sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um Segredo em Família



Amor Proibido

O longa-metragem francês Um Segredo em Família mexe novamente com as feridas ainda não cicatrizadas do Nazismo e a consequente ocupação na França. O diretor Claude Miller conduz com sensibilidade este drama que dilacera uma família quase que por inteira. Com um elenco de primeiríssima qualidade, onde Mathieu Amalric tem um papel secundário como o filho François, de 37 anos, embora sempre eficiente e correto na sua atuação. Baseou-se na autobiografia do psicanista Philippe Grimberg.

O filme tem por cenário ao final da 2ª. Guerra Mundial, onde François (Valentin Vigourt, menino de 07 anos) vive numa família judia aparentemente tranquila e sem maiores problemas, inventa para si um irmão e diante de sua solidão passa a imaginar o passado dos pais. No seu aniversário de 15 anos (agora o ator é Quentin Dubuis), descobre um terrível segredo que irá modificar aquela tranquilidade mentirosa: seus pais eram cunhados. A mãe Tânia (a belíssima Cécile de France) na realidade é casada- após alguns anos de amor proibido- com Maxime (Patrick Buel), viúvo da cunhada Hannah (Ludivine Sagnier). Há sequelas oriundas de uma equivocada ocupação nazista em território francês.

O Nazismo serve de pano de fundo para os confrontos amorosos, os desejos proibidos de Maxime por Tânia, ambos casados com os irmãos judeus que foram deportados e mortos na guerra. Há um jogo de palavras no roteiro bem elaborado, onde as paixões e os amores vão se entrelaçando, soçobrando algumas mentiras e poucas verdades num mundo de perseguições e em constante guerra pelo poder e o domínio, perseguindo os judeus e o brusco domínio territorial do governo de Hitler.

O cenário traz uma recriação de época impecável, embora com um roteiro de alguns deslizes, mas que não chega a comprometer, brecando com sabedoria algumas emoções que pederiam tornar-se piegas. O diretor segue uma linha contrária ao politicamente correto, pois o passado é mostrado em cores, contrastando com presente em preto-e-branco e revisitado em flashbacks, num tom acinzentado, numa bela combinação e coloração de cores.

François vai ao encontro do pai que está sumido, diante da morte súbita de seu cão de estimação, na qual assume a culpa pela perda e por sua contumaz teimosia. Lá no banco da praça, Maxime rememora seu passado, como a perda do filho- esperança de torná-lo atleta e derrotar os competidores de Hitler, numa bela cena de Olimpíada- e da esposa que amou até por aí, ambos enviados para o campo de concentração. Embora sempre achasse que o pai lhe preterisse, pois não era o símbolo do jovem forte, levou muito tempo para descobrir que os conflitos e desavenças familiares se davam mais em função do segredo mantido, pois os pais negavam com veemência a existência do irmão deportado e morto.

Ressalte-se que o mal-estar na França pela ocupação nazista já rendeu vários filmes de magnífica qualidade, tais como A Dor e a Piedade (1970), de Marcel Ophüls, O Último Metrô (1980), de François Truffaut, Lacombe Lucien (1974) e Adeus Meninos (1987), ambos dirigidos por Louis Malle, que de debruçavam sobre o conteúdo político e afastavam-se de romances proibidos, procurando se esmerar mais em desajustes comportamentais. Um dos pecados capitais de Um Segredo em Família é o afastamento da política como ponto principal, deixando se aproximar com maior intensidade o intimismo e a impossibilidade, que depois torna-se possível, de um belo e inusitado romance com lacunas e reflexos no filho François e sua dolorosa trajetória de perseguição nazista aos judeus nesta crônica familiar de perdas e descobertas. Permite ao espectador ir montando o quebra-cabeça, num experimento instigante por vezes; mas de muitos clichês, em outras.

Este longa sem exageros, mas com muitos significados e revelações no seu desenrolar, numa famíllia judia conturbada pelos fantasmas da guerra, embora não chegue a ser perturbador, fica um roteiro até inovador como das cores agindo num cenário onde a barbárie está implícita, mas há uma linearidade de um passado, dando um tom muito romanceado e quebrando a reflexão mais apurada, afastando a película de um resultado melhor, embora no todo seja boa a conclusão, ainda que haja um epílogo sem novidades e até previsível; ou que venha deixar uma perturbação instigante, ainda assim não é filme irregular, nem tampouco empolgante, mas que se somará a tantos outros melhores.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo



Monotonia na Estrada

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é um filme que poderia ser melhor aprofundado. O diretores Marcelo Gomes e Karim Aïnouz seguem uma linha inspirada no que tem de menor em Glauber Rocha, que consolidou seu estilo, pregando: "uma ideia na cabeça e uma câmera na mão", porém sem a competência e o estilo poderoso e crítico do irrequieto e saudoso mestre brasileiro.

