Juventude Angustiada
O cineasta e roteirista Christian Petzold é considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo da Alemanha, possivelmente o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim. Autor da trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), tendo recebido o prêmio Urso de Prata por melhor direção no Festival de Berlim. Ambientado nos anos de 1980, num bucólico vilarejo, ao Leste de Berlim, em pleno regime comunista instalado na Alemanha Oriental, numa análise sobre a divisão do país antes de cair o muro, no constrangimento da protagonista em ser vigiada e passar por humilhantes revistas íntimas no seu local de trabalho sob o autoritário regime sem liberdade de expressão, onde a reunificação era completamente descartada. No segundo longa, Phoenix (2014), centralizou a história na judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração em Auschwitz, que retorna à sua cidade natal em escombros na busca de um cirurgião plástico para recuperar a imagem deformada, mesmo que o passado lhe traga perseguições. Reencontra o marido e recebe a ajuda de uma militante solidária com seus compatriotas, orientando-os para viajarem em definitivo ao recém-criado Estado de Israel. Fechou a trilogia com Em Trânsito (2018), uma realização ao melhor estilo da escola de seu país, com um roteiro dinâmico, com cortes certeiros e precisos, concessões moderadas para o espectador, num tom seco e direto com artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das aflições políticas contemporâneas em um mundo de dúvidas constantes.
Está de volta com mais uma obra instigante, Afire, título que pode ser traduzido livremente para Em Chamas, último filme do realizador e ganhador do Prêmio do Júri no Festival de Berlim de 2023. Venceu também o prêmio de Melhor Filme Internacional para a Crítica na 47ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, suplantando por um voto Ervas Secas (2023), do festejado diretor turco Nuri Bilge Ceylan. No seu penúltimo longa, Undine (2020), Paula Beer interpreta uma historiadora abandonada pelo namorado que busca a vingança, conforme o mito que inspirou seu nome. Novamente a atriz brilha e dá toda sua magia numa atuação inspirada que dá vida à despojada personagem central Nadja, uma estudiosa em letras, que tem papel importante na trama, quando os personagens se referem à literatura alemã do século 19. Ela disfarça bem como vendedora de sorvete, e ainda cuida a casa dos pais de Felix (Langston Uibel), um fotógrafo que quer criar um portfólio, amigo de Leon (Thomas Schubert- atuação impecável), rapaz formal e sério, desconfiado, com dificuldade para dormir diante do barulho das relações sexuais no quarto ao lado, escritor em crise existencial e de criação para seu próximo romance, que aguarda a visita do seu editor (Matthias Brandt). O outro personagem é Devid (Enno Trebs), o salva-vidas do local, que tem um affaire com Nadja. Estes são os personagens do ótimo enredo construído num roteiro versátil, que se passa numa pequena casa de férias na região da Pomerânia, entre a Polônia e a Alemanha, ambientado às margens do Mar Báltico, com proximidade de uma imensa floresta em chamas com ameaças intensas pelos focos frequentes de incêndio, contígua a uma praia, onde os dias são muito quentes e não chove há semanas.
Petzold menciona com precisão certeira no roteiro Pompeia e o desastre romano com a erupção do Vesúvio, em uma das cenas em que os animais estão morrendo queimados ou sufocados pela fumaça. Já no prólogo, o carro enguiçado e a busca do caminho para se chegar até o destino, evidencia e antevê os problemas naquele lugar em que os jovens irão se reencontrar com os novos amigos. O diretor traz à baila os problemas ambientais climáticos do aquecimento global como pano de fundo para se aprofundar nas emoções em que estão relacionadas à felicidade, à luxúria e o amor que brota no desenrolar da história. Há pitadas de ciúmes e ressentimentos que trarão em doses homeopáticas as tensões geradas no grupo. Os incêndios florestais próximos funcionam como metáforas de um processo das relações humanas dentro de um panorama de solidão, na qual os personagens se aproximam por instinto dentro da casa, até que os focos amorosos são iminentes dentro de um contexto que é impossível ser ignorado.
Um cineasta instigante de filmes intimistas com fundo social, que aborda temas históricos e identitários para iluminar a consciência dos alemães pelo passado nazista. Tanto nos dramas anteriores como no atual, há uma densidade fascinante sobre a reconstrução da vida. Contextualizado dentro de um clímax equilibrado e coerente, através de uma história contada com suavidade contraditória dentro da angústia e das fragilidades de Leon, porém embrutecida por um panorama claustrofóbico oriundo dos incêndios que devastam as florestas. Permeia pela melancolia intercalada com momentos líricos, embora doloridos, neste impactante drama profundamente atual. Um filme de imagens e diálogos com força de grande expressividade pelos rostos e olhares. Mencionado por alguns críticos a similitude temática de Afire com Contos das Quatro Estações (1990-1998), dirigido pelo renomado francês Eric Rohmer, Três Formas de Amar (1993), de Andrew Fleming e Deus Sabe Quanto Amei (1958), de Vincente Minnelli. Já o diretor confessou nos debates da Mostra de Cinema de São Paulo que entre outros filmes de verão, Mônica e o Desejo (1953), de Ingmar Bergman, preferido de Jean-Luc Godard, foi sua grande fonte de inspiração.
Uma obra densa num encontro aparentemente agradável entre bons amigos, embora alguma ameaça sombria esteja rondando no ar, como o fogo da floresta ou da paixão que se aproxima. Com o escritor relutante em se relacionar tentando encerrar seu segundo livro, sente a vida mais pesada como um fardo, frisa de forma recorrente: "O trabalho não (me) permite". Afire está entre as melhores realizações do cineasta pelas suas qualidades indiscutíveis e meritórias de grande artesão. Um drama que não cai na caricatura e nem nas armadilhas fáceis do maniqueísmo contumaz de alguns filmes pouco consistentes. Há tensão, amor e intensidade elaborados sem exageros, com cenas de construções de personagens aparentemente fortes, mas psicologicamente fragilizados, bem alicerçados por uma direção autoral magnífica, através de uma amostragem pela beleza dos detalhes, marcante no olhar revelador, segurando até o desfecho inusitado de um enredo recheado de realismo de um cinema perturbador na essência. Os acontecimentos deixam sequelas que irão marcar as vidas desses jovens. A reflexão indica que há motivos para uma admirável aprendizagem. O desfecho em aberto deixa margem para interpretações do espectador, por ser sensível e comovente como na última cena deste fabuloso filme, um dos que deverá constar nas listas dos críticos de melhores do ano.
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