terça-feira, 28 de novembro de 2023

Assassinos da Lua das Flores

 

Extermínio Indígena

Adaptado do best-seller homônimo do escritor David Grann, também baseado em uma história real, Assassinos da Lua das Flores é um faroeste épico do veterano cineasta Martin Scorsese, de 79 anos. Provavelmente o melhor filme de toda sua filmografia, com um roteiro fabuloso escrito a quatro mãos por Eric Roth e o diretor. Uma antiga parceria é retomada com Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, que sempre rendeu bons frutos ao longo da carreira do realizador, mas o trio nunca tinha trabalhado junto. DiCaprio está impecável, cada vez melhor e mais maduro, com desempenho em alto estilo, devendo ser creditados os méritos também ao diretor nesta sexta parceria, no papel do protagonista Ernest Burkhart, lembrou os melhores momentos do Marlon Brando pelos movimentos faciais, arrasou. Antes, estiveram juntos em Gangues de Nova Iorque (2002), O Aviador (2004), Os Infiltrados (2006), Ilha do Medo (2010), e O Lobo de Wall Street (2013), que lhe rendeu o Globo de Ouro. Em 2016, finalmente conseguiu levar o Oscar de Melhor Ator no filme O Regresso (2015), de Alejandro González Iñárritu. Já De Niro, quase sempre sóbrio, impressiona magistralmente como um personagem desprezível e estúpido, frio e calculista, ao interpretar William Hale, tio de Ernest. Encarna um pecuarista ambicioso que sempre quer mais financeiramente, que se porta publicamente como um cavalheiro, uma pessoa bondosa, pragmática, respeitado na cidade do povo indígena Osage. De Niro completou agora dez filmes em parceria com o diretor, iniciando com Caminhos Perigosos (1973), passou por Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995), O Lobo de Wall Street (2013), sendo o mais recente O Irlandês (2019).

Scorsese firmou seu nome como um dos realizadores mais influentes e cultuados da história, não apenas em Hollywood, mas também no cenário mundial. Um legítimo artesão do cinema que impacta mais uma vez pela importância da obra, e que demonstra ainda ter muito para dar. Pelas suas lentes retrata a verdadeira faceta ambiciosa e preconceituosa com que Hale sente e nutre pelos nativos, além de sua busca incessante por dinheiro e o envolvimento direto com uma engrenagem obscura. Usa o sobrinho que retornou da Primeira Guerra Mundial, como um típico fantoche de seus planos diabólicos para se apropriar da riqueza das terras indígenas como uma grande riqueza em Fairfax, na região norte-americana de Oklahoma. Para melhorar ainda mais seu patrimônio, como símbolo poderoso de um patriarcado, convence o rapaz a se casar com Mollie Kile, uma grata surpresa positiva pela irrepreensível interpretação da atriz descendente indígena Lily Gladstone, no papel mais importante de sua carreira. Rouba as cenas com sua presença marcante e seu poder de falar através do olhar penetrante de uma eloquência poucas vezes vistas numa narrativa, tem uma delicadeza agradável peculiar. Herdeira de terras ricas em petróleo, ela e sua família logo despertam interesse e cobiça dos homens brancos aventureiros.

A trama se passa num recorte do ano de 1920, em que a tribo de Osage é forçosamente deslocada de Arkansas e Missouri para se estabelecer em Oklahoma, quando diversos assassinatos acontecem a partir de circunstâncias misteriosas. Diante de denúncias, o caso acaba desencadeando uma grande investigação envolvendo o poderoso J. Edgar Hoover, considerado o primeiro diretor do FBI, agência que tinha acabado de ser criada na época, sendo representado pelo investigador Tom White (Jesse Plemons). Os crimes são enfocados por um duro realismo, mas com requintes de crueldades numa história com componentes ardilosos campeando por todos os lados, extrapola todos os limites de princípios e regras normativas. A exposição dos fatos é abrangente e colocada com boa intensidade, buscando um humor sutil, onde a ambição é o elemento essencial como mola propulsora para manter a fleuma da canalhice e seus excessos de desumanidade, ausente de qualquer ética pelo tio espertalhão. É inegável o envolvimento complexo bem explorado dessa história de amor entre duas pessoas, mas também de traição, culpa e submissão do sobrinho.

Assassinos da Lua das Flores incrivelmente passa rápido em suas 3h26min de duração, sem ser arrastado, distante do entediado, através de uma narrativa com clímax dinâmico e inspirado, a conspiração e a tensão constante são elementos apropriados para prender o espectador desde o início até o desfecho com a aparição do cineasta ao melhor estilo do mestre Alfred Hitchcock, pelas lentes fascinantes da fotografia de Rodrigo Prieto e a cativante trilha sonora de Robbie Robertson. O épico contextualiza e coloca para reflexão as relações de poder em conluio com a maçonaria para retratar com contundência os abusos oriundos da violência, principalmente da traição famigerada, do homem branco em relação ao povo indígena. Uma abordagem que atinge um resultado singular ao mostrar a importância do cinema para desnudar, perturbar e apontar os crimes pela humanidade e o extermínio de um povo indefeso. Eis um novo olhar para aqueles faroestes estereotipados, preconceituosos e reducionistas, por serem avessos aos índios colonizados e dizimados pelos governos dos Estados Unidos. A desconstrução se faz necessária e Scorsese pontua uma crítica ao materialismo do homem branco ganancioso, nefando, e sem limites pelo descontrole abissal, assim como já o fizera em O Lobo de Wall Street.

O questionamento da moralidade do sobrinho e seu amor confuso e pouco honesto pela mulher são colocados em xeque. Exterioriza o caráter deturpado e minguado ao concordar com o tio na armação para assassinar membros da própria família para lucrar. É devidamente revelador ao optar pelas suas próprias escolhas, como apresenta na essência um sintoma nauseante. Não tem bom moço diante das circunstâncias em que se apresentam os caminhos tomados, ainda que sob uma coação afetiva familiar do maléfico tio, não há posição de ingenuidade ou inexperiência. Sobra realismo para os atos cruéis nefastos, as abjetas armações, comandados pelo inescrupuloso Hale, elemento dominador na figura portadora da autoridade paternalista, no seu universo selvagem e desenfreado, dito civilizado. A tirania opressora dos Estados Unidos é denunciada em relação à cultura dos povos indígenas subjugados e humilhados dentro de seu território. Um notável documento histórico de conhecimento obrigatório sobre relacionamentos humanos que refletem os combates covardes sobre os mais fragilizados que desvendam segredos e mostram as verdades mantidas ocultas diante da máscara que cai para lançar luzes sobre as sombras do passado. Um monumental relato cinematográfico, uma verdadeira obra-prima no sentido mais genuíno da palavra, que deverá estar no topo das listas dos críticos de melhores filmes do ano de 2023.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Tia Virgínia

As Irmãs

O longa-metragem de estreia do roteirista e diretor goiano Fabio Meira foi As Duas Irenes (2017), que abocanhou quatro prêmios no Festival de Gramado daquele ano: roteiro, ator coadjuvante, direção de arte e melhor filme da crítica. Agora, o cineasta nos brinda com o segundo longa, Tia Virgínia, que ganhou cinco Kikitos no Festival de Gramado em agosto deste ano: roteiro, atriz (Vera Holtz), prêmio da crítica, direção de arte e desenho de som. Bem que poderia ter saído com a láurea de Melhor Filme, mesmo que Mussum, O Filmis (2022), de Silvio Guindane, tenha ficado em boas mãos. Em uma trama aparentemente simples, embora haja muita complexidade nas relações familiares, retrata as dúvidas e os caminhos nas vidas presentes e futuras. Conta com muita sensibilidade e perspicácia a história de uma mulher que dá nome ao título (Vera Holtz, de estupenda atuação para uma construção despojada que atinge uma exuberância impressionante na dramaturgia) aos 70 anos, que não tem nenhum filho e nunca se casou. Acaba sendo convencida pelas irmãs, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso) a se mudar para outra cidade com a tarefa de cuidar dos pais. Uma temática contemporânea, sempre latente e difícil de abordar em nossa sociedade de consumo com descarte dos mais idosos e a recepção dura, às vezes, principalmente para os mais jovens.