O longa tenta mostrar o geólogo José Renato (Irandhir Santos), mas jamais a imagem é perceptível, pois o protagonista nunca é visto, fica apenas sua voz metálica e sonolenta, por 75 minutos, martelando os ouvidos dos espectadores que conseguem permanecer até o final da torturante sessão. Sem diálogos e com uma história pífia de um funcionário estatal que está analisando a estrada e os terrenos com suas dificuldades implícitas decorrentes da natureza, vai colocando seus temores para cumprir o projeto para o qual foi designado. Fala sem parar dos óbices que estão impedindo ou que causam as controversas da realização da pesquisa.

A meta para qual o geólogo foi escalado não é fácil, tendo em vista que chegar a um consenso para atravessar todo o sertão nordestino, visando implantar um represa que alagará toda região não é das mais salutares. Se a missão para avaliar a possibilidade de autorizar o tal canal, mudando o percurso das águas do único rio, causa tamanho transtorno mental e intelectual, com a consequência da saudade da família vem superar seus objetivos, nem por isso deverá infernizar a vida da plateia com suas lorotas e lamúrias inconsequentes e descabidas, oriundas de um roteiro desorganizado e sem inspiração. Seu percurso dia e noite, por uma estrada poeirenta e árida, lamentando a falta da esposa amada, que está na capital cearense, remetendo-o para as imagens do Padre Cícero e as romarias dos fanáticos cristãos, dão a tônica monótona e sonolenta do percurso de seu trabalho excomungado.

Uma constatação é evidente, os diretores do filme se esforçam ao máximo para tentar inebriar os espectadores com uma suposta solidão mesclada com uma dor insuportável de saudade do personagem entediado. Acontece que a viagem ao avançar, o roteiro tenta convergir para uma percepção de relação de coisas em comum com os lugares por onde passa José Renato. Há a sugestão nas entrelinhas de um abandono com a sensação de vazio e isolamento, causando a viagem difícil e impregnada de morbidez, com a perda de referência familiar.

Já se viu filmes brasileiros de estradas bem mais instigantes, tais como Bye Bye Brasil (1979), esplêndido longa dirigido por Cacá Diegues, que artesanalmente captava e mostrava as imagens de um outro Brasil, pelos olhos e ações de seus três artistas mambembes. Outro longa que aborda as transformações de uma geração é Tapete Vermelho (2006), sensível homenagem ao artista Mazzaropi, aproveitando o gancho faz uma reflexão sobre as mudanças dos tempos e a permanência das lendas.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo andou ganhando alguns prêmios internacionais importantes, mas nem por isso está imune de críticas. É um longa com um roteiro equivocado e uma técnica de captar imagens com a câmera em movimento com distorções de imagens, como se desta forma tosca e amadora fosse captar elogios para uma possível vanguarda. Ora, isso Glauber fez há décadas. Eram outros tempos e a ditadura militar imperava neste país. Estamos no Século 21 e os tempos mudaram.

Fica a proposta absurda de um filme descartável, por ser desconexo com um cinema voltado para a arte contemporânea. Não se pode confundir evolução com retrocesso técnico e estético, pelo simples fato de uma pseudocriação como desserviço de uma escola cinematográfica que tem muito ainda que crescer no cenário mundial.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Sempre Bela



Buñuel por Oliveira

O inesquecível A Bela da Tarde (1967) é revisitado no tributo de Manoel de Oliveira a Luís Buñuel, no seu estilo formal e clássico de fazer cinema, não faltando a habitual elegância no longa Sempre Bela. O filme traz Bulle Ogier no papel de Séverine Serizy- substituindo a deslumbrante e encantadora Catherine Deneuve- que mesmo demonstrando capacidade, jamais poderá fazer esquecer a musa de Buñuel, provavelmente no maior papel de sua vida como a "Bela". Destaque também para Michel Piccoli, que faz Henri Husson, o velho amigo do marido traído com instinto sádico ao provocar a adúltera, retoma seu papel original com galhardia. Coube a Ricardo Trêpa- o Macário de Singularidades de uma Rapariga Loura- interpretar o barman que tudo ouve e já ostenta uma bagagem respeitável, apesar de sua pouca idade.

Sempre Bela é inspirado no livro de Joseph Kessel, retomando os personagens do clássico A Bela da Tarde, de Buñuel, está o resgate de quarenta anos após o furor causado na época pela película inovadora e controvertida, dirigida pelo mestre espanhol. Há um reencontro tenso da burguesa Séverine, a "Bela", que traía o esposo como prova de amor com o seu melhor amigo. Embora casual, já na troca de olhares no teatro, após terem ouvido um belo concerto de música clássica, já percebe-se toda a eloquência do centenário Oliveira ao conduzir os personagens para o jantar no hotel onde está hospedado Henri, motivo para o qual o grande segredo será ou não revelado.

