quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Deserto Particular

As Transformações

O cineasta brasileiro Aly Muritiba, nascido em Mairi, no interior da Bahia, radicado em Curitiba (PR), aos 42 anos, tem uma carreira de admiráveis filmes em sua filmografia, tais como: Para Minha Amada Morta (2015), vencedor em sete prêmios, incluindo Festival de Brasília, de Montreal (Canadá) e San Sebastián (Espanha); Nóis por Nóis (2017); Ferrugem (2018) levou o Kikito de melhor longa brasileiro em Gramado; Jesus Kid (2021) ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Gramado deste ano; e, recentemente, da festejada série documental sobre o Caso Evandro (2020), em exibição no Globoplay. Pretende filmar no próximo ano Barba Ensopada de Sangue, baseado no livro do escritor Daniel Galera. Em outubro, teve seu último filme, Deserto Particular, pré-selecionado para representar o Brasil na disputa por uma vaga entre os cinco indicados na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar 2022, ao contar uma história de amor em tempos de ódio com a recorrente intransigência brutal de nossos dias atuais, na qual a sensibilidade e a ternura deveriam falar mais alto.

O enredo tem no protagonista Daniel (Antonio Saboia) um policial cumpridor de seus deveres, até cometer um erro grave que o coloca numa situação constrangedora e de iminente risco na carreira, além do abalo de sua honra. Solitário, inseguro e introvertido, filho de um também policial aposentado que agoniza uma demência irreversível, divide os cuidados do pai com a irmã. Sua única diversão com alguns momentos de alegria é o romance virtual com Sara pelo WhatsApp, que mora em Sobradinho, interior da Bahia, até ela deixar de responder as mensagens e atender suas ligações. Há uma reviravolta no roteiro, quando abandona tudo em Curitiba, onde reside, para implementar uma viagem por uma busca frenética da amada. Sai do Sul do país e vai para o Nordeste de carro, num longo caminho inverso realizado pelo diretor em seus movimentos da sua própria vida. Mergulha em um intenso processo interno de descoberta de sua existência para tentar lidar com seus afetos marcados por uma educação rígida de outrora. São os mecanismos de manipulação e a culpabilização arraigados que passam despercebidos, no qual a confusão se estabelece marcada por uma educação típica de um microcosmo familiar que entra em choque diante de revelações e experiências jamais vividas em relacionamentos que cruzam do hétero para homossexual.

O drama social com pitadas políticas se faz necessário e é importante em um Brasil dividido momentaneamente, sobretudo pelo enredo construído para narrar um episódio do cotidiano, mas que pretende transformar a aspereza de duas pessoas em suas vidas como pano de fundo. O roteiro de Henrique Dos Santos e Muritiba tem o objetivo de desconstruir em doses homeopáticas a rudeza do protagonista e, ao mesmo tempo, mostrar as diferenças e contradições de uma sociedade machista e conservadora. Uma espécie de metáfora de nossos tempos difíceis do enraizado reacionarismo de um futuro cada vez mais sombrio, onde a harmonia está mais distante por conta de um permanente estereótipo advindo de um mundo tirano do patriarcalismo. Daniel é derivado de uma estrutura estabelecida na corporação policial, que moldou sua personalidade e as atitudes menos amistosas oriundas da violência, causa do afastamento das suas funções profissionais e elemento de construção psicológica do personagem e as relações supervenientes tratadas nas questões sociais e políticas.

As diferenças culturais entre dois polos distintos retratadas no painel da atmosfera criada entre as duas regiões brasileiras ficam visíveis nesta aventura road movie, que são bem captadas pela câmera da bonita fotografia de Luis Armando Arteaga. Também há registro do envolvimento na construção da história de amor através dos contrastes de cores e alguma melancolia na temática principal. No encontro dos personagens desencontrados pelas circunstâncias, surge a mulher trans Robson (Pedro Fasanaro), criada pela avó, diante do pedido do pai, para tentar uma cura gay numa igreja evangélica pentecostal. Trabalha durante o dia num centro de distribuição de alimentos, sonha em por o pé na estrada e se libertar das amarras pelos grilhões que o prendem àquele ambiente retrógrado; à noite se transmuta e vive um outro mundo da fantasia, o de Sara, a mulher que mora dentro dele. Tema polêmico no atual governo brasileiro, que divide as pessoas por sexo e não gêneros, numa míope percepção de uma prática anacrônica de ideias e imposições ultrapassadas. Muritiba coloca com sutileza a empatia e pede tolerância no improvável relacionamento amoroso de duas pessoas antagônicas, mas com capacidade de mudança pela transformação em suas vidas distintas.

O cineasta não é engajado na causa gay, também não faz apologia de relacionamentos típicos como centro de uma proposta "homo", "bi" e "hétero", embora pregue o amor, ainda que o desfecho seja previsível, deixa a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser mais comprometida com uma análise mais aprofundada. Porém, Deserto Particular traz no seu propósito principal a transformação interior das pessoas diante dos medos e anseios na vida com as conexões e experiências acumuladas no tempo, onde o amor transgride e a mudança interior é o elemento buscado diariamente nos encontros inesperados que aproximam emoções. Aponta para um sistema atrasado fruto da violência pertinente com situações tóxicas contrastando com o afeto e o carinho dos excluídos nesta espiral de sofrimento de vidas infelizes. Dá asas a imaginação para as escolhas dos indivíduos que lutam para serem livres de suas prisões ao almejarem uma felicidade distante e quase que utópica neste contexto.

Eis um sensível drama universal das relações humanas de um mundo melhor nos paradoxos da existência com os conflitos interiores que passam a conviver com os fantasmas que dilaceram almas. Inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo improvável da união é mantido nesta metamorfose. Há uma realidade de idas e vindas, construção e rompimento dos personagens e suas peculiaridades que refletem um misto de inconsciência e dúvida aparentes surgidas na trama, mas a convicção pela transformação é inegável. Inexistem facilidades demagógicas para problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que os laços de amor e de amizade. Uma luz lançada para a aceitação de como são os indivíduos pelas suas criações e educações familiares, tanto na esfera hétero como as advindas do universo LGBTQIA+, na qual o amor modifica vidas e liberta as pessoas. Uma interessante abordagem sobre as diversidades sociais e culturais na busca de um futuro mais tolerante e menos opressivo com as diferenças.

Nenhum comentário: