Tributo Felliniano
Agora chega pela Netflix o magnífico A Mão de Deus, indicado ao Oscar de 2022 pela Itália, venceu o Grande Prêmio do Júri no 78º. Festival de Veneza. É uma espécie de homenagem ao gênio Fellini que tanto é admirado e reverenciado pelo realizador em todos seus filmes. Conta a história do menino Fabietto (Filippo Scotti), na conturbada Nápoles dos anos 1980, foi inspirado nas experiências pessoais da adolescência de Sorrentino. Soa como traços marcantes de uma autobiografia repleta de alegrias inesperadas, como o anúncio e a tão aguardada chegada do ídolo do futebol argentino Diego Armando Maradona, que trará esperanças para o Napoli, clube de amor e paixão da família retratada no longa-metragem. O título do filme é uma alusão ao gol com a mão na final da Copa do Mundo de 1986, ocorrida no México, entre Argentina e Inglaterra, que seria o simbolismo da vingança dos argentinos aos britânicos pela fatídica Guerra das Malvinas. Há várias referências ao atleta entre 1984 e 1991, que ocupa considerável parcela do enredo para entrelaçar com a carreira do craque tachado de "o melhor jogador de futebol de todos os tempos” no prólogo, apresentando a fase da inocência que acaba desarmando uma situação desastrosa familiar. A narrativa poética mostra a veneração do protagonista pelo ídolo que irá impedir uma tragédia surpreendente ainda maior, diante do circunstancial envenenamento por monóxido de carbono da lareira, caso tivesse ficado em casa com os pais (Toni Servillo e Teresa Saponangelo).
A estrutura da realização mostra momentos da vida do adolescente que encontra um amigo contrabandista inesperado num dia de jogo; as reuniões de família com brigas, lágrimas, traições; perda da virgindade com a transição para a fase adulta; o desejo de ser cineasta por tomar suas próprias decisões, mesmo sendo influenciado por todos os acontecimentos inerentes de sua vida. O cineasta cria nesta comédia dramática seu painel com o jovem ingênuo, e observa várias personalidades excêntricas locais que se comportam de forma absurda, onde a bizarrice é uma constante. Inspiração esta buscada no inesquecível Amarcord (1973), do mestre Fellini. Começa com a tia Patrizia (Luisa Ranieri) visitando o misterioso pequeno monge, depois é bolinada e desperta a fúria do marido ciumento, toma banho de sol pelada em público, provoca o sobrinho que a vê como sua musa, mas pela ousadia e estar muito à frente do tempo acaba num hospício, possivelmente internada como louca pela sociedade machista. Tem também a matriarca desbocada, a vizinha baronesa e seus invasivos palpites, o pai comunista, a mãe que gosta de fazer suas peraltices com os parentes e telefonar para a vizinha se dizendo assistente do diretor Zefirelli, o irmão (Marlon Joubert) que troca de namorada como de camisa, o velho tio (Renato Carpentieri) que nutre uma paixão incondicional por Maradona, o modo desprezível e cruel dos familiares rindo do namorado da tia, um sujeito manco e que usa um microfone de laringe para falar.
Se em A Grande Beleza era uma gratidão à Itália com a Roma sagrada e profana mostrada, sob os auspícios da bela trilha sonora erudita, com temas baseados em músicas religiosas, passando pela contemporânea e desembocando num som eletrônico, tendo as assinaturas de Arvo Pärt, Vladimir Mastynov, Zbigniew Preisner, John Tavener e Henryk Górecki. Em A Mão de Deus foca no destino que desempenha um papel fundamental para o futuro do protagonista, de Nápoles para Roma, através de uma história intensa e muito pessoal do realizador, pelo personagem com seus próprios pensamentos à procura de um significado para seus desejos e motivações existenciais. Com uma estética primorosa que transita de uma alegoria extravagante para um poema lírico com mares, casas, cenografias maravilhosas e uma cuidadosa locação de objetos e figurinos em momentos fascinantes de uma fotografia ímpar. A descrição sem excessos está convincente na estruturação de seus personagens resgatados do universo felliniano. Reacende uma enlouquecedora paixão por um ídolo, diante das lembranças do presente remetendo para o passado, em que foi avivado depois da agonia da descoberta na razão do rompimento por novos horizontes.
Eis um passeio cultural e histórico nesta viagem de regresso a Nápoles por Sorrentino, vinte anos depois, com o glamour ao melhor estilo do mestre inspirador, como o fabuloso Oito e Meio (1963), bem caracterizado na obra. O passado de incertezas encontrará respaldo na morte trágica que chegará para separar uma trajetória. Há meditação sincera sobre o avanço da idade com leveza sutil, diante dos percalços. Uma redenção diante de uma situação de amor inocente que ficou para trás irremediavelmente neste retrato fiel do reencontro de um homem com seu passado e suas memórias com o sentido prazeroso de viver, diante de suas divagações reflexivas. A sensibilidade conduz para absorver os infortúnios e buscar a retomada dos encantos que a vida oferece, numa narrativa com tom de sátira sarcástica sobre o painel familiar excêntrico e tragicômico com situações surreais. É comovente e arrebatador no aspecto psicológico construído com primazia sobre o ser humano depurando as angústias num epílogo de amor em êxtase, apontando como referência ao título numa consequente suavidade. Provoca estímulos pela emoção e a crença de que o cinema está em flagrante resistência para manter a chama acesa pela efervescência cultural inesgotável da arte que permanecerá como legado.
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