Séverine é atraída para aquele lugar, diante da dúvida da revelação de sua prostituição, pois aquele homem que ainda guarda uma certa magia do passado, embora a viúva possa demonstrar uma certa culpa, as cenas vão revelando os mistérios que envolveram aqueles dois personagens e o marido morto. O jogo de cena na refeição simétrica demonstra toda a capacidade do velho Oliveira em dirigir seus atores e a competência explícita a cada movimento, como a dos garçons servindo e se retirando posteriormente; o apagar das luzes, contrastando com as velas queimando e se derretendo lentamente; a câmera estática apanhando os personagens que cruzam por ela, como da porta do hotel e depois na loja, são evidências de um diretor de cena estática e de atores em movimento.

Embora seja um filme menor, percebe-se o dinamismo de um cinema eloquente, com o poder de síntese do velho mestre num roteiro enxuto, através de cenários meticulosos, presenteando com júbilo ao seu público fiel. A jovialidade é uma constante neste diretor com mais de 100 anos, mas sempre lúcido e coerente com o que faz e apresenta, até mesmo nesta homenagem ao outro mestre Buñuel, neste Sempre Bela, nos remete ao passado e a vontade de sair da sala e procurar em outra sessão A Bela da Tarde para matar a saudade que fica claramente explícita, como uma retórica imprescindível de uma arte vilipendida, por vezes.

Este filme de 2006, reflete a beleza digna das cenas revisitadas numa Paris atual, que serviu de cenário para o longa de Buñuel com Catherine Deneuve deixando saudades. Porém, Sempre Bela serve para confundir o espectador e a pergunta continuará sendo não uma realidade, mas apenas de elemento ficcional e caracterizada ao extremo pelo humanismo e sensibilidade neste filme menor, mas atualíssimo e revigorado nas mãos do maior cineasta português de todos os tempos, que parece ter esquecido de envelhecer, deixando como legado esta experiência coerente com sua dedicação e amor pela sétima arte.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Alice no País das Maravilhas



















Espetáculo Visual

Alice no País das Maravilhas é um belo exercício de fantasia visual, que deve ser visto em terceira dimensão- 3D. Melhor ainda se for numa Sala Imax, somente encontrável em duas capitais: Curitiba ou em São Paulo, no Espaço Unibanco Pompeia, embora com o salgado preço único da bilheteria para todos os dias da semana de R$34,00, na capital paulista.

A direção de Tim Burton já qualifica e induz o espectador a ver com alegria esta fábula infantil, tendo os ótimos desempenhos de Johnny Depp como o Chapeleiro Maluco, Helena Bonham Carter como a Rainha Vermelha, Anne Hathaway como a Rainha Branca, Crispin Glover na pele do Valete de Copas, e a surpreendente Mia Wasikowska no papel principal de Alice, realizando um trabalho magistral.

O longa é baseado no livro de Lewis Carroll e narra a saga da jovem Alice de 17 anos que ao fugir de um casamento arranjado pelos pais, tendo como pretendente um noivo de família tradicional da aristocracia inglesa, tenta fugir do infortúnio, seguindo um apressado coelho branco que observa o relógio metodicamente, cai dentro de um buraco aberto numa raiz de uma árvore podre, estatelando-se dentro de um buraco profundo que irá dar num mundo subterrâneo e imaginário de maravilhas e dissabores, onde já estivera há 10 anos, mas nada lembra.

Alice conhece o Chapeleiro Maluco que muda seus sentimentos para com a vida, tem a ajuda do gato, do cachorro Bayard, dos dois meninos gordinhos, do coelho, do monstro; enfim de outros tantos animais que a ajudam são solidários nesta batalha épica contra a ira da poderosa Rainha Vermelha que está guerreando pelo poder contra sua irmã, a Rainha Branca.

A cena do monstro horroroso com Alice na jaula, quando esta tenta furtar a chave que lhe dará a espada mágica, nos remete para outra delirante magia do amor como do filme A Bela e a Fera (1991), produzido pelo Estúdio Walt Disney, baseado no conto clássico infantil francês dos Irmãos Grimm, com poderes mágicos de ilusão de ótica e entretenimento para a garotada e os mais crescidinhos.

A magia de assistir com interesse subliminar Alice no País das Maravilhas está justamente no extraordinário visual e a aproximação da tela junto ao espectador, registrando quase que um choque com os atores, fruto da tecnologia avançada hoje encontrada com singular propriedade nas salas Imax, embora possa ser percebido com quase mesmo efeito da magnitude sísmica em 3D, como se fosse captada da energia de um brilho de uma estrela da constelação. Deve ser usado sempre os óculos que darão o efeito perceptível imaginário e notável de um cinema moderno e atual.