Eis uma comédia dramática honesta e cativante que se passa em apenas um dia numa casa e acompanha a preparação da ceia pela protagonista para receber as irmãs que estão chegando para celebrar o Natal, após a morte do patriarca. Vanda é casada com Tavares (Antônio Pitanga) e mãe da doce Ludmila (Daniela Fontan); já Valquíria tem um filho entediado que está se formando em Medicina (Iuri Saraiva). A situação de Virgínia é melancólica, que por codependência se vê obrigada na sua rotina em cuidar da mãe de 99 anos (Vera Valdez), uma anciã em adiantado estado de demência, que não interage, de corpo esquálido e que precisa de cuidados especiais, como no banho sentado numa cadeira, medicação, alimentação na boca e o uso constante de fraldas geriátricas. O cenário retrata um ambiente típico da classe média brasileira, onde o tempo parece estar estático, com a indissolúvel presença de um relógio de parede que anuncia a troca de horas, uma rústica cristaleira antiga com as taças e os pratos do casamento da matriarca, e um presépio para iluminar a chegada da pseudonoite festiva. Um mergulho nos confrontos e adversidades da irônica chamada "melhor idade" e o espectro da triste solidão, tanto da protagonista, a “tia solteirona”, enquanto as outras constituíram suas próprias famílias, bem como da mãe decrépita rumo ao ocaso.

Há alguma similitude em seu conteúdo de questionamento de vida com outras belas obras, tais como: A Partilha (2001), de Daniel Filho, quando quatro irmãs estão reunidas para o enterro da mãe discutem a divisão entre elas de um amplo apartamento em Copacabana e os móveis contidos nele. Passam a confrontar entre si suas opções de vida, já que todas seguiram caminhos bem diferentes. Fazem um balanço do passado e dos bons momentos que tiveram juntas, sendo obrigadas ainda a enfrentar as novas situações que o cotidiano impõe. Também em Feliz Natal (2008), de Selton Mello, o protagonista de 40 anos trabalha em um ferro-velho no interior, tem uma companheira e uma ocupação constante, mas no passado levou uma vida de grande irresponsabilidade, da qual saiu vivo por sorte. A proximidade do Natal faz um levantamento de sua vida, decidindo retornar à capital, enquanto que ele próprio está em busca de sua identidade.

Quem não conhece ou não teve no seio familiar, ou de amigos próximos, uma situação semelhante tão envolvente e humana apresentada? A dignidade de ambas, da filha no papel de cuidadora da mãe, é colocada em xeque pelo tempo e seus estragos existenciais do envelhecimento, pelo diretor. Há uma madura direção que demonstra controle sobre a narrativa e sobram méritos por não deixar cair em pieguismos ou exageros sentimentais baratos pela eficiência da condução equilibrada dos diálogos ásperos entre as irmãs. Os conflitos vão desde o engraçado para revelações dolorosas, com uma tensão constante na inveja, na chantagem emocional, muita hipocrisia, em que não falta a discussão do patrimônio, dinheiro, e até o assédio do futuro médico à empregada grávida. Assim já o fizera o argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (2009), pelo afago final das águas do rio que servem de cenário para o domicílio daquelas idosas criaturas inertes, distantes e sobreviventes do universo familiar. Ou pelo olhar do diretor carioca Marcos Bernstein no ótimo O Outro Lado da Rua (2004), refletindo a dor da solidão da idade, reavaliando suas vidas e descobrindo novos rumos. Ou com GranTorino (2008), de Clint Eastwood, sobre as perdas hereditárias e os valores dos descendentes colocados em risco pelo herói de guerra decadente, e ainda em Aos Olhos de Ernesto (2017), de Ana Luiza Azevedo, que mostra os traumas das perdas e dissabores do envelhecimento com muita sutileza para uma profunda reflexão.

O cenário único funciona como um grande teatro do realismo familiar estampado, no qual a protagonista pretende usar seu vestido de formatura no jantar como metáfora de uma vida que se perdeu no tempo, e o sonho de ser atriz talvez se esvaíra para sempre. A penumbra da virada da noite de Natal será marcada pela revelação de um grande segredo sob os acordes do clássico Bolero, de Ravel. Ela armazena ressentimentos, tristeza imensa, solidão e o sentimento de ingratidão das irmãs. Guarda em seu íntimo um sofrimento silencioso. Como num jogo de xadrez, a importância pelas nuances das relações de familiares fragilizadas ao extremo, fio condutor para o desfecho do processo de libertação da mulher sufocada pela dor do tempo e as frustrações advindas dos insucessos amordaçados pela estagnação e conformismo de uma realidade como um beco sem saída. Culpa, responsabilidade e liberdade de escolha se misturam nos ingredientes agridoces. Um magnífico drama existencial humano em formato de comédia dramática alicerçado com simplicidade sobre o angustiante tema universal do envelhecimento e suas idiossincrasias do tempo em seus dias próximos da finitude. Tia Virgínia soa como uma luz de força e equilíbrio, com suas mágoas e alegrias, mas nada definitivo no horizonte. As emoções e a vazão para o grande amor profissional de uma ilusão nunca esquecida pelo longínquo tempo, a ser reconciliado pela rebeldia da rotulada irmã louca, com a revelação do sigilo numa sequência singular da narrativa que leva para a metamorfose redentora.


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Afire

 

Juventude Angustiada

O cineasta e roteirista Christian Petzold é considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo da Alemanha, possivelmente o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim. Autor da trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), tendo recebido o prêmio Urso de Prata por melhor direção no Festival de Berlim. Ambientado nos anos de 1980, num bucólico vilarejo, ao Leste de Berlim, em pleno regime comunista instalado na Alemanha Oriental, numa análise sobre a divisão do país antes de cair o muro, no constrangimento da protagonista em ser vigiada e passar por humilhantes revistas íntimas no seu local de trabalho sob o autoritário regime sem liberdade de expressão, onde a reunificação era completamente descartada. No segundo longa, Phoenix (2014), centralizou a história na judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração em Auschwitz, que retorna à sua cidade natal em escombros na busca de um cirurgião plástico para recuperar a imagem deformada, mesmo que o passado lhe traga perseguições. Reencontra o marido e recebe a ajuda de uma militante solidária com seus compatriotas, orientando-os para viajarem em definitivo ao recém-criado Estado de Israel. Fechou a trilogia com Em Trânsito (2018), uma realização ao melhor estilo da escola de seu país, com um roteiro dinâmico, com cortes certeiros e precisos, concessões moderadas para o espectador, num tom seco e direto com artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das aflições políticas contemporâneas em um mundo de dúvidas constantes.

Está de volta com mais uma obra instigante, Afire, título que pode ser traduzido livremente para Em Chamas, último filme do realizador e ganhador do Prêmio do Júri no Festival de Berlim de 2023. Venceu também o prêmio de Melhor Filme Internacional para a Crítica na 47ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, suplantando por um voto Ervas Secas (2023), do festejado diretor turco Nuri Bilge Ceylan. No seu penúltimo longa, Undine (2020), Paula Beer interpreta uma historiadora abandonada pelo namorado que busca a vingança, conforme o mito que inspirou seu nome. Novamente a atriz brilha e dá toda sua magia numa atuação inspirada que dá vida à despojada personagem central Nadja, uma estudiosa em letras, que tem papel importante na trama, quando os personagens se referem à literatura alemã do século 19. Ela disfarça bem como vendedora de sorvete, e ainda cuida a casa dos pais de Felix (Langston Uibel), um fotógrafo que quer criar um portfólio, amigo de Leon (Thomas Schubert- atuação impecável), rapaz formal e sério, desconfiado, com dificuldade para dormir diante do barulho das relações sexuais no quarto ao lado, escritor em crise existencial e de criação para seu próximo romance, que aguarda a visita do seu editor (Matthias Brandt). O outro personagem é Devid (Enno Trebs), o salva-vidas do local, que tem um affaire com Nadja. Estes são os personagens do ótimo enredo construído num roteiro versátil, que se passa numa pequena casa de férias na região da Pomerânia, entre a Polônia e a Alemanha, ambientado às margens do Mar Báltico, com proximidade de uma imensa floresta em chamas com ameaças intensas pelos focos frequentes de incêndio, contígua a uma praia, onde os dias são muito quentes e não chove há semanas.

