sopro de lucidez para o recomeço de novas vidas que estavam vendo um ciclo se fechar, que irá conduzir para a reflexão dos destinos marcados, como decorrência dolorida da solidão e da sombria rejeição pela escolha da sexualidade. A cineasta utiliza a morte sendo reverenciada no epílogo até com alguma suavidade, tendo na condição do ora suposto amigo, vendo o tempo se escoando, conduz para o tema da vingança no final por uma reviravolta surpreendente e sombria do instigante roteiro, com o exorcismo dos fantasmas do cotidiano. É a contingência do desaparecimento nos percalços da vida que passa rápido, fica um outro mundo de reminiscências e uma melancolia enternecedora, num grande final com emoção e digno de um fabuloso faroeste.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Deserto Particular

As Transformações

O cineasta brasileiro Aly Muritiba, nascido em Mairi, no interior da Bahia, radicado em Curitiba (PR), aos 42 anos, tem uma carreira de admiráveis filmes em sua filmografia, tais como: Para Minha Amada Morta (2015), vencedor em sete prêmios, incluindo Festival de Brasília, de Montreal (Canadá) e San Sebastián (Espanha); Nóis por Nóis (2017); Ferrugem (2018) levou o Kikito de melhor longa brasileiro em Gramado; Jesus Kid (2021) ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Gramado deste ano; e, recentemente, da festejada série documental sobre o Caso Evandro (2020), em exibição no Globoplay. Pretende filmar no próximo ano Barba Ensopada de Sangue, baseado no livro do escritor Daniel Galera. Em outubro, teve seu último filme, Deserto Particular, pré-selecionado para representar o Brasil na disputa por uma vaga entre os cinco indicados na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar 2022, ao contar uma história de amor em tempos de ódio com a recorrente intransigência brutal de nossos dias atuais, na qual a sensibilidade e a ternura deveriam falar mais alto.

O enredo tem no protagonista Daniel (Antonio Saboia) um policial cumpridor de seus deveres, até cometer um erro grave que o coloca numa situação constrangedora e de iminente risco na carreira, além do abalo de sua honra. Solitário, inseguro e introvertido, filho de um também policial aposentado que agoniza uma demência irreversível, divide os cuidados do pai com a irmã. Sua única diversão com alguns momentos de alegria é o romance virtual com Sara pelo WhatsApp, que mora em Sobradinho, interior da Bahia, até ela deixar de responder as mensagens e atender suas ligações. Há uma reviravolta no roteiro, quando abandona tudo em Curitiba, onde reside, para implementar uma viagem por uma busca frenética da amada. Sai do Sul do país e vai para o Nordeste de carro, num longo caminho inverso realizado pelo diretor em seus movimentos da sua própria vida. Mergulha em um intenso processo interno de descoberta de sua existência para tentar lidar com seus afetos marcados por uma educação rígida de outrora. São os mecanismos de manipulação e a culpabilização arraigados que passam despercebidos, no qual a confusão se estabelece marcada por uma educação típica de um microcosmo familiar que entra em choque diante de revelações e experiências jamais vividas em relacionamentos que cruzam do hétero para homossexual.

O drama social com pitadas políticas se faz necessário e é importante em um Brasil dividido momentaneamente, sobretudo pelo enredo construído para narrar um episódio do cotidiano, mas que pretende transformar a aspereza de duas pessoas em suas vidas como pano de fundo. O roteiro de Henrique Dos Santos e Muritiba tem o objetivo de desconstruir em doses homeopáticas a rudeza do protagonista e, ao mesmo tempo, mostrar as diferenças e contradições de uma sociedade machista e conservadora. Uma espécie de metáfora de nossos tempos difíceis do enraizado reacionarismo de um futuro cada vez mais sombrio, onde a harmonia está mais distante por conta de um permanente estereótipo advindo de um mundo tirano do patriarcalismo. Daniel é derivado de uma estrutura estabelecida na corporação policial, que moldou sua personalidade e as atitudes menos amistosas oriundas da violência, causa do afastamento das suas funções profissionais e elemento de construção psicológica do personagem e as relações supervenientes tratadas nas questões sociais e políticas.

As diferenças culturais entre dois polos distintos retratadas no painel da atmosfera criada entre as duas regiões brasileiras ficam visíveis nesta aventura road movie, que são bem captadas pela câmera da bonita fotografia de Luis Armando Arteaga. Também há registro do envolvimento na construção da história de amor através dos contrastes de cores e alguma melancolia na temática principal. No encontro dos personagens desencontrados pelas circunstâncias, surge a mulher trans Robson (Pedro Fasanaro), criada pela avó, diante do pedido do pai, para tentar uma cura gay numa igreja evangélica pentecostal. Trabalha durante o dia num centro de distribuição de alimentos, sonha em por o pé na estrada e se libertar das amarras pelos grilhões que o prendem àquele ambiente retrógrado; à noite se transmuta e vive um outro mundo da fantasia, o de Sara, a mulher que mora dentro dele. Tema polêmico no atual governo brasileiro, que divide as pessoas por sexo e não gêneros, numa míope percepção de uma prática anacrônica de ideias e imposições ultrapassadas. Muritiba coloca com sutileza a empatia e pede tolerância no improvável relacionamento amoroso de duas pessoas antagônicas, mas com capacidade de mudança pela transformação em suas vidas distintas.

O cineasta não é engajado na causa gay, também não faz apologia de relacionamentos típicos como centro de uma proposta "homo", "bi" e "hétero", embora pregue o amor, ainda que o desfecho seja previsível, deixa a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser mais comprometida com uma análise mais aprofundada. Porém, Deserto Particular traz no seu propósito principal a transformação interior das pessoas diante dos medos e anseios na vida com as conexões e experiências acumuladas no tempo, onde o amor transgride e a mudança interior é o elemento buscado diariamente nos encontros inesperados que aproximam emoções. Aponta para um sistema atrasado fruto da violência pertinente com situações tóxicas contrastando com o afeto e o carinho dos excluídos nesta espiral de sofrimento de vidas infelizes. Dá asas a imaginação para as escolhas dos indivíduos que lutam para serem livres de suas prisões ao almejarem uma felicidade distante e quase que utópica neste contexto.

Eis um sensível drama universal das relações humanas de um mundo melhor nos paradoxos da existência com os conflitos interiores que passam a conviver com os fantasmas que dilaceram almas. Inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo improvável da união é mantido nesta metamorfose. Há uma realidade de idas e vindas, construção e rompimento dos personagens e suas peculiaridades que refletem um misto de inconsciência e dúvida aparentes surgidas na trama, mas a convicção pela transformação é inegável. Inexistem facilidades demagógicas para problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que os laços de amor e de amizade. Uma luz lançada para a aceitação de como são os indivíduos pelas suas criações e educações familiares, tanto na esfera hétero como as advindas do universo LGBTQIA+, na qual o amor modifica vidas e liberta as pessoas. Uma interessante abordagem sobre as diversidades sociais e culturais na busca de um futuro mais tolerante e menos opressivo com as diferenças.