Evidentemente que o enredo e o roteito têm quase que uma análise secundária, embora indispensável o questionamento, mesmo quando se trata de um inovação cinematográfica, assim como já foi bem discutida com boa aceitação no ficção científica Avatar (2009), de James Cameron, longa que traz bastante similitude com Alice no País das Maravilhas, pois também se percorre pelas florestas de Pandora, liderando desta feita os soldados com uma tecnologia que permite que seus pensamento sejam aplicados no corpo do Avatar.

A fábula mágica infantil de Burton encanta pelo visual e pela inigualável fotografia, com um colorido que se entranha e faz os sentidos do espectador chegarem ao êxtase imaginário da estética plástica abundante que se desenrola pela tela e nos efeitos visuais com características de interação com a plateia.

Não é um filme voltado exclusivamente para o público infantil, mas para ser apreciado também pelos pequeninos, bem como pelos adultos de todas as idades e classes sociais. O encantamento não tem limites nas pessoas e os efeitos causam uma terapia na alma inimaginável, pois se volta a ser criança com um saco de pipoca doce numa mão e um copo de refrigerante na outra, com direito a fotografias antes da sessão. Isso é felicidade e prazer numa sala de cinema, através de uma viagem ao gostoso mundo daqueles que são inocentes e se preparam para ingressar, mais adiante, no perverso universo da competitividade e da hipocrisia, por vezes da corrupção.

Utopia e Barbárie














Retrospectiva como Documentário

Silvio Tendler já fez algo bem melhor que este insosso Utopia e Barbárie, num misto de documentário com retrospectiva de televisão, com uma colagem de fatos e acontecimentos do início do século passado até nossos dias atuais. É um diretor bem aceito pelas esquerdas e odiado pela direita, tendo em vista seus filmes sempre voltados para personagens controvertidos e visto como comunista, como no caso de Jango (1984), um notável documentário que retrata todas as fases de um presidente da República apeado do poder pelos militares, instalando-se no Brasil a terrível ditadura de 1964, que até hoje tem suas feridas abertas e é questionada a própria Lei de Anistia. Anteriormente realizou Os Anos JK- Uma Trajetória Política (1980), que lhe rendeu bons prêmios e alguns dividendos; assim como abordou a vida de Carlos Marighella em documentário contestado pela ala direitista deste país. Também foi realizador de filmes sobre os personagens famosos como Oswaldo Cruz e Josué de Castro.

Numa espécie de revisão com retrospectiva dos tempos, Tendler traz à tona as mazelas políticas e econômicas desde a 2a. Guerra Mundial. Fala da possibilidade iminente do risco de desaparecimento dos sonhos que embalavam a juventude de sua época e de outras, através destes eventos sócio-políticos-econômicos. No bojo das entrevistas com intelectuais, políticos notórios, artistas de cinema, diretores de teatro, jornalistas conceituados, há uma clara ideia de explicar o porquê das injustiças. Embora fique uma sensação de panfleto, é inevitável deixar de reconhecer que os povos dissociados de seus governantes têm como concepção a justiça, a igualdade e a fraternidade, apesar de escaparem pela desarmonia mundial, frustrando as pretensões e fantasias daqueles que sonham com um mundo dito melhor, não fica demonstrado no documentário a coerência eficaz e plausível.

Apesar do discurso fácil da igualdade de raças, cor, credo, algo parece soar como artificial e as cenas que vão se acumulando sem uma necessária cronologia deixam uma reflexão panfletária num roteiro rápido e acelerado, parecendo ter pressa em acomodar os diversos discursos de uma retórica emblemática de retrospectos sem grandes ilusões; passando pela bomba atômica jogada pelos EUA no Japão, guerras, Diretas Já, eleições de Collor e Lula.

Utopia e Barbárie tem uma cara de manifesto sindical misturado com propaganda eleitoral, com um proselitismo ultrapassado e arcaico, numa visão caolha e desproporcional aos trabalhos já realizados pelo bom documentarista que é Sílvio Tendler, mas que desta vez errou a mão, pois tinha tudo para dar certo. Havia temas como as ditaduras na América Latina, as constantes invasões dos EUA, os movimentos de contracultura, a Guerra do Vietnã, as independências das colônias africanas e asiáticas; porém tudo abordado de forma simplória e sem profundidade, que resultaram num trabalho pífio e de pouca ou nenhuma repercussão.