Petzold menciona com precisão certeira no roteiro Pompeia e o desastre romano com a erupção do Vesúvio, em uma das cenas em que os animais estão morrendo queimados ou sufocados pela fumaça. Já no prólogo, o carro enguiçado e a busca do caminho para se chegar até o destino, evidencia e antevê os problemas naquele lugar em que os jovens irão se reencontrar com os novos amigos. O diretor traz à baila os problemas ambientais climáticos do aquecimento global como pano de fundo para se aprofundar nas emoções em que estão relacionadas à felicidade, à luxúria e o amor que brota no desenrolar da história. Há pitadas de ciúmes e ressentimentos que trarão em doses homeopáticas as tensões geradas no grupo. Os incêndios florestais próximos funcionam como metáforas de um processo das relações humanas dentro de um panorama de solidão, na qual os personagens se aproximam por instinto dentro da casa, até que os focos amorosos são iminentes dentro de um contexto que é impossível ser ignorado.

Um cineasta instigante de filmes intimistas com fundo social, que aborda temas históricos e identitários para iluminar a consciência dos alemães pelo passado nazista. Tanto nos dramas anteriores como no atual, há uma densidade fascinante sobre a reconstrução da vida. Contextualizado dentro de um clímax equilibrado e coerente, através de uma história contada com suavidade contraditória dentro da angústia e das fragilidades de Leon, porém embrutecida por um panorama claustrofóbico oriundo dos incêndios que devastam as florestas. Permeia pela melancolia intercalada com momentos líricos, embora doloridos, neste impactante drama profundamente atual. Um filme de imagens e diálogos com força de grande expressividade pelos rostos e olhares. Mencionado por alguns críticos a similitude temática de Afire com Contos das Quatro Estações (1990-1998), dirigido pelo renomado francês Eric Rohmer, Três Formas de Amar (1993), de Andrew Fleming e Deus Sabe Quanto Amei (1958), de Vincente Minnelli. Já o diretor confessou nos debates da Mostra de Cinema de São Paulo que entre outros filmes de verão, Mônica e o Desejo (1953), de Ingmar Bergman, preferido de Jean-Luc Godard, foi sua grande fonte de inspiração.

Uma obra densa num encontro aparentemente agradável entre bons amigos, embora alguma ameaça sombria esteja rondando no ar, como o fogo da floresta ou da paixão que se aproxima. Com o escritor relutante em se relacionar tentando encerrar seu segundo livro, sente a vida mais pesada como um fardo, frisa de forma recorrente: "O trabalho não (me) permite". Afire está entre as melhores realizações do cineasta pelas suas qualidades indiscutíveis e meritórias de grande artesão. Um drama que não cai na caricatura e nem nas armadilhas fáceis do maniqueísmo contumaz de alguns filmes pouco consistentes. Há tensão, amor e intensidade elaborados sem exageros, com cenas de construções de personagens aparentemente fortes, mas psicologicamente fragilizados, bem alicerçados por uma direção autoral magnífica, através de uma amostragem pela beleza dos detalhes, marcante no olhar revelador, segurando até o desfecho inusitado de um enredo recheado de realismo de um cinema perturbador na essência. Os acontecimentos deixam sequelas que irão marcar as vidas desses jovens. A reflexão indica que há motivos para uma admirável aprendizagem. O desfecho em aberto deixa margem para interpretações do espectador, por ser sensível e comovente como na última cena deste fabuloso filme, um dos que deverá constar nas listas dos críticos de melhores do ano.