Não se discute o tom ideológico, mas a forma de colagem como retrospectiva dos tempos, sem se deter e aprofundar, ficando a clara sensação de uma geleia geral ou uma salada desconexa de uma maturidade que poderia ser melhor elaborada, caso houvesse um bom senso e uma preocupação mínima com o resultado e o seu público alvo. Porém, se a pretensão era realizar um documentário para ser exibido num canal de televisão, como aqueles de final de ano, o conceito do filme já não é tão degradante e morno, nem haverá uma crítica tão contundente com relação à linguagem cinematográfica.

Mademoiselle Chambon



Conflito Existencial

Surpreendentemente o filme Mademoiselle Chambon revela-se um belo exercício da existência humana no cotidiano, abordando os conflitos familiares e as perspectivas futuras na vida de um metódico pedreiro. Bem dirigido por Stéphane Brigé, com atuações corretíssimas de Véronique (Sandrine Kiberlain) e Jean (Vincent Lindan), que já havia se notabilizado como um ator magnífico no longa francês Bem-Vindo, com direção de Philippe Lioret.

As conturbadas relações familiares começam já nas primeiras cenas, quando Jean lava os pés do pai numa cadeira, próximo de completar seus 80 anos, explode de raiva em seguida com sua mulher que quer mudar o combinado da festa e agride fisicamente um colega de trabalho. Mas seu destempero tem uma inequívoca causa: a paixão pela professora de seu filho com a consequente revelação da esposa de nova gravidez. Seus sonhos parecem ser sepultados definitivamente. A música que a professora Véronique toca está registrada em seu cérebro com a busca por uma nova vida, mas o fim da rotina cansativa se esvai e a derradeira tentativa na estação ferroviária é como um brado de derrota com o pessimismo se colocando novamente como elemento de dor e revolta, simbolizados pela mala colocada de forma abrupta no canto da casa e o silêncio inevitável do reencontro com o passado da mesmice.

As lágrimas de Jean e Véronique no carro já revelam um final sem grandes perspectivas, bem elaboradas na cena do questionamento das crianças e a resposta seca do pedreiro quanto a base a e a solidez para se construir um alicerce, elemento que se caracteriza como metáfora de uma família sem sustentação e o estremecimento diante da derrota do amor que se perpetua num cotidiano de duas pessoas que estão juntas, mas há a fragilidade de um casamento que se deteriorou pela falta de inovação.

A festa de aniversário do octagenário é uma farsa que irá se concretizar, mas haverá revelações definitivas de uma reação corroída pelo tempo, mas embalada pela bela música do violino tocada por aquela pessoa capaz de demonstrar toda sua grandeza ao desprezar o convite para dirigir a escola, diante da constatação de que podia ser a causadora da discórdia maior. Sem ter nenhuma conotação com o moralismo, o filme dá uma guinada para uma solução até previsível, mas de certa forma sem saída para os personagens conflitantes. Suas irmãs não estão mais na província, sua mãe faleceu e o peso da cobrança só aumentou junto com a falta de perspectiva.

Mademoiselle Chambon é um belo exercício existencial de uma professora dos arredores de Paris com aquele pedreiro provinciano, meio tosco, pacato, simplório, bom pai de família, porém sensível e descobridor de um mundo diferente do seu ninho pequeno e de poucas luzes; o drama interior arrebata sua generosidade e seu equilíbrio, fazendo-o repensar seu modo de viver e aparecendo seus traços de rebeldia. Os longos momentos de silêncio dos personagens demonstram toda luta interior e os questionamentos arraigados numa relação de comprometimentos com a falta de ousadia.

Enfim, se não é um notável filme, é certamente uma bela reflexão sobre o cotidiano de uma rotina que embrutece e alavanca para uma inevitável e sombria dor que atinge a alma e se espalha pelo corpo, metamorfoseando até mesmo o indivíduo simbolizador da simploriedade, no caso o pedreiro amargurado e absorvido pela fantasia de uma visão além de seu alcance, mas que deixou marcas indeléveis que romperam suas atitudes de bom moço.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A Estrada

















Terra Arrasada

O diretor australiano John Hillcoat tem alguns méritos e outros desacertos fundamentais neste longa-metragem A Estrada, adaptado do romance de Cormac McCarthy, vencedor do prêmio Pulitzer de 2007, autor do livro que inspirou o magistral Onde os Fracos Não Tem Vez (2007), dos irmãos Coen, ganhador na categoria do Oscar de melhor filme. Tem no roteiro enxuto tudo para dar certo, como a épica busca de uma ajuda de sobrevivência de um pai (Viggo Mortensen) e seu filho (Kodi Smit-McPhee), num mundo devastado por um cataclismo, como se fosse uma previsão bíblica de um apocalipse.

A viagem sem horizontes pela América de pai e filho é comovedora pelos seus aspectos humanos e a busca incansável da sobrevivência, após o inconsequente e inexplicável abandono da esposa e mãe (Charlize Theron), deixando apenas lembranças coloridas de uma relação aparentemente saudável, logo após a devastação completa do planeta terra, deixando sem energia, água e alimentos os dois sobreviventes e abandonados terráqueos. O canibalismo é visto como um outro inimigo poderoso, diante da iminência da fome desesperadora e a miséria que se instalam como subprodutos do pós-civilização, naquele trajeto de uma estrada em ruínas serpenteado pela desolação num cenário de dor e morte.

Hillcoat se deixa trair ao enfatizar nos diálogos de pai e filho, sobre a existência do bem e do mal, deixando o velho e adorado maniqueísmo americano se alastrar zombeteiramente, voltando ao passado com a flechada do índio como símbolo do mal, como nos velhos filmes de faroeste protagonizados pelo mocinho John Wayne caçando os peles-vermelhas, com a veneração do homem branco. A simbologia da tez clara como sempre sendo o protótipo do bem chega a ser irritante e joga o roteiro praticamente fora, quando o amadurecimento e a superação deveriam ser exaltados como universais, sem distinção ou tendências discriminatórias, tais quais acontece sutilmente no início e deveriam tomar corpo na abordagem principal, mas é alijado o enfoque da igualdade no transcorrer da película.

Estes filmes de desastres, invasões e devastações da terra são uma constante na filmografia americana, assim foi em Gozdzilla (1998); também explorado recentemente pelo 2012- O Fim do Mundo (2009); com analogia bem próxima de A Estrada, houve para sustentação do império do Tio Sam o horroroso O Dia Depois de Amanhã (2004); mas restava ainda o intragável Independece Day (1996), sendo que o diretor predileto para estas aberrações sempre escalado se notabilizou o medíocre Roland Emmerich, realizando vários desses filmecos comerciais sem nenhuma contribuição cultural ou reflexiva mais profunda.

A Estrada poderia possibilitar uma reflexão maior sobre os obstáculos da vida para a dupla de sobreviventes, como as adversidades da temperatura e do clima, a fome e seus implicamentos com a sobrevivência, investigar melhor a gangue composta por canibais que caçam pessoas, mas passa longe de uma análise aprofundada, distanciando-se numa clara evidência de total falta de visão global de uma situação adversa e inusitada do ser humano. Ficar colocando a cada plano o bem e o mal, desvia o foco da questão e leva o filme para um arremedo, embora seus propósitos iniciais vislumbrem alguns méritos, deixando como elipses no roteiro o clímax da explosão devastadora.

Sobra um cenário cinza de desolação como fator positivo neste contraste de ideias, que busca uma redenção no nevoeiro final, surgindo fantasmas da escuridão ao encontro do garoto, numa recomposição simbólica de novos tempos e um futuro promissor, após a devassa e as perdas que ficaram pelo caminho, existindo ainda animais pela orla marítima, num vislumbre tão chocante quanto ameaçador. Serão pessoas boas ou más? Esta é a indagação incansável do diretor, embora fosse dispensável no epílogo das transformações ambientais e na busca de valores simbólicos de um novo amanhã apontando para o fim da crise. Nada é sólido, tudo parece movediço nesta estampa em que o mar vem para purificar as almas e os indivíduos maus, por que não? Eis que tudo indicava um bom filme, mas resta um melancólico e arrastado final típico americano sempre atento aos forasteiros do mal.

terça-feira, 4 de maio de 2010

As Melhores Coisas do Mundo


















Reflexões da Adolescência

Laís Bodanzky é um diretora atenta às circunstâncias e às reflexões de todas as idades e os preconceitos da civilização. Assim foi com o ótimo Chega de Saudade (2008) que procurava retirar o peso da terceira idade, mas com muita sensibilidade e doçura demonstrava todos os seus problemas inerentes à velhice e o tempo que se esvai lentamente, deixando recordações mescladas com mágoas e lembranças saborosas da vida. Em Bicho de Sete Cabeças (2000), debruça-se sobre o sistema que devora a presa, corroendo todas as suas fragilidades e virtudes encobertas por nuvens negras refletidas das drogas, numa metáfora magnífica realizada no conflito de pai com o filho drogadizado.

Sua capacidade diretiva é colocada em xeque neste notável longa-metragem As Melhores Coisas do Mundo, realizado com um elenco de grande qualidade, destacando-se o ator juvenil estreante Francisco Miguez, no papel do adolescente de 15 anos Mano, irmão de Pedro (Fiuk-filho do Fábio Jr.), escoltado pela mãe Camila (Denise Fraga), o pai Horácio (Zé Carlos Machado), o professor Artur ( Caio Blat), o amigo e conselheiro Marcelo (Paulo Vilhena), que faz um papel similar de pai e a garota mais charmosa da escola Carol (Gabriela Rocha).

O longa trata sobre os prazeres e desprazeres da adolescência, tendo como mote o jovem Mano que vê seu pai se separar de sua mãe e assumir ser gay, motivo este que lhe trará enormes confusões no ambiente escolar, sofrerá o temível bullying dos colegas que têm atitudes agressivas pela violência explícita e hostis como o afastamento por um quase isolamento da turma, surgindo claramente o preconceito sexual como tema a ser explorado com bastante eficiência pela diretora, que mergulha na abordagem do universo juvenil das grandes paixões, os relacionamentos com as namoradinhas, os traumas da garotada e a difícil passagem para o mundo adulto repleto de preconceitos e complicações inerentes da transição. A aluna blogueira invasiva da privacidade é outro caso à parte, com suas matérias sensacionalistas, revela uma crítica poderosa aos jornais e revistas de fofocas, mostrando a relação das pessoas cada vez mais sem espaço e espremidas pela universalidade de informações descabidas com insinuações vazias contra o ser humano.

O roteiro tem múltiplas questões, que poderia ser perigoso, pois é fácil não se aprofundar em nenhum. Mas parece não ser o caso de As Melhores Coisas do Mundo, o fato do pai assumir a homossexualidade serve de gancho para os problemas encontrados no seio do colégio e com desdobramentos nas amizades. Umas mais sinceras; outras apenas artificiais; outras se inclinando para um amor mais profundo como de Mano e Carol, que de suas fraquezas interiores acabam por se descobrirem como almas gêmeas. O professor de violão tem um carinho especial por Mano, beirando à paternidade que parece fugir, com a ausência do pai em busca de seu rumoroso romance fora dos padrões comportamentais de uma sociedade doente. Suas palavras e seus ensinamentos são animadores e a relação se estreita.

O irmão de Mano, Pedro, com suas crises existenciais e a dificuldade em manter seu namoro e sua tendência suicida, lembra em muito o personagem do filme francês Em Paris (2006), de Christophe Honoré, naquele longa os irmãos moravam com o pai, pois a mãe os abandonara para viver uma vida livre, após a morte trágica da filha. Nas duas películas há uma visceral tendência pelo suicídio após o desfazimento dos namoros; em ambos o irmão mais novo é quem segura a barra quase que sozinho. Assim como em A Bela Junnie (2008), a garota de 16 anos apresenta problemas de relacionamento na escola, logo após a morte da mãe, com o suicídio aflorando novamente como solução dos problemas. Temos no bullying sofrido por Mano, outra temática forte, desta vez bem apresentada e questionada com profundidade no longa francês Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, que entre outros temas, apreciou com primazia a tentativa de expulsão do professor da escola da periferia francesa, diante de seu comportamento austero e incisivo em sala de aula. Mas no longa de Laís, o professor Artur também sofre restrições do conselho de pais e mestres e sua proclamada expulsão se deve ao envolvimento involuntário com a aluna Carol.

É enorme a influência do diretor francês Christophe Honoré nesta película sobre relação e o núcleo familiar com os jovens na escola e seus problemas fluentes da tenra idade. Onde a perda da virgindade, a tentativa de se aproximar da mais bela e gostosa aluna são fatores que apenas servem de combustão para questionar situações mais abrangentes de profundidade como o preconceito e a violência explícita cada vez mais presente entre jovens pré-adolescentes nas suas tribos diante das arraigadas idiossincrasias. O vazio existencial dá lugar para as brincadeiras e os conflitos na busca da presidência do grêmio estudantil, chegando a debates com oratórias repletas de malícias, tendo por objetivo principal ser um vencedor no contexto geral, pois assim haverá todos os olhares para estes jovens que buscam insistentemente uma autoafirmação e uma identidade ainda debilitada.

A dramaticidade dos personagens está bem condensada neste roteiro múltiplo e eficiente, onde Laís busca inspiração em Honoré e Cantet, dois diretores notáveis da nova safra francesa, com temas sempre voltados para o núcleo familiar, buscando suprir as lacunas deixadas pelo pai, ou mãe, bem como os conflitos que se estendem quase sempre para o convívio entre os pares das escolas. A cineasta tem muita sensibilidade para abordar a temática das pessoas. Assim já o fizera em seus filmes anteriores: tanto no relacionamento de pai e filho com as drogas; como falar da terceira idade, sem criar clichês constrangedores, nem glamourizar numa retórica falsa de melhor idade, afastando-se desta mentira com sabedoria. Nesta abordagem sem estereótipos da juventude, com seus anseios à flor da pele, demonstra uma diretora madura neste singular longa-metragem que fará e levará seus principais alvos a refletirem sobre seus futuros logo ali como iminentes adultos.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Coração Louco



Decadência Humana

O grande injustiçado da categoria de melhor filme do Oscar de 2010 foi, sem nenhuma dúvida, Coração Louco, na ótima direção de Scott Cooper. Só faltava Jeff Bridges não ter ganho como melhor ator, bem aí seria incompetência demais. Sua atuação é magistral e a estatueta veio em boa hora, pois atingiu o ponto alto de sua longa carreira, agora aos 61 anos.

O longa trata da trajetória clássica de derrotas do cantor country Bad Blake (Jeff Bridges), com uma vida desregrada pelo alcoolismo, bebendo uísque como se fosse água; mulherengo inveterado, mas sempre sozinho pelo mundo; faz shows em tabernas e lugares de reputação duvidosa, deixando seus amores perdidos pelo caminho. Sua decadência é iminente, descendo ladeira abaixo, tendo como patrimônio uma surrada guitarra e um velha camioneta caindo aos pedaços, lembra o drama clássico americano Farrapo Humano (1945), com a qualificada direção de extrema competência e sensibilidade pelo mestre Billy Wilder; Ray Milland protagonizou aquele triste espetáculo dantesco de uma pessoa desmoronando.

Viajar é a sua válvula de escape e se apresentar em botecos imundos e fedorentos, tendo como fãs mulheres com traços tão desleixados como reflexo da imagem que soçobra daquele velho ídolo romântico que encantava pelas belas canções country de outrora. Tem a dolorosa rejeição do filho que conhece já adulto, pois vira pela última vez como um promissor bebê, um golpe que custa para entender ou assimilar num processo de reciclagem, como num todo que vai se acumulando como células cancerígenas que se espalham pelo corpo, lembra o recente documentário brasileiro, dirigido por Patrícia Pilar, com boa dose de carinho e classe em Waldick- Sempre no Meu Coração (2007), em situação semelhante de afastamento de filho e pai. Seus melhores amigos são dois apenas: o empresário (James Keane) que se relaciona ou contata apenas por telefone, mais preocupado em ganhar dinheiro; já o outro é o dono de um boteco decadente (Robert Duvall) que se encontra esporadicamente para alguma apresentação rotineira, ou algum conselho que pouco ouve ou sequer registra.

Até que surge em sua vida uma bela e jovem jornalista (Maggie Gyllenhaal) que está fazendo um trabalho para uma revista, que vê nesta figura corroída pelo tempo e em estado quase de decomposição humana, que já fora seu ídolo, o mote para alavancar sua carreira pouco convincente. O estado de penúria é comovedor e chocante, pois ao dizer à jornalista como num brado de revolta "você é tão bonita que me faz ter vergonha deste quarto sujo", revela toda sua derrota e a perda da dignidade humana naquele ambiente de beira de estrada parecido com uma pocilga, mas que surge como uma redenção e a tomada de consciência para um futuro que está se esvaindo pelos seus vícios frenéticos e continuados de quem está preso e dependente ao álcool, assim como foi bem retratado em O Ébrio (1946), drama brasileiro do cinema novo, dirigido por Gilda de Abreu, tendo Vicente Celestino no papel principal do homem derrotado.

Parece que o mundo está desmoronando, mas há a aparição do emergente cantor e seu discípulo Tommy Sweet (Colin Farrell) que o convida para se apresentar não como o astro principal, mas como suporte de shows, servindo de escada para aquele que foi um rei e hoje é apenas um mero coadjuvante. Blake tem no rosto a marca pelos sulcos de toda sua história de músicas e letras prodigiosas, com um conteúdo bem mais durável que aquele jovem cantor bonito que atrai as jovens fãs de pouca ou nenhuma consistência intelectual. Mas Sweet tem na simpatia contagiante sua arma poderosa, porém sem os horizontes infinitos de conhecimentos que o velho ídolo arrebatou pelas infindáveis noites de aparições ao grande público.Parece ser um casamento perfeito, mas o que se vê na realidade é uma relação num terreno de areia movediça.

A relação da jornalista com Sweet também começa a se esboroar, diante das dificuldades do velho cantor em recompor sua vida e o esquecimento do filho menor num bar evidencia a perda da confiança mútua, restando o fenecimento de um relacionamento que dá sinais de fragilidade. Parece que tudo conspira para uma solução previsível em Coração Louco, mas o roteiro dá voltas e o encontro sem mágoas e ressentimentos livra o longa de evidências que poderiam ser consideradas inclinantes para um moralismo conservador. A luta e a persistência do personagem para se soltar das amarras que está envolto são aceitáveis e clarividentes de alguém que está no fundo do poço e busca uma inspiração para se libertar.

Eis uma obra injustiçada na premiação da Academia Americana de Cinema dos EUA, mas isto não é novidade, pois os grandes filmes sempre se notabilizaram justamente por esta depreciação dos seus acadêmicos para com títulos reflexivos e com temas importantes e universais.